segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Vale a pena ter um império?

O lugar comum da época é o de que a Europa é imperialista e colonialista e por isso tem de pagar o preço dos imensos crimes que cometeu. A verdade é que a Europa é talvez o único conjunto imperial que, tendo-se dissolvido, voluntariamente paga o preço dessa responsabilidade. Se bem virmos, a Europa paga a países subdesenvolvidos, menos poderosos que ela, não um tributo de pacificação, como o império romano teve de fazer, mas uma ajuda substancial. Se eficaz ou não, se bastante ou não, essa é a outra questão. Nem interessa saber se a Europa prejudicou os povos que dominou, o que é puro truísmo em relação a qualquer relação de domínio. O que se trata de saber é qual a especificidade da Europa na sua aventura imperial.


O primeiro movimento de expansão da Europa são as cruzadas. As cruzadas contra o Islão (não as contra os pagãos) são antes do mais reconquistas. Na Península Ibérica isto é evidente, nos Balcãs contra os turcos também. Mais difícil é de explicar o caso de Jerusalém. As cruzadas em Jerusalém no entanto são apenas uma aparente excepção. Os turcos impedem os peregrinos europeus de ir a Jerusalém e a Europa revolta-se. A conquista de Jerusalém é também sob o ponto de vista simbólico uma reconquista. Jerusalém é a pátria d cristão. Não nos podemos esquecer que a Palestina tem um peso superior para cristãos e judeus que o que tem para muçulmanos. Para estes é apenas o terceiro lugar mais santo, enquanto que para aqueles é o primeiro.


No entanto, a ideia de império na Europa é secularmente a ideia de restauração do Império Romano. Os títulos de imperadores são em primeiro lugar o carolíngio e seus descendentes e mais tarde o russo, quando se assume como terceira Roma. Significativo que só no século XIX a ideia e o conceito se espalhou. Napoleão I e depois III por imitação, a Alemanha, Disraeli que faz de Victória imperatriz da Índia, o conceito de império colonial, todos estes fenómenos são oitocentistas.


A ideia de império liberta-se da ideia de restauração (do império romano) ou seja de retornar a si mesmo, à sua verdadeira identidade e unidade, e de forma consistente, apenas no século XIX. Se historicamente a Europa é expansionista desde o fim do século XI esta expansão aparece como restauração sob o ponto de vista ideológico até ao século XIX.

Esta é uma ideia totalmente oposta à identidade turco-mongol. Povos nómadas nas suas origens, a ideia de império foi sempre constitutiva da sua identidade. O turco e o mongol, seja nos Balcãs, seja na Índia, seja na Ásia Central, ou se identifica como nómada ou como império. Este é um dos factores, juntamente com a ausência de cristianismo, que leva os turcos a terem orgulho num império que é em suma banal (foi um entre muitos impérios continentais na História) e que a Europa pelo contrário se sinta constrangida com o facto de ter tido impérios.

Volvidas algumas décadas sobre o fim dos impérios coloniais podemos já fazer um balanço algo mais sereno do que eles representaram na História da Europa. É evidente que ainda existem estudos inflamados sobre a matéria, geralmente propagandísticos ou moralistas, em geral imbuídos do espírito de infantilidade birrenta que caracteriza a nossa época. Mas o leitor, que espero seja adulto, poderá acompanhar-me em alguns reflexões.


Cometeram-se crimes? Tudo depende de saber se o conceito de crime é histórico. Mas mesmo admitindo que o seja, sem dúvida se cometeram crimes. Embora os lacrimejantes oficiais salientem que é a Europa a máxima detentora do género convenhamos que nenhum império foi construído com base em beijos e abraços. É uma prática tenaz ter de se matar alguns maçadores que não querem aceitar o nosso poder. Sem espada, espingarda ou sequer calhau não existe império. Mesmo a casa de Áustria (“casa-te, Áustria feliz”) que construí o seu império sobretudo por via da alcova teve de estar em permanente estado de guerra para salvaguardar o que o tálamo tinha conquistado. Quantificar o horror é sempre temerário e em geral acaba por ser arbitrário. Seja como for, em função da dimensão do império europeu do século XIX, o maior que a História já viu, talvez o sofrimento imposto seja proporcionalmente menor ao de muitos outros impérios enfadonhos que a História viu nascer.


A escravatura de África? Sem dúvida. Mas talvez tenhamos de ter em conta que esta é instituição perene em África. Os egípcios praticaram-na, os núbios também, depois os gregos os romanos, romanos e até recentemente os turcos e os árabes. Quando a Europa começa a negociar escravos em África conta com fontes de distribuição... africanas. A Europa apenas desviou circuitos comerciais já existentes. Se os outros foram mais ineficazes por incompetência não vejo que lhes venha daí mérito. Todos nós descendemos de vítimas e de carrascos e por vezes da vítima dos carrascos e deste carrasco da mesma vítima.


A Europa explorou economicamente as colónias por todo o mundo? Também não conheço império que não o tenha feito e pergunto-me se tem sentido fazer um império se esse não for um dos efeitos pretendidos. A verdade é que a História quantitativa começa-nos a mostrar que, se os impérios coloniais tiveram um efeito importante no take off de muitas economias europeias, nunca representaram senão quantidades pouco significativas das trocas económicas. A Europa negoceia sobretudo com a Europa. Ganhos económicos? No impulso sim, mas a mais valia é intra europeia. Tirando o período de Entre Guerras, que já hoje em dia aparece como um período de decadência imperial, tanto os ganhos económicos como a importância simbólica das colónias é relativamente menor, sobretudo entre as populações.


