quarta-feira, 31 de outubro de 2007

La Nuit Sexuelle: Two Shots for Happy

Eu não estava lá. Eu não estava lá na noite em que fui concebido.
Sobre esta falha, sobre essa imagem que nunca vimos e que nunca veremos, sobre a falta dessa imagem que a miríade de imagens que nos cerca e sufoca não consegue fazer esquecer, Pascal Quignard fez um livro.
Chamou-lhe “La Nuit Sexuelle” e é um livro de imagens. Ia dizer que neste album deslumbrante prevalecem as imagens doutras noites, iguais porventura à noite fundadora a que dificilmente poderíamos assistir, e que, nas espessas noites que as imagens de Quingnard reproduzem, julgamos escutar, tementes e trementes, repulsiva e fascinadamente, o eco da imagem que jamais se revelará aos nossos olhos... “Maintenant je désire m’engloutir dans cette nuit qui d’entrée de jeu comuniqua sa couleur à ces pages.” E, no entanto, essa “noite sensorial”, presente embora, não é, ao longo de “La Nuit Sexuelle”, nem avassaladora, nem sequer dominante.
Livro soberbo, nele se cruzam, maravilhosamente reproduzidos, quadros de Caravaggio e Rubens, de Leonardo e Ticiano, de Goya e Picasso, de Regnier e Van Den Hoecke. Correndo a par de um texto minimal, deliciosa e insensatamente francês (if you know what I mean), há também desenhos anónimos do sec. XV ou do séc XVII, anónimos chineses e anónimos egipcíos, há Pietás e Massacres de Inocentes, há mãos que empunham falos, há ninfas empaladas e sacríficios satúrnicos.
Quando chegamos ao fim dos 27 capítulos de “La Nuit Sexuelle”, depois do nosso olhar ter viajado por mais de duzentas pinturas em que habitam a nudez, o crime, o voyeurismo e a carnalidade, sabemos que toda essa visibilidade não nos revelou ainda a “cena invisível”, Mas sabemos talvez que essa “cena” está na origem da pintura, tanto mais quanto, em latim, pénis (penicillus) quer até dizer “pequeno pincel”.
La Nuit Sexuelle” é o livro de uma alegria negra, como negras são, literal e graficamente, as suas páginas de um couché tão suave como a pele em que, numa noite que nunca vimos, dedos se perderam, outros dedos se encontraram.
Tinha prometido que, regularmente, viria aqui com os meus “Two Shots for Happy”, a minha rubrica "obsessivamente optimista e encantada". Calhou ser outra vez um livro. Este foi editado, com brio e farto investimento, pela Flammarion. Tem 19,5 cm de comprimento por 28 de largura. A encadernação, com sobrecapa. abriga 279 páginas gloriosas, às vezes tórridas. Custa 85€. Abençoado dinheiro.

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terça-feira, 30 de outubro de 2007

5 notas 5 filmes (em cartaz)

Fados de Carlos Saura

Trata-se de um filme entre o documentário e a recriação encenada da música, cruzando relações tipológicas e cruzando a produção tipicamente televisiva com a cinematográfica. Para quem gosta de Fado pode fechar os olhos e ouvir. Para quem não gosta, a realização não vai induzir esse gosto. Ou seja, não é teledisco mas também não é cinema. Ou antes, pode ser também cinema porque no cinema cabem toda a forma e tipologia de registo. Dizemos é que, neste filme, o cinema enquanto cinema de autor, não se revela. O registo do Fado sobrepõe-se-lhe sempre. Fica o prazer, apesar de tudo cinematográfico, de espreitar, no caso, Oulman e Amália a comporem uma interpretação.

The Innerlife of Martin Frost de Paul Auster

Fica-se com a sensação de que Auster não precisava de fazer este filme. A composição e as características das personagens não é agradável, nem inquietante (excepto os risos de Irène Jacob na cena do jantar de reconciliação a revelarem a sua natureza imaginária). As personagens percorrem clichés, talvez cultos, mas sem chama. Diria, forçados. Tudo parece ser tão duro e inapropriado como o jogo de lançar ao alvo as chaves de fendas. O próprio contraste entre os dois escritores Martin Frost e o canalizador tem uma pretensão pouco conseguida. O que é dramático leva-se demasiado a sério e o que é cómico é demasiado grotesco. A ideia das musas inspiradoras serem, afinal, à medida da imaginação de cada um, torna a arte poética subsidiária da psicologia, aprisionando a imaginação ao real e não ao sobrenatural.

Chansons d’Amour de Christophe Honoré

Os franceses têm uma tradição cinematográfica que lhes dá respaldo para estes divertimentos. Sem inventar propriamente (as referências são claras e assumidas para além de Les Parapluies de Cherbourg de Jacques Demy de 1964 há os relativamente recentes On connait la chanson de Alain Resnais de 1997, 8 Mulheres de François Ozon de 2002), C.H. realiza um filme em que os sentimentos e os diálogos de amor — queixumes, recriminações, promessas, balanços, declarações, solilóquios — são cantados. As músicas são tipicamente francesas entre o ligeiro e o poético. Há citações ou recriações de imaginários cinematográficos o ménage (literário) à trois recorre de uma imagem de ”Domicile Conjugal” de François Truffaut. As personagens, no entanto, não têm verdadeira densidade dramática embora se tente dar à sua evolução uma lógica sentimental que eclode com alguma surpresa num desenlace lentamente anunciado. Mas tudo se fica pela epiderme dos sentidos. Uma certa sensação de vazio e desespero de uma juventude que já não é rebelde porque é aceite mas que não tem um imaginário construtivo, nem fundador, nem idealista. A vida arrasta-se pelas sensações. As canções de amor de Alex Beaupain são bem conseguidas talvez pour la beauté du geste.

The Brave One de Neil Jordan

No cinema americano as produções são sempre garantidas por um rigoroso escrutínio das coerências formais e narrativas. O cinema americano, em geral, não prende pelas ideias, mas pela capacidade de envolver o espectador. Como toda a indústria, não quer perder o mercado alvo. O cinema como entretenimento sendo poderoso, muito poderoso, não acrescenta muito ao cinema como arte. O seu moralismo q.b. não pretende descodificar ou criar novos mitos, mas antes criar um diálogo com o público e uma aderência deste. Nesta excelente interpretação, Jodie Foster sucumbe à mesma Ira a que já sucumbira o agente representado por Brad Pitt em Seven (Sete Pecados Mortais). Mas a verdade é que, se não sucumbisse, nada mudava. Era o mesmo filme. O que sobressai neste filme é concepção de uma dupla personalidade no ser, a qual está pronta a entrar em cena, se a isso for obrigada, por uma dor que lhe diz que não havendo esperança também nada há a perder. Por isso, um perdão ao criminoso no momento final em nada mudaria a história porque o outro, o estranho que se apoderou do ser ferido de morte, é um ser frio e calculista que se alimenta dessa mesma dor e não lhe vai permitir sarar a ferida. É, de algum modo, a sua própria morte prolongada numa agonia existencial. Ou deveria dizer Inferno?

