domingo, 30 de março de 2008

Ao João Luis Ferreira

Caro João,
Agradeço-lhe não só a apreciação simpática do meu post, meio vivencial, meio godardiano, mas sobretudo a cuidada análise em profundidade a que o submete e que entra em territórios aos quais, em geral, procuro fugir.
O que separa os nossos “discursos”, chamemos-lhes assim, diferença que, segundo o João, eu marquei com uma indesmentível pontinha de irritação (amistosa, creia), é uma incapacidade minha para toda e qualquer meta-linguagem.
Não lhe vou dizer que “não se pode” falar de cinema a partir da conceptualização e da abstracção. Talvez mesmo eu conseguisse, se fizesse um esforço. Mas a preguiça arrasta-me, como uma doce vertigem, para a “doxa”, para o mundo de sentidos e de artefactos, de sombras e cavernas que são os olhos trementes da Lilian Gish no “Lírio Quebrado”, as portas que se abrem e se fecham atrás de John Wayne no “The Searchers”, a saia branca que esconde as elegantíssimas pernas de Cyd Charisse quando dança no parque em “The Band Wagon” .
E minto, não é só a preguiça, é também uma escolha intelectual. Tenho uma certa resistência (pudor?) em converter a euforia dessas sensações em conceitos absolutos. Eu gosto da caverna e escuso-me, por mais exaltante que seja a viagem, a bater as asas em direcção ao “mundo das ideias”.
É a mesma incapacidade que me dificulta uma clara tomada de posição nos debates cívicos e políticos que a Sofia Galvão muitas vezes, e bem, aqui nos propõe. Consigo pronunciar-me sobre a proibição do tabaco, sobre o caso BCP ou sobre a Guerra do Iraque (os meus prognósticos em todos estes casos atingiram índices de erro que até o Guiness se proíbe de registar), mas não consigo colher nesses factos e na sua discussão as “essências” que olhares mais atentos deles retiram – uma decadência de Portugal ou do Ocidente, para ir a tópicos mais batidos. Para sermos filosoficamente anedóticos: o meu “logos” não consegue desaguar nesse “nous”.
O João talvez diga, e talvez o assista alguma razão, que o que tenho é medo!

Invoco em minha defesa Wittgenstein:
“«Tenho medo» pode, por exemplo, ser dito simplesmente como uma explicação do meu modo de agir. Então isto está longe de ser um gemido, pode mesmo ser dito sorrindo.”
E é com este sorriso que me permito fugir outra vez às grandes sínteses estéticas, éticas ou políticas. Confessada a minha incapacidade, nada me impede de protestar com veemência o direito (e a necessidade) de outros, mais dotados e mais audazes, produzirem “sentidos últimos” ou grandes princípios de significação, seja a partir do bailado de Gene Kelly no “Singin’in the Rain”, seja da decisão de Sócrates reduzir o IVA.
Se for o João a fazê-lo, não deixarei de o ler com renovado prazer.

1 comentários:

João Luís Ferreira disse...

Caro Manuel,
Tem razão quando diz que são os nossos discursos que se separam nem tanto a sensibilidade que os origina. Devo-lhe a confissão do meu "método" depois de me ter feito a sua. Ao lê-lo percebo-o, mas eu não saberia exprimir-me do mesmo modo. A minha percepção das mesmas situações, ou de outras, encaminha-me para um tipo de reflexão que de algum modo se liberta das coisas em si. Não tiro menos gosto delas mas preciso de as reflectir para as compreender. Diria que só a estética (estesia) não me dá a sua dimensão poética.
A sua escrita tem um condão expressivo que lhe permite navegar essas "sinuosidades" dos sentidos, dos sentimentos sem um apelo de uma sistemática. A minha exige-me, não obstante o receio, tentativas de vôo que não se pretendem demandas absolutas dos sentidos últimos, como diz, mas demandas que a luz do absoluto as possam iluminar. Veja como não há nisto qualquer arrogância ou pretensão. É a confiança que tenho no destino do homem. E, por isso, vejo nos mesmos tropos que o Manuel descreve além da sua situação uma revelação ou uma ideia que me esclarece ou me ajuda a ir esclarecendo os símbolos de um real que não é só acidental mas sempre espelho de uma aproximação da verdade.
Mas compreendo a sua irritação com a meta-linguagem. A mim também me irrita, porque em geral ela apenas revela uma deserção para domínios opressivos do outro e por fim de nós próprio.A meta-linguagem que o irrita é a que esconde uma efectiva capacidade de sentir, se emocionar e comungar com os outros a mesma humanidade de que somos feitos. É o discurso que pulveriza a intimidade e pretende subjugar a individualidade em que cada um reconhece o outro por dele se distinguir. É o discurso dos que se julgam fora da caverna em que sabemos que estamos.
Por mim, vejo nas sombras lampejos da luz que são brilhos de esperança. E gostaria de ver a luz.
Um abraço