domingo, 18 de novembro de 2007

Da Memória e da inépcia

Há dias, Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso sobre acidentes de viação. E, certeiro, lembrou a mais esquecida das causas (aliás, na sua opinião, também a mais determinante): a inépcia dos automobilistas. A pura e simples inépcia.
Li-o com a satisfação de quem ouve gritar que o rei vai nu!...
Mas, hoje, neste sempre tristíssimo Dia da Memória, silêncio absoluto. Nem uma palavra sobre tal tópico. Ou seja, para o poder político, a sempre propalada prioridade da segurança rodoviária pressupõe, sem novidade, uma realidade de condutores incumpridores, abusadores, descuidados, mas sem mácula em matéria de perícia. O discurso vai, pois, no sentido de incutir responsabilidade e disciplina aos 'aceleras', mas sem que passe pela cabeça iluminada de qualquer ministro a prévia necessidade de ensinar grande parte deles a conduzir.
Ora, a simples observação ensina que, nesse particular, tudo ou quase tudo deveria ser reequacionado. A emissão das licenças de condução e o ensino que a antecede. As regras sancionatórias e a sua aplicação, apostadas em cadastrar infracções sem consequências em vez de privilegiar a ponderação dos danos causados. Depois, e não menos, a prática da renovação das ditas licenças de condução.
Neste Dia da Memória, deixo o meu contributo para uma discussão que temo não ocorra nunca. Mas deixo-o, apesar disso.
No universo de condutores ineptos, alguns são mais obviamente ineptos do que outros. Ou, indo ao ponto, alguns são até mais previsivelmente ineptos do que outros. Penso nos automobilistas mais velhos, a quem, pela própria natureza das coisas, vão falhando, a visão, a audição, os reflexos, a rapidez de reacção, a acuidade física. Quem os defende? E quem nos defende deles?
Pela primeira vez na história, temos um problema de segurança pública relacionado com a condução dos mais velhos. Hoje, neste início de século, homens e mulheres nascidos na década de 1920 vão dobrando os 80 anos. Os nascidos em 1930 vão caminhando pelos seus 70 anos... Ou seja, começamos a ter, na estrada, inúmeros automobilistas com mais de 65 anos - gente que atingiu a vida adulta num tempo em que a condução se massificava e que, hoje, felizmente, graças à evolução das condições sociais, se mantém bem e activa até tarde.
Aliás, a questão relevante é, precisamente, esta - porque estão bem e activos, julgam que podem fazer a vida que faziam aos 40 ou aos 50... Nomeadamente, guiar para aqui e para acolá.
Para tanto, contam com a mais absoluta complacência da Administração Pública e, claro está, dos médicos. Uma consulta sumária - quando existe, porque há casos em que, por mais uma dúzia de euros, as agências de documentação asseguram também isso - é o que basta: vê bem, não vê?, ouve bem, não ouve?, sente-se bem, não sente?, não tem queixas, pois não? E lá sai o atestado, que é título idóneo e suficiente para a desejada renovação da licença de condução. Simples, não é? Mas, além de simples, é também, e sobretudo, perigosíssimo!
Por mim, deixo a minha proposta. Radical, mas muito pensada. A saber:
1. A partir dos 60 anos
a) regra geral, renovação da licença de condução, de 5 em 5 anos, mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a condição física geral do/a condutor(a) e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação da licença de condução, de 5 em 5 anos, mediante novo exame de condução.
2. A partir dos 70 anos
a) regra geral, renovação da licença de condução, de 2 em 2 anos, com efeitos circunscritos a um raio de 30 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a sua condição física geral e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação da licença de condução, de 2 em 2 anos, com efeitos circunscritos a um raio de 30 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante novo exame de condução.
3. A partir dos 75 anos
a) regra geral, renovação anual da licença de condução, com efeitos circunscritos a um raio de 10 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a sua condição física geral e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação anual da licença de condução, com efeitos circunscritos a um raio de 10 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante novo exame de condução.
4. A partir dos 80 anos, proibição absoluta da condução, caducando a respectiva licença 'ipso facto'.