Rescue Dawn de Werner Herzog

Os filmes baseados em histórias verídicas têm sempre um aliciante histórico-documental. Porém, incorrem no risco de defraudar a história como ela aconteceu por interesse estético, financeiro, por falta de suficiente informação ou por interesse de recontar a história e imortalizar uma versão que convém ao seu autor ou a um grupo. Torna-se, assim, difícil ignorar que saga de um sobrevivente exclua a heroicidade dos que não tiveram a sua sorte embora tenham tido o mesmo empenho, audácia e coragem.
A história do resgate do piloto americano de origem alemã, Dieter Dengler (Christian Bale) deixa na penumbra e no esquecimento os outros seis companheiros de fuga de uma prisão Vietcong no Laos (um deles nem é mencionado). O cinema tem este poder manipulador de registar e propagandear um lado conveniente da verdade factual.
Se nos centrarmos apenas no percurso heróico de Dieter Dengler, temos uma história em que a força psíquica de um indivíduo o salva perante todas as adversidades — a impiedade dos camponeses, o labirinto natural da selva, a falta de comida e de agasalho, a infinita distância até à Tailândia, a perda dos companheiros — e o bafeja com a sorte de ser resgatado no limite das suas forças. W.H. recria ambientes em que a realidade psíquica se sobrepõe à crueza do real e, nisso, o filme tem uma mão talentosa. Pena cair na visão unilateral da verdade e num certo fim hollywoodesco. Teria sido melhor inventar uma outra história.

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Zero vírgula vinte e cinco porcento

Ontem foi um verdadeiro momento de serviço público na RTP, como diria o Pedro Norton. Só vi uma parte pequena do programa, quando estavam os presidentes de dois bancos portugueses a olhar para Joe Berardo com curiosidade e, no fundo, a apreciarem a atitude e a ciência negocial desse génio do nosso mundo empresarial (confesso que tenho uma especial admiração por Berardo – e não por causa da sua colecção de arte).

Não saberemos se foi alguém de um dos bancos que telefonou para a RTP e disse: - “Minha senhora, estaria interessada em fazer um programa sobre uma proposta de negócio muito importante para o País e em que estarão presentes A, B e C?” Ou se foi a RTP que teve o rasgo de convidar alguns dos principais protagonistas de um grande negócio em projecto para fazer o programa em causa. De qualquer forma, a verdade é que a televisão pública prestou um serviço inestimável a essa possível transacção. O programa de ontem informou uma enorme massa de accionistas sobre as vantagens e desvantagens da dita transacção.

A televisão pública merecerá seguramente uma comissão de 0,25% sobre o valor do negócio em vista. Isso ajudará a pagar o défice ou a diminuir a contribuição dos contribuintes.

A união de bancos é inevitável e haverá quem ganhe e quem perca com isso. É acima de tudo uma medida de protecção da propriedade, pois torna os bancos menos vulneráveis a compras hostis. Está escrito nos livros que os bancos grandes não são necessariamente mais rentáveis do que os pequenos. Para além disso, o consumidor vai perder um operador do mercado, o que faz diminuir a concorrência. Essa perda é momentânea, pois se os bancos são de facto pequenos, mais tarde ou mais cedo serão comprados. Todavia, todas as contas feitas, é melhor para todos que os bancos de dimensão pequena se juntem.

Mas será que é papel da RTP ajudar a esta missa? - Acho que não.

Depois do sucesso do programa de ontem, de negociação ao vivo, tenho a certeza de que a SIC e a TVI estão já a preparar próximas séries do Big Brother com empresários e os seus dramas de negociações à séria.

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segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Da verdade e da mentira em política

No Público de ontem, António Barreto escreve sobre a mentira como virtude política. Diz ele que a mentira, a fria mentira transformou-se em instrumento de governo. Se em tempos houve má consciência, agora as coisas mudaram: mentir é possível, simples e necessário. Sem remorsos nem correcção.
Só em Portugal, e no nosso passado recente, mentiu-se nos impostos, no emprego, nas pensões e abonos, nos referendos. Continuando a citar, mentiu Durão Barroso, mentiu e mente Sócrates.
Mas não apenas. Mente-se mundo fora. E, aí, a guerra do Iraque, conclui António Barreto, foi mesmo o paroxismo: nesse quadro, as mentiras de Bush e Blair transformaram em meros pecadilhos as mentiras de George Bush pai, sobre os impostos, de Nixon, sobre tudo, ou de Clinton, sobre o sexo.
Em síntese, António Barreto sustenta que a democracia vive hoje da mentira. Sob todas as suas formas: ocultação, contradição, correcção, circunstância superveniente ou melhor ponderação.
Como pano-de-fundo, desculpando e induzindo a mentira, os media. António Barreto aponta-llhes o dedo e assume que, com frequência crescente, gostam do novo hábito. Que usam com volúpia. Ou perdoam com malícia.
Ao ler isto, na calma do meu domingo, lembrei-me de Montesquieu e do seu Elogio da Sinceridade. Lembrei-me de Hannah Arendt e do seu Verdade e Política. Graças a António Barreto, passei uma tarde entregue à recusa dos aduladores, à refutação de enganos, hipocrisias e fingimentos, à recusa do narcisismo, ao apego à verdade dos factos e à verdade do sujeito para consigo mesmo, à apologia da verdade no espaço público. No fim, estava longíssimo da realidade que inspirara António Barreto. Mas, com ele, muito descrente da possibilidade de recuperar a verdade como valor político.
Estranhamente, ou talvez não, acabei a recordar os tempos em que, com absoluta leveza, fui descobrindo e revelando tantos detalhes da vida na opção decisiva entre verdade e consequência...

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domingo, 28 de outubro de 2007

Che Che Che

Peculiar, muito peculiar, o modo de ser dos portugueses, povo de sonho, bruma e longínqua distância, como se apenas pelo sonho, na longínqua distância, entre brumas, verdadeiramente pudesse, como se apenas na longínqua distância, entre brumas, verdadeiramente real o sonho seja. Sim, ninguém mais senão um português, um autêntico português, poderia ter escrito «quero-te para sonho, não para te amar».

Longe da Pátria, tudo à Pátria sempre apela, não como necessidade física de aí estar ou aí sempre ter permanecido, mas como inexorável necessidade de permanecer ligado, intelectualmente ligado, como permanente necessidade, imperativa necessidade de incarnação Pátria.

Longe, natural o redobrado ímpeto de regressar ao «Geração de 60», como quem regressa a porto seguro, a uma geração livre, consciente da tradição e do seu significado, com o peso de saber querer «fazer a diferença». Ah!, mas ele há o Aquecimento Global, as Alterações Climatéricas, a Globalização... Regressa-se ao «Geração de 60» e que encontramos de significativo?... O Ernesto, o dito Che, para os amigos. O Che, agora, afinal, aristocrata, um Cruzado, um mito, um quase Nuno Álvares pereira, um quase santo. Sem pontos de exclamação nem reticências. O Aquecimento Global, as Alterações Climatéricas, a Globalização, talvez as idas à Lua, os Satélites, tudo se confunde: ser nascido de pais possidentes com ser aristocrata; mistificação com mito; loucura facínora com santidade... O Aquecimento Global, as Alterações Climatéricas, a Globalização...

