Fazer coisas belas a mulheres belas
 Não dei um passo na vida em que não tropeçasse num filme de Jean-Luc Godard. Só o vi uma vez, no Forum Picoas. Genial e cabotino, Godard a fazer, como se esperava, de Godard. Ninguém se queixou. Nem eu me queixo dos filmes dele, cujo confessado programa é o de rimar homens com mulheres, o cinema com a vida. E disso, juro-vos que gosto.
Não dei um passo na vida em que não tropeçasse num filme de Jean-Luc Godard. Só o vi uma vez, no Forum Picoas. Genial e cabotino, Godard a fazer, como se esperava, de Godard. Ninguém se queixou. Nem eu me queixo dos filmes dele, cujo confessado programa é o de rimar homens com mulheres, o cinema com a vida. E disso, juro-vos que gosto. Reencontrei Godard no Lobito, estava ele nos “anos Mao” e eu em êxtase revolucionário e independentista. Sabe Deus porquê, exibia-se no Flamingo (esplanada também, mas de costas voltadas para o mar) o Weekend. Perdidos no cosmos, Unita e Mpla preparavam dias e noites de facas longas, em que se iriam trucidar fraternalmente, e Godard, no mais longo travelling da história do cinema, filmava carros destroçados, feridos ensanguentados, corpos a arder. À minha volta havia um mundo em desagregação. No filme, Godard obrigava-me a ver, de cabeça levantada, terroristas revolucionários que praticavam o canibalismo. Onde é que começava o cinema, onde é que acabava a vida? Foi a primeira vez que escrevi sobre um filme.
Reencontrei Godard no Lobito, estava ele nos “anos Mao” e eu em êxtase revolucionário e independentista. Sabe Deus porquê, exibia-se no Flamingo (esplanada também, mas de costas voltadas para o mar) o Weekend. Perdidos no cosmos, Unita e Mpla preparavam dias e noites de facas longas, em que se iriam trucidar fraternalmente, e Godard, no mais longo travelling da história do cinema, filmava carros destroçados, feridos ensanguentados, corpos a arder. À minha volta havia um mundo em desagregação. No filme, Godard obrigava-me a ver, de cabeça levantada, terroristas revolucionários que praticavam o canibalismo. Onde é que começava o cinema, onde é que acabava a vida? Foi a primeira vez que escrevi sobre um filme.  Devo a Godard trinta anos de casamento estável. Já em Lisboa, lembro-me de rever Pierrot com uma rapariga de seda vermelha. Levei-a a ver A Bout de Souffle e Une Femme est Une Femme. A câmara filmava fascinada a beleza formidável e milagrosa de Jean Seberg e de Anna Karina. Vi que o cinema é fazer coisas belas a mulheres belas; percebi que a vida só podia ser igual. E eu e a minha rapariga de seda vermelha ardemos na noite como o último par romântico de Pierrot. Juntos vimos, fechados numa sala da Gulbenkian, todos os episódios de Six Fois Deux. Suportámos, estóicos, offs intermináveis sobre a luta de classes enquanto a imagem apenas mostrava uma pescada morta sobre um prato. Com essa ciência, nada nos podia já separar.
 Devo a Godard trinta anos de casamento estável. Já em Lisboa, lembro-me de rever Pierrot com uma rapariga de seda vermelha. Levei-a a ver A Bout de Souffle e Une Femme est Une Femme. A câmara filmava fascinada a beleza formidável e milagrosa de Jean Seberg e de Anna Karina. Vi que o cinema é fazer coisas belas a mulheres belas; percebi que a vida só podia ser igual. E eu e a minha rapariga de seda vermelha ardemos na noite como o último par romântico de Pierrot. Juntos vimos, fechados numa sala da Gulbenkian, todos os episódios de Six Fois Deux. Suportámos, estóicos, offs intermináveis sobre a luta de classes enquanto a imagem apenas mostrava uma pescada morta sobre um prato. Com essa ciência, nada nos podia já separar.  Li então, e por atacado, tudo o que Godard escrevera nos Cahiers. Jamais o cinema voltará a ser escrito assim. Como jamais a história do cinema será filmada como o foi, de A Bout de Souffle (extraordinária homenagem ao cinema americano) às Histoires du Cinéma. E talvez ninguém volte a filmar as mulheres como esse míope e misógino filmou a nuca rapada de Seberg, os lábios de Karina, os olhos de Wiazemski com cinzentos de Velasquez, as coxas, o belo cu de Bardot.
Li então, e por atacado, tudo o que Godard escrevera nos Cahiers. Jamais o cinema voltará a ser escrito assim. Como jamais a história do cinema será filmada como o foi, de A Bout de Souffle (extraordinária homenagem ao cinema americano) às Histoires du Cinéma. E talvez ninguém volte a filmar as mulheres como esse míope e misógino filmou a nuca rapada de Seberg, os lábios de Karina, os olhos de Wiazemski com cinzentos de Velasquez, as coxas, o belo cu de Bardot.
Mais tarde, Godard subiu ao céu, e entre céu e terra filmou - Puissance de la Parole - Deus e a Virgem Maria. Foi a última vez que me bati por ele. À porta da Cinemateca, Je Vous Salue Marie, ajudei como pude, ombro a ombro com a PSP, para que os meninos de Abecassis não impedissem a sessão. 
 Temo, ingrato e preconceituoso, embirrrar com o homem. Mas só os filmes dele se fundiram com a minha vida. Só com eles sonhei, amei e lutei como se fossem o maravilhoso e último canto da vida. Cinéma, mon beau souci.
Temo, ingrato e preconceituoso, embirrrar com o homem. Mas só os filmes dele se fundiram com a minha vida. Só com eles sonhei, amei e lutei como se fossem o maravilhoso e último canto da vida. Cinéma, mon beau souci.
 Publicado hoje no "Público", só por causa da amizade cúmplice do Mário Augusto.
Publicado hoje no "Público", só por causa da amizade cúmplice do Mário Augusto. 
 

4 comentários:
Não sei o que é que em si é maior, se o amor pelas mulheres, pelo belo, pelo cinema, ou por África, e nem sei se a ordem é esta. Seja como for, abençoado.
Gostei muito.
Sofia e Madalena, agradeço sinceramente o aplauso. E espero que, se bem interpreto um velho Mestre, este nosso momento de prazer partilhado seja o passo certo para um merecido esquecimento. Lembro o que disse Josef von Sternberg: "The only way to suceed is to make people hate you. That way they remember you".
Já tinha lido o texto no Público. É belíssimo. Ame-se ou odeie-se Godard (ele não será, de facto, esquecido).
Um abraço
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