Por outro lado, os impérios coloniais tiveram custos imensos. A própria Inglaterra, apegada por excelência à sua jóia da coroa, a Índia, desde pelo menos a Primeira Guerra Mundial, começou a preparar-se para sair dela. Porquê? Porque estava a começar a custar mais do que dava ganho. A longo prazo a colónia tem mais custos que dá ganhos. Em pessoas, em cérebros, em ideias, em vidas humanas, em financiamento. Os americanos desde há muito que perceberam que saia mais barato deixar os custos de administração para os próprios povos e apenas fazer negócio com eles. Senão vejamos. A Europa entre os anos 50 e 60 perdeu um imenso património, as suas antigas colónias. Se o facto fosse tão desastroso assim, qualquer pessoa mais avisada diria que estes anos foram de miséria económica na Europa, ou pelo menos de retracção. Ora é precisamente quando a Europa perde as colónias que se expande como nunca o tinha feito sob o ponto de vista económico. Os lacrimejantes oficiais, associando a riqueza da Europa à miséria alheia, esquecem-se sempre de referir esta imensa contraprova.

Em boa verdade, o maior custo que a Europa impôs às outras culturas foi a maior benesse que lhes deu: o choque de civilizações. Nunca na História tanta disparidade de desenvolvimentos se havia visto. Uma Europa no século XIX confronta-se com um mundo que em muitos aspectos se encontrava séculos e mesmo mais de um milénio atrasado em relação a ela. Em alguns casos tecnologicamente, noutros cientificamente, noutros sob o ponto de vista da estrutura económica ou da organização social. A Europa é a primeira cultura que apresenta um pacote completo de vida humana a grande distância dos outros povos e de forma tão intensa. Muitos impérios houve com vizinhos retardados, mas o comum foi sempre o da conquista ser gradual. A Núbia acultura-se ao Egipto aos poucos. A Gália a Roma. Que o mundo inteiro seja invadido por um só paradigma, com tantas variantes e em acréscimo de uma civilização com paradigmas dialécticos é coisa jamais vista na sua dimensão. A verdade é que, ao contrário de mongóis e turcos, deixámos as nossas línguas, instituições, religião e cultura.


Vale a pena? Ora bem se a pergunta foi no pretérito, eu diria que sim no que à Europa respeita. O europeu é pouco orgulhoso dos seus impérios mas tem bons motivos para o estar. Ter tido poder nunca é vergonha para ninguém. Ter tido mais poder que alguma vez alguém teve da História não é desprestigiante quanto a mim. Temos mais razões para estar orgulhosos que velhos detentores de banais impérios continentais asiáticos que, esses, não obstante, sentem orgulho da sua confrangedora banalidade. Se valeria a pena hoje em dia, essa é outra questão. Eu diria que não. A ideia de império consistente na Europa é a do retorno. Um retorno pode ser expansivo, pode ser glorioso. Não significa fechar-se entre portas. Toda a revolução é uma restauração. Até a revolução francesa se instituiu como a restauração do estado natural de liberdade do homem. Por isso para mim o que de mais revolucionário e imperial pode fazer agora a Europa é restaurar-se. Em suma, ser o que é.



Alexandre Brandão da Veiga

1 comentários:

maria lisboa...... disse...

Não deixo de concordar com parte do que escreve, mas não, de forma alguma, quando diz que a "Europa" paga de forma voluntária o preço de alguma responsabilidade.
Recordo que dentro da Europa, tal como os Romanos, Hitler fez o seu Império ( à parte das barbáries por todos conhecidas ) e a Alemanha não pagou nem a dívida da grande guerra.
Helmut Kohl "esqueceu-se" de a pagar conforme acordado, no dia em que a mesma se unificasse. Merkel, a pouco inteligente senhora que só pensa nas eleições internas, também se esqueceu do que a Alemanha fez e deve quando ataca tudo e todos inclusive a Grécia que foi na época uma boa amiga e fiadora da dívida alemã.
Eu relembro sempre a que a Alemanha é a mãe de todas as grandes guerras e conflitos. Está-lhes no sangue. Basta ver como Merkel fala de nós. Como se fosse ( pois sente-se ) "superior".
São perigosos povos assim. Deviam ser domados. Deviam ter sido agregados à Áustria depois da segunda guerra. Agora viveríamos em paz.
Em relação às cruzadas penso ser exagerado falar em "reconquista". Quem delineou o mapa do Cristianismo? A linha está na separação entre Europa e África?
Cristo nem sequer é Europeu, nem branco nem de olhos azuis. Só por isso já estaríamos a criar ilusões. E o facto de os territórios terem sido barbaramente tomados em nome de Cristo, não quer dizer que o povo fosse cristão ou passasse a sê-lo. Basta ver o que se passou aqui na Península em várias ocasiões. Com Muçulmanos e Judeus.
Se vale a pena. Nunca vale a pena ter um Império. O fim acontece sempre e de forma nefasta para colonos e colonizados. Basta olhar para África e Europa pós URSS.
Um tema interessante e sempre polémico….Impérios.