...E, entretanto, do famigerado Tratado de Lisboa, nem uma linha. Importa o nosso Direito mais e mais subordinado ser ao Comunitário? Os direitos ao Mar que é nosso ver, a pouco e pouco, usurpados serem?...

Não, não vamos estragar os festejos. Ela já há o Aquecimento Global, as Alterações Climatéricas, a Globalização...

Diziam os antigos que «enlouquecem os deuses aqueles que querem perder». Talvez seja isso; talvez não sejamos mais do que isso: uma geração perdida _ completamente enlouquecida e, por consequência, perdida.

Talvez , pelo Aquecimento Global, as Alterações Climatéricas, a Globalização, mereçamos mesmo o Tratado de Lisboa... Infelizmente? Talvez, ainda uma vez mais _ mas, seja como for, certo é serem também já cada vez menos os muito poucos a darem por isso.

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A Pobreza


Referi, no meu post anterior, o artigo de João Pereira Coutinho sobre a polémica causada pelas declarações do cientista James Watson, sustentando que os brancos são mais inteligentes do que os pretos. Mas o “Expresso” tem, esta semana, outros acrescidos motivos de interesse.

A curta entrevista de John Horgan, autor de “O Fim da Ciência”, a propósito da Conferência sobre a Ciência promovida pela Fundação Gulbenkian, convida-nos a ler mais sobre o assunto. Promete-nos, acima de tudo, que as neurociências (actual Cristiano Ronaldo das ciências) resolverão o código neuronal e que esse será o avanço do conhecimento mais espectacular que podemos ambicionar nos próximos tempos. Mas avisa-nos de que não vale a pena ter ilusões demiúrgicas: restará, como sempre, o Mistério. Nem a origem do Universo, nem a origem da Vida estão, ou estarão, ao alcance dos nossos saberes.

Noutra dimensão, mais modesta mas porventura mais perturbadora, Joaquim Manuel de Magalhães escreve, no “Actual”, um artigo pungente e irrecusável sobre a forma como a conjugação da pobreza (ou de uma escassez financeira que está dela muito próxima) com a apatia e o desencanto estão a destruir a classe média portuguesa. Apontando uma “taxa de pobreza objectiva” que chega a 20% da população, e com 47% dos cidadãos nacionais a considerarem-se pobres, Joaquim Manuel de Magalhães pinta sobretudo o retrato quotidiano dos agregados familiares (ou pessoas sozinhas) atingidos, que vão de professores a médicos, de artistas a jovens no primeiro emprego. Não é um nenhum apelo ao “levantamento das massas” nem à decapitação de Maria Antonieta. É apenas um artigo lúcido, lógico e da mesma profunda humanidade que caracteriza a sua obra poética. Imperdível. No “Actual” do “Expresso”.

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sábado, 27 de outubro de 2007

Plebeus e Elitistas


Outra machadada dialéctica na minha vida. Leitor e admirador de Scruton, descubro que lê-lo, e agora editá-lo, foi pura perda de tempo. Quem, elevando-me de arrasto lá para o céu, “somewhere among the clouds above”, me fez ver cá em baixo a dura realidade, foi o Alexandre, meu camarada de blog, que em quatro vigorosos posts lhe criticou laboriosamente as teses do nostálgico e, julgava eu, belíssimo “England, an Elegy”.
Estou certo de que admiradores mais fiéis e obstinados se vão dispor a terçar argumentos. Mas eu li, percebi e não me vejo a passar por essa vergonha. O motor imóvel da tese da Alexandre não dá margem a discussões: Scruton tem mesmo um problema congénito. Plebeu como é, “falta-lhe –e estou a citar – a elevação de vistas que só pode ter quem nasceu nas alturas.” A fulgurante validade sociológica, filosófica e científica deste autêntico “motor imóvel”, emudece qualquer discussão.
Confesso que aquele impensado classista me recorda, mutatis mutandis, alguns deliciosos e gloriosos episódios dos tempos dos “amanhãs que cantam”. Coisas do meu esquinado passado esquerdista. Lembro-me de que a introdução de algum módico de racionalidade no desvario ditatorial do proletariado era sempre contrariado com essa incapacidade de “elevação de vistas”que a burguessíssima origem de classe me bloqueava e a que só os operários de todo o mundo (e os camponeses na China) poderiam alcandorar-se. Todos “nascidos na alturas”, bem entendido. Ou de como as teorias das elites e a marxizante visão da luta de classes são bons espíritos dispostos a alguma carnal convivialidade...
Longe de mim, qualquer intenção polemizante. Os posts do Alexandre são um refrigério estimável, ainda e quando nos levam mais pelo vale das sombras do que pelo “tumult in the clouds” do velho poeta (aristocrata?) irlandês. E, no fundo, as teses do plebeu metido a elitista que é Roger Scruton são, como tudo o que se escreve, “ficções”.
Hoje mesmo, e sobre outras “ficções”, João Pereira Coutinho anima o “Expresso” com uma bela prosa. Quando se comparam classes, raças, sexos, passe embora o direito que a todos assiste de escreverem as ficções que muito bem entendam, tenho para mim que há uma obrigação mínima para uma teoria ser galante e aristocrática: a de fugir à fácil muleta da generalização.
Para as ficções que cultivamos, cada um escolhe também o pathos que muito bem entende. O de Scruton quer ser elegíaco e elitista, ilegítimo no berço dirá o Alexandre, mas vertido, digo eu, numa prosa irrepreensível, de um bom gosto limpo de inanidades sobranceiras. Ainda assim, a ser-me dado escolher, neste fim de tarde que o sol de Outono aquece, prefiro deixar-me levar pela interioridade estóica e desencantada que emana destes versos de Yeats. Elitismo? Ou plebeísmo?


I KNOW that I shall meet my fate
Somewhere among the clouds above;
Those that I fight I do not hate,
Those that I guard I do not love;
My country is Kiltartan Cross,
My countrymen Kiltartan's poor,
No likely end could bring them loss
Or leave them happier than before.
Nor law, nor duty bade me fight,
Nor public men, nor cheering crowds,
A lonely impulse of delight
Drove to this tumult in the clouds;
I balanced all, brought all to mind,
The years to come seemed waste of breath,
A waste of breath the years behind
In balance with this life, this death.

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quinta-feira, 25 de outubro de 2007

IV. Roger Scruton, England, Chatto & Windus

É evidente que Scruton afirma que em última análise apenas conta uma história. Uma história sobre os ingleses, ou melhor sobre a Inglaterra. É verdade que reconhece que a grande cultura inglesa, como todas as outras é afinal cosmopolita, embora não tenha a lisura de reconhecer que, mais que cosmopolita é europeia, dado que a imensa maioria de nomes que cita são, e não por acaso europeus. Mas o que reconhecer é incompleto. Pretende fazer um elogio e para isso conta um história. Como a conta mal, o elogio fica coxo. Há coisas bem mais belas a dizer sobre a Inglaterra que as que a low middle class consegue dizer.