Quem considerar tal regime violento, pense na alternativa. Pense no que se pretende proteger, pense naqueles que importa defender... Pense nos seus Pais. Ou, se for outra a idade, nos seus Avós... Pense na leviandade com que, hoje, são entregues aos caprichos do destino. Na ligeireza com que se lhes oferece a felicidade de mais umas voltinhas ao volante... Pense, em consciência, e responda então. Mas só então.
No Dia da Memória, vale a pena convocar a discussão. A pretexto da inépcia... Ou, por que não, a pretexto do novo diploma anunciado pelo Governo - aquele que pretende mudar a face da realidade por antecipar a data da primeira renovação para os 50 anos, dispensando-se de reformar os modelos, de questionar as práticas e de relançar a ambição.

4 comentários:

Anónimo disse...

Penso que essa ou qualquer outra discussão sobre seja qual fôr o assunto não ocorrerá. Há muito que os nossos governantes perderam esse hábito. Fazem algumas pequenas mudanças, mas nunca vão ao fundo das questões.
Não sei se as medidas que sugere são ou não as ideais, mas é de louvar a atitude de propôr no concreto.

João Pedro Varandas disse...

A inépcia dos condutores será, sem dúvida, a primeira causa da sinistralidade rodoviária em Portugal.
É uma causa triste, mas importa encará-la de frente... sem temores.
Assumir este facto é, no entanto, inconveniente. É inconveniente para os "condutores-ineptos", que por motivos vários, (falta de maturidade, falta de educação, falta de civismo, falta de capacidade intelectual e física, etc.)constituem uma grande percentagem dos automobilistas que circulam nas nossas estradas e passeios, carreiros e caminhos de cabras, mas também para os ineptos que governam e que deviam, apesar da visível inépcia, zelar pelo interesse público e pela segurança dos cidadãos.

Assim, e desde já louvando o discernimento e o sentido crítico de Miguel Sousa Tavares e de Sofia Galvão, esperamos que alguém que consiga cumular responsabilidade e poder possa reflectir sobre algumas das questões colocadas neste artigo e, com vontade e coragem, implementar soluções racionais, ponderadas e que visem salvaguardar os interesses de todos.

F. Penim Redondo disse...

Concordo com a necessidade de verificar criteriosamente o "estado de saúde" dos condutores mais idosos. Sem exageros pois os velhos de hoje começam também a ser um pouco diferentes dos velhos tradicionais. Eu, por exemplo, com 62 anos ainda corro os 5.000 metros mais depressa do que os meus filhos na casa dos 30.

O problema das nossas "autoridades" é que estão completamente subordinadas à chantagem psicológica do fundamentalismo.

A recente sucessão de acidentes rodoviários espectaculares está a levar a uma situação em que são as "associações de vítimas" que modelam o discurso político oficial e influenciam a legislação e as práticas repressivas sobre a generalidade dos cidadãos. Como se fosse aceitável subordinar às teses dos familiares das vítimas de crimes quer a investigação da PJ, quer os tribunais quer os legisladores do Código Penal.

Acho que o caminho é tentar compreender cada vez melhor aquilo que propicia ou causa os acidentes para os poder prevenir. Em Espanha, está comprovado, as distracções estão na origem de 37% dos acidentes. Ora em Portugal ninguém se preocupa, por exemplo, com a publicidade nas bermas e cruzamentos sendo as próprias autarquias as que usam as imagens móveis mais perturbantes.

Em vez da dramatização e das emoções culpabilizantes devemos apelar à inteligência e ganhar os cidadãos para medidas que racionalmente sejam passíveis de justificação.
Nada será conseguido pela culpabilização geral.

Aqueles que sofreram com a perda de entes queridos, por muito respeito que mereçam, não estarão provavelmente em condições de conduzir tão complexo trabalho.

Luis Eme disse...

Pior com a inépsia é a chamada "esperteza saloia", os tipos que andam sempre apressados e têm de ser sempre os primeiros a passar, mesmo quando não devem nem podem, em rotundas, cruzamentos e até nas estradas, com as ultrapassagens em curvas (autênticos golpes suicidas e assassinos...), que nos fazem arrepiar...