domingo, 30 de março de 2008

Correio do Leitor: Carta a Manuel S. Fonseca

Caro Manuel:

O seu post de ontem é uma excelente deambulação pelo que de mais adequado e próprio caracteriza o cinema. Entre os sonhos de uma juventude germinante, e no seu caso mergulhado na sensualidade luxuriante de um continente onde um certo isolamento (como as ilhas distantes) devolve o homem às suas pulsões mais puras e idílicas, cair-lhe na frente, diria, na frente de uma alma curiosa, ávida e meditabunda de adolescente, uma revelação em cinemascope, trazendo notícias de um mundo que existe — o esplendor do universo feminino—, que materializa uma imagem do desejo que sente, é um momento marcante para toda a vida futura.

O cinema trouxe-lhe uma revelação e o Manuel fez dele um amigo de viagem. O encontro com a sua alma gémea fez dele (o cinema) um sacerdote que testemunhou a autenticidade e pureza das intenções que 30 anos de casamento estável não deixam negar. Por isso, o cinema e a vida para si não têm limites definidos em que um comece e outro acabe com clareza.
No post que escrevi sobre cinema e que, então, me pareceu irritá-lo, por detrás da sua boa educação, que é da sua natureza, e do seu estilo literário, que aprecio com sinceridade, escrevi precisamente sobre estes dois aspectos do cinema (registo e substituição): ou seja, substituir a realidade, através do registo das imagens que fascinam e criam ilusão, por uma ficção desejada e que gera o próprio universo em que vivemos estampado num imaginário em que nos revemos.
A presença do cinema e de uma cultura de imagem que atravessou tão poderosamente o século XX, e em novos termos se reformula no século XXI, não deixou nem deixa ao homem contemporâneo muito espaço para que não faça de si mesmo uma espécie de actor no mundo real que vive no mundo da ficção. Muito poucos são indiferentes ao efeito de espelho que o cinema incrustou no nosso imaginário. Em muitos momentos da vida nos sentimos como se estivéssemos num filme, temos necessidade de contar o que nos acontece como se estivéssemos a contar um filme, vemo-nos em situações que nos parecem cinematográficas. E, porque não dizê-lo, muitos sentem uma alegria irrecusável nessa sensação. É como se pudessem ser os heróis que não são senão para si próprios. O poder do registo dá uma sensação de imortalidade e quase ninguém quer ficar de fora.
Porém, talvez valesse a pena pensarmos sobre o lado perverso e manipulador que esta aparente inocência trás consigo. Viver através de uma imagem ou de um ambiente ficcional é uma evasão que penso ser o que a Agustina Bessa-Luís escreveu no texto que então citei. É recusar a individualidade para viver por interposta pessoa.
Viver pela imaginação é uma constante do homem já que não há realidades objectivas e desocultadas. Mas viver pela imaginação é viver concebendo e congeminando um futuro que vamos construindo e não nos aparece feito nem definitivo. O perigo das imagens é que elas nos prendem, e quem ficar refém dessas imagens que nos prendem, por não estar preparado para as ver ou se não tiver uma certa consciência da liberdade individual que nos caracteriza e distingue uns dos outros, dissolve-se num igualitarismo de massas e numa espécie de homem abstracto ao qual, ainda há dias, o Manuel referiu como capaz das maiores barbaridades. Como bem atestam os efeitos dos anúncios de televisão, o cinema não consegue expurgar-se de uma certa subliminaridade que comunica ou activa regiões recônditas e ignoradas do nosso ser. É esse o seu perigo: o não-explícito que gera prosélitos.
No seu caso, como o seu post bem pode atestar, não houve esse risco, ou se houve ele foi superado pelo que mais importa. Não foi o cinema que lhe deu 30 anos de casamento estável, foi sim, o facto de o Manuel e a rapariga do vestido de seda encarnado se amarem e terem nas cumplicidades do crescimento do amor não a origem mas as portagens desse amor. Por isso, também, terão saído do ecran e vivido na realidade.
Um abraço
João Luís

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