A sua visão é a de um voyeur que repete lugares comuns sobre imagens que lhe vinham de classes que lhe eram superiores. A sua nostalgia é a de um lugar que nunca poude ocupar. O que tem de específico a Inglaterra é o ter tido dois fenómenos em conjunto: uma classe media temporã e a expansão desse modelo. Outros países tiveram classe media mais cedo ainda que a Inglaterra. A Itália medieval, a Londres, os Países Baixos, o Midi francês. A diferença é que foram absorvidos pela aristocracia ou não tiveram a capacidade de excisão do seu modelo idêntico à da classe média britânica. Por isso se compreenda que Scruton se defina como um conservador céptico. Burke era um conservador realista. Falava do que sabia e do que via ser realidade. O seu respeito e admiração pela França e pela cultura continental era também sustento da sua admiração pela Inglaterra.

Scruton tem muita coisa que lhe permitiria ser um grande pensador. É inteligente, culto, independente. Mas estando dominado pela sua origem social, não conseguindo dela libertar-se, é mais um exemplo afinal do que a sociedade britânica antiga que tanto elogia conseguiu criar de limitação. Ao contrário do grande aristocrata Burke falta-lhe a elevação de vistas que só pode ter quem nasceu nas alturas.


Alexandre Brandão da Veiga


http://www.roger-scruton.com/
http://roger-scruton.blogspot.com/
http://www.newcriterion.com/archive/21/feb03/burke.htm
http://web.educom.pt/~pr1327/online/RevolucaoLogicaModerna.doc
http://www.mmisi.org/ir/39_01_2/scruton.pdf

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Quem tem Pipi tem tudo




"O serviço público de televisão vai integrar dois novos canais, dedicados ao público infanto-juvenil e ao conhecimento, e que deverão ser lançados até 2011, segundo o projecto do contrato de concessão hoje apresentado pelo Governo. O serviço público deverá ainda integrar, segundo o projecto, dois canais generalistas de sinal aberto, dois canais regionais de sinal aberto, dois canais internacionais, um canal temático-informativo e os "canais e outros serviços audiovisuais especialmente concebidos para novas plataformas de distribuição", o que abrange a RTP Mobile e os canais de Televisão Digital Terrestre que a RTP vier a transmitir." in Público 23.10.07


De facto tudo isto me parece absolutamente prioritário. Especialmente o canal dedicado aos petizes. Sempre defendi que poder ver gratuitamente a Pipi das Meias Altas devia ser um direito consagrado na Constituição. Isto já para não falar do Noddy. Os canais regionais também me parecem vir suprir uma necessidade gritante na sociedade portuguesa. Afinal o país inteiro clama por um lugar em horário nobre para as morcelas de Arouca. E o canal técnico-informativo? Se bem entendo é mais uma forma de o nosso Engenheiro poder falar ás massas ignaras. O que, convenhamos, é um objectivo bem patriótico.

Alvíssaras portanto!

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quarta-feira, 24 de outubro de 2007

III. Roger Scruton, England, Chatto & Windus

Se bem virmos, Scruton usa uma estratégia que é a mais banal para quem fala da Inglaterra, seja para a elogiar seja para a vilipendiar. Esta estratégia é de quádrupla distorção: do que é a cultura inglesa, do que é o mito francês, a cultura continental e o sabor do mediterrâneo.

Em primeiro lugar a distorção inglesa. Quem Scruton descreve não é o inglês de sempre, mas apenas um inglês pós-victoriano, eduardino, georgiano. Em boa verdade os victorianos estavam demasiado ocupados a criarem os valores vitorianos para se deixar guiar por eles. Foram as gerações seguintes que acreditaram nesses valores ao ponto de estar em perpétua revolta contra eles. Wilde, Shaw, Russell, Huxley, o grupo de Bloomsbury, os Webb são nesse sentido bem mais representantes do espírito victoriano que as gerações de meados do século XIX. O próprio exemplo de Shakespeare como o mais inglês dos escritores é discutível. Shakespeare é o oposto do victoriano. É carne, violência de sentimentos, exposição e desnudamento do ser humano, intimidade, revolta, agitação, fúria, paixão, desmesura e retorno ao equilíbrio.

Em segundo lugar, e como é tendência histórica desde sempre, a Inglaterra define-se, não tanto em relação à França, mas em relação ao mito francês. Se até ao século XVIII a Inglaterra se define sobretudo em relação à França (a língua inglesa é em fortíssima percentagem de origem francesa, ou de expressão latina importada de França, os reis de Inglaterra usaram as flores de lis no seu escudo e chamaram-se de reis de França durante séculos) a partir da Revolução Francesa passam-se a definir-se em função não do que a França era, mas dos mitos que a França produziu. O sector em que mais se via esta tendência é o da política. Scruton salienta o lugar comum de a Inglaterra não ter Constituição escrita. Mas o que não sabe salientar é que foi dos primeiros países a ter documentos escritos de onde constavam reconhecidamente algumas das leis fundamentais do reino, como a Magna Charta ou o Bill of Rights. E isto bem antes da França. Se a França sentiu anta necessidade de ter alguma escrita é porque não tinha tantas quanto a Inglaterra. O inglês não se define por oposição ao Sacro Império, nem sequer a Roma, mas sobretudo em relação a França. Este tique revela-se igualmente na ênfase que dá na tradicional independência da Igreja inglesa, esquecendo-se que o galicanismo francês foi tradicionalmente o mais poderoso da Europa.

A terceira é a distorção da sociedade continental. E isto nota-se nomeadamente por duas vias. A natureza supostamente guerreira do continente por oposição ao pacifismo inglês, e uma suposta ideia transbordante e desregrada da nobreza continental. Dizer que a Inglaterra era mais pacífica que o continente é expressão algo curta. A Inglaterra esteve até ao século XVII pelo menos, integrada totalmente no círculo europeu. A ideia de mera potência de equilíbrio europeu surge a partir do século XVIII e sobretudo no século XIX. A Inglaterra faz guerra à Irlanda, à Escócia, ao País de Gales, mas a Inglaterra faz também guerra à França, ao Sacro Império. Henrique VIII pensou ser imperador do Sacro Império. Nada mais central na ideia europeia que isso. E nada mais afastado da ideia da intervenção britânica apenas para manter o equilíbrio europeu. Uma segunda distorção em relação à cultura continental é a descrição que faz das regras nobiliárquicas. No continente, afirma, todos os filhos de conde são condes, ao contrário da parcimónia inglesa. O continente seria assim dado à sobreabundância, ao desregramento, à desmesura. Vejamos. Não se pode opor nesta matéria a Inglaterra ao continente. Scruton fala do que não sabe. Refere-se apenas à tradição germânica, esquecendo-se que todas as outras são bem diversas. Portugal é bem mais parcimonioso na concessão de títulos, e o sistema inglês herdou essa parcimónia... da França. Só no século XVII se expandiram em França os “titres de courtoisie”, mas cuja designação já diz alguma coisa sobre a sua validade. A Espanha apenas expandiu a titulação com a sua ligação aos Habsburgos e ao ducado de Borgonha. E em muitos países europeus o desprezo pelo título (como na antiga nobreza portuguesa) é a ainda maior que em Inglaterra.

Finalmente a distorção do sabor mediterrânico. Perante a distância britânica opõe-se a exuberância mediterrânica, afirma Scruton. É obnubilar o que o próprio Scruton reconhecer entrelinhas. O inglês do século XVI e XVII era exuberante e apaixonado. E encontramos no Mediterrâneo zonas de muito maior distanciamento que em Inglaterra. A etiqueta aristocrática peninsular é a mais exigente ao ponto de a corte de Viena falar na etiqueta espanhola sempre que queria referir a mais exigente. As sociedades tradicionais da Córsega, Sicília, Puglia, Campânia para já não falar do transmontano rural são marcadas por um distanciamento que quase roça o hieratismo em certos casos.

