Fazer coisas belas a mulheres belas
Devo a Godard trinta anos de casamento estável. Já em Lisboa, lembro-me de rever Pierrot com uma rapariga de seda vermelha. Levei-a a ver A Bout de Souffle e Une Femme est Une Femme. A câmara filmava fascinada a beleza formidável e milagrosa de Jean Seberg e de Anna Karina. Vi que o cinema é fazer coisas belas a mulheres belas; percebi que a vida só podia ser igual. E eu e a minha rapariga de seda vermelha ardemos na noite como o último par romântico de Pierrot. Juntos vimos, fechados numa sala da Gulbenkian, todos os episódios de Six Fois Deux. Suportámos, estóicos, offs intermináveis sobre a luta de classes enquanto a imagem apenas mostrava uma pescada morta sobre um prato. Com essa ciência, nada nos podia já separar. Li então, e por atacado, tudo o que Godard escrevera nos Cahiers. Jamais o cinema voltará a ser escrito assim. Como jamais a história do cinema será filmada como o foi, de A Bout de Souffle (extraordinária homenagem ao cinema americano) às Histoires du Cinéma. E talvez ninguém volte a filmar as mulheres como esse míope e misógino filmou a nuca rapada de Seberg, os lábios de Karina, os olhos de Wiazemski com cinzentos de Velasquez, as coxas, o belo cu de Bardot.
Mais tarde, Godard subiu ao céu, e entre céu e terra filmou - Puissance de la Parole - Deus e a Virgem Maria. Foi a última vez que me bati por ele. À porta da Cinemateca, Je Vous Salue Marie, ajudei como pude, ombro a ombro com a PSP, para que os meninos de Abecassis não impedissem a sessão.
Temo, ingrato e preconceituoso, embirrrar com o homem. Mas só os filmes dele se fundiram com a minha vida. Só com eles sonhei, amei e lutei como se fossem o maravilhoso e último canto da vida. Cinéma, mon beau souci.
Publicado hoje no "Público", só por causa da amizade cúmplice do Mário Augusto.
4 comentários:
Não sei o que é que em si é maior, se o amor pelas mulheres, pelo belo, pelo cinema, ou por África, e nem sei se a ordem é esta. Seja como for, abençoado.
Gostei muito.
Sofia e Madalena, agradeço sinceramente o aplauso. E espero que, se bem interpreto um velho Mestre, este nosso momento de prazer partilhado seja o passo certo para um merecido esquecimento. Lembro o que disse Josef von Sternberg: "The only way to suceed is to make people hate you. That way they remember you".
Já tinha lido o texto no Público. É belíssimo. Ame-se ou odeie-se Godard (ele não será, de facto, esquecido).
Um abraço
Enviar um comentário