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terça-feira, 23 de outubro de 2007

Como nunca se viu

Todos os dias as bichas intermináveis de adultos e adolescentes na Rua da Escola Politécnica sugerem o sucesso da exposição «O Corpo Humano como nunca se viu».
«Ver é saber» diz a promoção do evento que amanhã fecha as portas depois de ter deixado entrar mais de 150 mil pessoas que hoje saberão mais porque viram.
Em nove galerias temáticas puderam conhecer «de uma forma invulgar» os ossos, músculos e órgãos do corpo humano, tal como eles são, escalpados e embalsamados, exibindo o esqueleto e os sistemas nervoso, respiratório, digestivo, urinário, circulatório e reprodutivo. A iniciativa propõe-se ser «potencialmente pedagógica». E é, se assim virmos as coisas ou, recuperando a máxima da exposição, se assim soubermos as coisas.
Mas nem sempre ver é descernir.
Os corpos que ali se exibem são cadáveres de chineses miseráveis que ninguém reclamou. De quem serão os corpos então, se ninguém os reclamou? As autoridades consideraram que, tal como os objectos perdidos, os corpos são de quem os encontra. Sem apelo. Esticando argumentos podemos pensar que, pelo menos assim, são finalmente úteis; pelo menos assim, alguém repara neles.
Esquecem-se os princípios básicos da consideração pela liberdade individual, do decoro pelos que não têm voz, de honra que é devida aos mortos. À falta de cuidados que a sociedade terá votado estas pessoas em vida, soma-se a falta de respeito que lhes dedica depois de mortas.
Defendo a utilização de órgãos de cadáveres para transplantes nos vivos sem que para isso seja precisa uma autorização expressa, tal como a lei prevê. Mas prevê também, para cada um, a possibilidade de o recusar em vida, por escrito, se assim entender. Do mesmo modo louvaria os vivos que oferecessem o seu futuro cadáver como material «potencialmente pedagógico» para uma exposição deste género. O que não posso aceitar é a manipulação desventrada e exibida dos corpos dos miseráveis que ninguém reclamou.

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Quando o que parece não é


As referências são importantes. Muito mais importantes do que se julga. Assumidas como verdades subliminares, condicionam quase tudo.
Ora, neste caso do BCP – ou mais exactamente do crédito e do perdão da dívida a Filipe Jardim Gonçalves – , o que impressiona é, sobretudo, a completa implosão das referências. O mundo de pernas para o ar. De repente, ou talvez não.
Jorge Jardim Gonçalves passava por exemplo de probidade. Disso fez, aliás, o seu principal activo público, como gestor e banqueiro. Sempre foi visto – e sempre quis ser visto – como homem de irrepreensível virtude, temente a Deus e bom pai de família. Contudo, da noite para o dia, este paradigma da exigência e do escrúpulo é visto na sua fraqueza mais miserável, favorecendo um filho, sem cerimónia ou pudor, à custa dos interesses dos accionistas – interesses de que era, estatutariamente, primeiro e último guardião.
Por mais que se queira, a história não permite uma leitura benigna. A concessão do crédito foi ilegal, o perdão também. A decisão, à hora da saída, revela a frieza e a pré-determinação. No entretanto, a fazer fé no que foi publicado, a gestão da negociação no ‘inner circle’ de supranumerários do Opus Dei, entre advogados e quadros bancários, não acrescenta transparência nem facilita a remissão. Paralelamente, e neste contexto esconso, o alegado tratamento diferenciado à conta caucionada do sócio do dito filho não disfarça o pior.
Já em pleno circo mediático, não há o mais pequeno vislumbre de desmentido. Mas a dívida é paga. Fica o ruído. E, surdo, fica o pai também.
Enfim, um episódio lamentável. E gravíssimo pelo que, sem remédio, escancara. Desde logo, a evidência de que os factos radicam na convicção de que a decisão de considerar a dívida incobrável era possível – possível, no estrito sentido de que, assumindo-se discreta, jamais viria a ser revisitada ou questionada. Depois, numa inextrincável conexão de sentido, a certeza de que, efectivamente, tudo isto poderia ter ficado por sindicar – não fosse uma virulenta luta de poder intestina e ninguém (accionistas incluídos) suspeitaria sequer do assunto. Finalmente, a forte probabilidade de não se tratar de um caso isolado e espúrio, mas de tudo isto corresponder a uma praxis de facilidades e amiguismos continuados que converte os escândalos em meros epifenómenos.
Mas, nesta história, para além do núcleo do drama, muito mais se joga. E outras referências ameaçam ruir. Sem darmos por ela, pode bem ser um dominó.
No fundo, todos intuímos o essencial: nada disto foi divulgado em obediência a um indeclinável dever objectivo de denúncia, fosse ele estatutário, moral ou cívico. Não. Os factos foram noticiados no rescaldo de uma vitória – e, portanto, de uma derrota – na disputa pelo controlo da gestão do BCP. Só então. Mas é manifesto que, ocorridos há anos, seriam do conhecimento de um universo alargado de protagonistas, designadamente daqueles que se degladiaram ao longo dos últimos meses. Ou seja, os actuais denunciantes – como, porventura, muitos dos actuais indignados – souberam e calaram. Omitiram a verdade para poderem usá-la quando isso se revelasse mais conveniente à defesa dos seus interesses – ou quando causasse maior estrago à parte contrária, o que pode não ser muito diferente.
Não há, pois, escuteiros nesta história. É uma história de meninos crescidos e com muitos meninos maus. A ver vamos o que dá.
Para que as nossas referências – ainda aquelas que ensinamos aos meninos pequeninos – não se baralhem completa e inexoravelmente, importaria acreditar que o Banco de Portugal e a CMVM vão investigar tudo e retirar dos factos todas as devidas consequências (convicção que vacila com as declarações de Vítor Constâncio, aparentemente apostadas em circunscrever o caso à mera decisão de concessão do crédito). Do mesmo modo, importaria que os accionistas do BCP tivessem a força e a determinação necessárias para repor a idoneidade da instituição, apurando a verdade até ao mais ínfimo detalhe e refundando aí o seu futuro. Por fim, importaria que existisse um escrutínio sério e objectivo no espaço público, chamando os bois pelos nomes, seguindo as evoluções da história para lá das excitações editoriais, retirando as lições que se imponham, exigindo que tudo não fique afinal na mesma.
Numa palavra, depois disto, não vale a pena desmascarar farisaísmos, imposturas e oportunismos passados se tal redundar, apenas, na lógica e na agenda de outros fariseus, outros impostores e outros oportunistas. Porque, se assim for, o que parece continuará a não ser… Nesse cenário, teríamos, apenas, mais do mesmo: exemplos pouco exemplares, referências falsas ou trocadas e muita, muita hipocrisia.

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II. Roger Scruton, England, Chatto & Windus

A ligação que Scruton faz entre o elitismo e anti-europeísmo, elitismo e contenção sexual é assim arbitrária sob o ponto de vista lógico, mas explicável sob o ponto de vista social. Por mais inteligente que seja um plebeu, o elitismo cai-lhe mal, fica-lhe deslocado. O elitismo em corpo plebeu parece sempre fraque alugado. Nos Buddenbruck Thomas Mann tinha razão ao dizer que a aristocrata campestre que só sabia falar de vacas era melhor que os patrícios Buddenbruck. Estava mais adequada ao que era, mais integrada no fluxo do tempo, por pouco intelectualmente interessante que fosse.

A grande cultura inglesa nunca foi antieuropeia. Sem a França, metade das obras de Shakespeare seriam inexistentes, sem a Itália perdiam-se pelo menos três obras-primas, Romeu e Julieta, O Mercador de Veneza e Otelo. Se se identifica europeísmo com burocracia, o que aliás é mais culpa de quem quer desencarnar a Europa sob o ponto de vista político, ou seja dos antieuropeus, é evidente que a Europa é uma realidade repugnante. Mas sendo ela bem mais que isso, a ligação é arbitrária.

A grande cultura inglesa das elites nunca foi anti-sensual. Byron, Nelson mas também a rainha Victória estavam bem longe de ser exemplos de puritanismo. Os vitorianos mais aguerridos pertenciam às middle classes e sobretudo às low middle classes. Se é certo que o ambiente geral na Inglaterra victoriana se tornou mais hostil ao sexo no século XIX isso apenas mostra o triunfo do paradigma burguês numa sociedade ainda muito dominada pela aristocracia. Não quer isso dizer que as elites o fossem. Adoçava-se a dominação das classes baixas lembrando-lhes que abaixo delas estavam os Bantus e por isso ainda tinham algo de imperial. A sua coesão vinha do victorianismo, mas não a razão de ser dessa coesão. Esta razão de ser, a compensação, vinha do Bantu.

O teste a fazer é aliás simples. Numa Inglaterra que é hoje em dia sob o ponto de vista cultural e político mais antieuropeia do que algum dia foi, a sexualidade é mais livre publicamente do que o era antes. A contenção não foi destruída pela Europa, seja ela a sexual, seja a de comportamento social. É o mesmo movimento de cinismo popularucho e de divulgação que gera a descrença na fidelidade e na Europa. E a mesma esterilidade cultural.

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Status quo

Num só dia, o DN traz-nos dois excelentes (e pequenos!) artigos de opinião que, sendo bem diferentes no estilo e no tema, têm algo em comum: identificam duas das principais razões pelas quais Portugal é um país onde manda o status quo.
João Miguel Tavares escreve sobre o sindroma do "prove-se", frequentemente utilizado, entre nós, para impedir qualquer crítica no espaço público. A verdade é que, como bem lembra JMT, as regras do espaço público não são (nem devem ser) as regras de um Tribunal. É preciso distinguir entre o fazer acusações ou levantar suspeitas acerca de certas pessoas e as críticas de carácter institucional ou sistémico (mesmo que estas suscitem suspeitas). As primeiras são matéria de Tribunal mas as segundas que identificam, por ex., processos de decisão ineficientes ou que podem promover práticas de corrupção, são necessárias a um debate público informado e aberto, próprio de uma sociedade democrática. Exigir que qualquer crítica no espaço público seja provada de forma documental é apenas uma forma de calar a crítica e manter o status quo. Claro que é, igualmente, importante que quanto maior for a posição responsabilidade de quem faz a crítica maior o cuidado a ter na sua formulação, sobretudo porque lhe deve ser exigido que aja de forma coerente e de acordo com as suas responsabilidades. Os responsáveis públicos não devem poder desculpar-se com o sistema que eles próprios controlam sem estar prontos a demonstrar publicamente o que fazem para o modificar.
O outro artigo é de Ferreira Fernandes e recorda-me um artigo de opinião que escrevi nos meus tempos do DN sobre as virtudes do erro. O artigo fala de mais uma invenção japonesa aparentemente ridícula e de como os japoneses se dão bem com isso: "os japoneses respeitam as invenções mais bizarras, as chindogu, que são muitas vezes meio caminho andado para as invenções úteis". Trata-se de reconhecer que para podemos ter criatividade e inovação é necessário promover uma cultura que não tenha medo do erro e do ridículo. O medo do ridículo mata mais em Portugal que o próprio ridículo: mata a inovação e a criatividade. É por isso que, como dizia Eça, somos sobretudo uma sociedade que importa tudo (desde ideias a produtos).

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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

I. Roger Scruton, England, Chatto & Windus


Há autores que vemos com maior ou menor simpatia. Scruton é-me simpático porque num meio ambiente de discursos delicodoces sempre é refrescante ver alguém que diz coisas que não são rotineiras em excesso. É um homem que tem a coragem de denunciar o benfazejo oficial, o adorável, o cheio de boa vontade até à náusea – que esconde afinal um imenso desprezo pelo sentimento da maioria das populações europeias.

Em saldo final tenho de declarar que é francamente saudável ler Scruton. Que, num mar de inanidades e pensadores oficiais perfeitamente previsíveis, ler Scruton é sempre refrescante. A análise é muitas vezes lúcida, o sentido de justiça está presente. A noção de revolta contra rotinas e inércias de pensamento “bem-pensante” só mostra que não é pequena a sua dimensão.

Mas, e o “mas” era de esperar, há muitos vícios no seu pensamento e na sua postura que não podem deixar de ser tidos em conta.

Na Busca do Tempo Perdido é formulada a Lei Social de Proust. Basicamente afirma que cada qual reconhece a classe social que lhe é imediatamente superior, mas não as seguintes. O barão de Charlus vai ter com a sua prima a rainha de Nápoles e o camareiro julga-o um simpático burguês pela delicadeza com que o barão (e várias vezes príncipe e duque) se lhe dirige. Reconheceria com facilidade um alto burguês, no entanto.

A Inglaterra que Scruton descreve é a vista pelas low middle classes que contemplam as classes médias, que por sua vez tentam imitar a aristocracia. O seu elitismo tem por base um paradigma menor.

A aristocracia tinha sangue francês, alemão e italiano, de que se orgulhava, ostentando vaidosamente a sua origem franco-normanda. Lia Voltaire e Racine, como Dante e mais tarde os românticos alemães. Nos palácios ingleses os móveis não são ingleses, mas franceses e italianos, as pinturas francesas, italianas e holandesas, a louça alemã ou francesa. É mais fácil encontrar neles Limoges ou Meissen que louça de Leeds.

A elite científica do fim de século XIX ficou embaraçada de tanto elogio que teve de fazer a Henri Poincaré por ser o mais completo cientista do seu tempo, o único que reunia a grandeza na matemática e na física, nada havendo de comparável em Inglaterra. Victor Hugo era admirado, e o amor de Dickens pela França, ou por certa França ao menos, nota-se no Tale of Two Cities. A grande cultura inglesa desde Beda o Venerável vive de ligação e distinção em relação à Europa, mas não de afastamento.

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domingo, 21 de outubro de 2007

Do Che a Sócrates com paragem no país de Sarkozy

Começo a encarar a informática com algum sentimentalismo. E falando disso, não sei porquê, a coisa puxa muito ao gerúndio. Com e-mail se mata, sem e-mail se morre. Um crash no “pc” da gente e cobre-nos a mesma angústia que destilávamos quando, na adolescência, se acabavam os amores de Verão. Os jovens sem amor de Nelson Rodrigues descambaram, hoje, nuns patéticos adultos sem Internet: os esbugalhados de Silicon Valley.
O intróito justifica a ausência de mais de duas semanas (da qual, reconhece o meu amarrotado ego, ninguém se queixou), e autoriza-me a comentar ao retardador as anti-semanas que vivi sem bytes, se é que viver sem bytes ainda se pode chamar viver.
Supresa, o Pedro defendeu com vigor juvenil o Che: em nome do mito; em nome da mesma nostalgia com que acima evoquei os amores de adolescência de todos nós. É verdade, o velho John Ford também dizia “When the legend becomes fact, print the legend”. Mas Ford não ficaria impassível se o hediondo invadisse a lenda. E não acho que a capacidade de sonhar o mundo, a capacidade de se sonhar um mundo com justiça, a capacidade de acreditar que um dia todos os corruptos de todas as oligarquias, todos os torcionários das mais variadas formas de totalitarismo, serão fatalmente objecto da mais salubérrima condenação e castigo, se evapore quando e onde se diga do Che o que rigorosamente agora a História nos obriga a dizer.
Por exemplo, José Afonso é um muito melhor mito do que o Che. A voz era – continua a ser – límpida. A utopia de algumas das canções dele é exaltante, e lembro “Canto Moço” que, se fosse escrita em inglês, seria um tão bom e altivo estandarte como “Blowing in the Wind” o foi para a geração do inefável, se bem que rouco, Bob Dylan. Tudo conferido, não matou, não mandou matar ninguém. “Pelas praias do mar nos vamos à procura da manhã clara” é um apelo universal, fulgurante, acima de ideologias
Mudando de assunto, fui a Cannes e não fui ao “La Chunga”. De que misteriosas mudanças é que, afinal, somos compostos?
Outro tema: mesmo nestes tempos virtuais, persiste insubstituível a inteligência do olhar. Ver para crer. E é vendo Paris, no país de Sarkozy, que se percebe melhor uma certa saturação urbana, um óbvio aperto mitral do que foi o mais elegante e civilizado “modo de vida”. Hélas!
E por fim, a Europa tem um tratado, o Tratado de Lisboa. Por mais voltas que se dê, uma grande vitória de Sócrates. Vitória substancial de Merkel, vitória institucional de Barroso. Mas vitória nacional e internacional de Sócrates, representante de um país peso-pluma. Vitória de imagem, da crença, da diplomacia de última hora. .

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sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Sonhando com o mercado

Façamos um exercício de ficção política.

Imaginemos um mundo em que como limite ao mercado as questões de defesa fossem aceites. A Organização Mundial do Comércio, essa fonte do liberalismo regulado (!), não teria competência quando estivessem em causa questões relativas à defesa.

Porque nesta questão há duas soluções possíveis: ou também na defesa o mercado rege a coisa ou não. Se se considera que o mercado não a pode reger, porque as exigências de transparência são contraditórias com a defesa, então teremos que é sonegado ao mercado o sufrágio nas questões de defesa.

Neste mundo inventado, em que a defesa não é regida pela regulação internacional do mercado, quais seriam as consequências?

Em primeiro lugar, quanto maior for o orçamento de defesa, menos sujeito se está sujeito à regulação internacional das trocas. O país que mais propagandeia o mercado são os Estados Unidos, e são ao mesmo tempo o que tem maior orçamento de defesa.

Em segundo lugar quanto mais crescem as despesas com a defesa mais se está imune à regulação internacional do comércio. A China é o país que mais tem feito crescer as despesas de defesa.

Em terceiro lugar há a tentação para considerar cada vez mais coisas como de interesse estratégico e para a defesa: os chips, a criptografia, os novos materiais, as novas tecnologias electromagnéticas. Mas igualmente restrições à propriedade de companhias de aviação, dos portos e assim por diante. Os Estados Unidos são campeões nisso.

Em quarto lugar há um incentivo, não apenas para ter grandes orçamentos de defesa, como uma concepção lata de defesa, e ainda para aumentar as despesas de defesa. O Japão bem viu isso e estaria a aumentar as despesas com a defesa.

O capitalismo regulado, na medida em que exclua a defesa constitui assim um incentivo para que esta se inflacione.

Ainda bem que esse mundo é apenas ficcional. Ainda bem que acabou a Guerra-Fria porque como todos nós sabemos a União Soviética era a única razão que levava ao crescimento da indústria de armamento. Ainda bem que no mercado, como dizia Voltaire, não se distinguem raças nem religiões, todos os homens são iguais.

Ainda bem que tudo o que descrevo é sonho. Porque caso não fosse, e num mundo em que se reconhecesse que o mercado é um escravo útil e não santo de lampadário, rapidamente haveria quem acordasse desse sonho lento.


Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 18 de outubro de 2007


Fui atraído pela possibilidade de ouvir Michael Nyman e a sua banda ao vivo mas saí fascinado por uma obra cinematográfica: O homem com uma câmara de filmar (Chelovek's kino-apparatom), um documentário de 1929 de Dziga Vertov para o qual Nyman compôs uma banda sonora. Trata-se de uma obra notável sobre o acto (e não tanto a arte) do cinema. O filme é desde logo extraordinário enquanto compêndio de todo o tipo de efeitos cinematográficos. Só que este virtuosismo cinemático não é estéril (estou a pensar, por. ex., em Oliver Stone…). Ele é instrumental a uma mensagem. Vertov assimila o acto de filmar a um trabalho como outro qualquer (é fantástica a sequência em que o trabalho mecânico e repetitivo numa fábrica é intercalado com o processo de montagem do filme). Há aqui uma mensagem política clara associada ao regime de então: o cinema é mais um meio de produção e os "artistas" fazem parte do proletariado. Esta associação, ao mesmo tempo que legitima os que fazem cinema no contexto de uma revolução do proletariado, eleva o trabalho do proletariado a uma forma de arte..


A transformação do cineasta em operário é visível desde logo no título: o homem com uma câmara de filmar. A componente física (e até de risco) desta actividade é frequentemente acentuada ao longo de vários planos em que o "homem com uma câmara de filmar" aparece pendurado em eléctricos, no cimo de pontes, por baixo de comboios etc. Mas estes planos intuem, igualmente, o potencial voyeurístico e intrusivo do cinema que é ainda mais acentuado pelo facto de Vertov filmar a vida de uma forma enciclopédica (ele filma todos os trabalhos, todas as formas de lazer, todas as emoções, numa sucessão interminável de retratos do quotidiano): a câmara está em todo o lado (num prenúncio daquilo a que assistimos hoje em dia, com a presença de todo o tipo de câmaras – dos telemóveis aos vídeos de segurança – em todos pontos do quotidiano). O filme termina com uma fusão dos diferentes retratos e planos, intercalados, e depois sobrepostos, a um ritmo altíssimo (excelente a música de Nyman neste ponto): é o num regresso à mensagem política de assimilação das diferentes identidades. Pode assim parecer paradoxal que um filme tão ideologicamente comprometido não tenha sido bem recebido pelo regime estalinista (Vertov terá sido acusado de excesso de formalismo). Provavelmente, o regime terá pressentido que uma câmara "tão presente" no quotidiano pode facilmente transformar-se de instrumento do regime em fonte de denúncia, sobretudo quando não se controla o homem com uma câmara de filmar.

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Da Visão: O Che vive



Por mais improvável que isso possa parecer, devo confessar que tive a minha fase «guevarista». Nunca fui de esquerda (será defeito?) mas deixei-me seduzir pelo charme do revolucionário idealista que Korda imortalizou. A coisa não teve consequências de maior se descontarmos a experiência inesquecível que constituiu a viagem que fiz (bem antes do filme de Walter Salles) pelos caminhos que um dia Ernesto Guevara de la Serna percorrera numa velha motocicleta com o seu «compagnon de route» (literalmente) Alberto Granado. Mas isso são contas de outro rosário. E feita a declaração de interesses, passemos ao essencial.
Era de esperar que, por ocasião do 40º aniversário da morte do Che, a imprensa (sobretudo pela pena dos cronistas de centro-direita) se enchesse com ensaios sobre o Ernesto Guevara «histórico» e com exercícios de desconstrução do mito guevariano. Os argumentos são conhecidos e, no essencial, os factos mencionados são rigorosos. Nas páginas do Público, Helena Matos desenterra Tatu (a incarnação congolesa do Che) para fazer um retrato de um aventureiro de méritos militares mais do que duvidosos. Na Atlântico (que dedica a capa ao assunto), Rui Ramos fala do «filho literato de uma família de aristocratas e milionários argentinos» que desprezava a imperfeição dos companheiros de revolução e do «povo» em geral. Juntem-se-lhe os fuzilamentos de «La Cabaña», a gestão desnorteada do Banco Nacional Cubano, a arrogância intelectual e a admiração pela Coreia do Norte (para não dar mais exemplos) e o ramalhete fica, de facto, composto. A intenção destes textos (tal como fora a intenção dos textos mais «clássicos»: Arenas, Cabrera Infante, etc.), é como ficou dito, absolutamente compreensível: desconstruir o Che é contribuir para minar, um pouco mais, os alicerces da hedionda tirania castrista. O que, convenhamos, é um nobre objectivo.
Mas acontece que não é preciso ser um militante furioso do Bloco de Esquerda para se reconhecer que «Guevara - o mito», é muito mais do que o ícone instrumentalizado pela nomenklatura cubana ou do que um suposto alicerce ideológico do regime castrista. «Guevara - o mito», por mais «naïve» que seja a ideia, é também (ou sobretudo) a personificação do «homem de causas», do romântico desinteressado e disposto a morrer por ideais, da capacidade de sonhar o Mundo e de mudar o Mundo. Desconstruir o mito é pois disparar contra esse património e esse sonho colectivos. Por muito ingénuos que estes sejam, a questão que se coloca é então a de saber se os fins justificam os meios.
Tenho para mim a resposta clara: substituir o Che «cristianizado» de Freddy Alborta (que o fotografou, já morto, na lavandaria do hospital de Vallegrande) pelo Che «histórico» é um exercício rigoroso mas desnecessário, fútil e até perverso que não se pode justificar em nome do combate aos ideiais marxistas ou à ditadura cubana. Como um dia escreveu Jorge Catañeda: «Há mitos que são maiores que a política ou a ideologia, que são maiores do que as derivas cruéis da história. O Che vive e, desde que não olhemos de perto para a sua vida, continuará a viver enquanto precisarmos dele e da forma que precisarmos dele».
Poderá alguém honestamente dizer que o Mundo em que vivemos já não precisa de mitos?

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quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O BCP de pernas para o ar


No início de Setembro, para minha grande indignação e para grande indiferença do resto do Mundo, o Público noticiou que Joe Berardo teria vendido as suas acções da PT ao fundo de pensões do BCP (gerido por Castro Henriques) para assim financiar a compra de acções do próprio BCP e reforçar a equipa de apoiantes de Paulo Teixeira Pinto. Agora rebenta no Expresso o escândalo do perdão da dívida ao filho de Jorge Jardim Gonçalves e ao accionista Goes Ferreira.

A forma como o BCP é gerido não me diz respeito. Não sou accionista (apesar de tudo, hélas!) nem tenho razões para tomar partido na suas lutas intestinas. O BCP e os seus accionistas, o BP e a CMVM que «apaguem» a crise.

O que me preocupa como cidadão é ver, expostos numa entidade privada tida até há pouco tempo como um caso de sucesso, todos os vícios e defeitos que tradicionalmente se apontam à administração e às empresas públicas: a total ausência de uma ética de serviço (seja ele público ou privado), a confusão entre interesses pessoais e colectivos, o nepotismo mais desabrido, as teias de cumplicidades mais inconfessáveis, a incontornável «arte da cunha». O que me preocupa é pôr a hipótese de esta cultura de nepotismo que mina os fundamentos de uma sociedade que se quer justa e meritocrática grassar, não apenas numa administração pública irreformável, mas ser endémica na sociedade portuguesa como um todo.

É a diferença entre se ter um tumor ou um cancro generalizado.

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segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O mundo sem transcendência

Entre amigos, ouvi, recentemente, um comentário que me fez reflectir. Falava eu da Filosofia Portuguesa e de alguns dos seus epígonos. Senti, por parte dos meus interlocutores, uma expressão de reserva. Interpolando-os sobre a razão dessa reserva, exprimiram um sentimento (porque não se tratava de um pensamento) de desagrado dizendo que tinham vagamente lido alguma coisa mas não os tinha prendido e, nestas coisas, esclareceram, é preciso ser cativado, atraído, ter empatia. Para mim pensei: a Filosofia Portuguesa não é atraente. Se os livros destes autores fossem apresentados na televisão talvez tivessem a audiência que assim não conseguem ter. Não é de estar, não obstante, interessado em tornar a filosofia portuguesa numa literatura de ideias televisivas, nem a filosofia é televisível.

Percebo que os meus amigos sejam, como quase todas as pessoas hoje em dia, mais convencíveis pelo que nalguma forma e expressão tem foros de cidadania mesmo que seja em pequenos grupos. O encanto das audiências pelo que é diferente não as leva para lá do que transgride o status quo. Ainda este fim de semana nos jornais se falava de um teólogo alemão absolutamente crucial e central na Alemanha e que em Portugal era completamente desconhecido. Ou seja, uma figura relevante ou mesmo decisiva pode passar em pleno anonimato num Estado que partilha o mesmo espaço geográfico e o mesmo destino civilizacional de outro. Nem uma tradução. Pensei: Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Orlando Vitorino estão como se, também, não estivessem traduzidos. A diferença é que isso não causa nem estranheza nem indignação.
Fico com a sensação que as pessoas, em geral, procuram uma intriga para compreender a história, o pensamento ou o que quer que seja. Através da intriga é possível uma diabolização do outro e é possível tomar partido, abandonando a aridez da teoria pura e presumir, conduzido por um narrador, o lado certo e o lado errado. Podendo ser conduzido para onde queira ou não queira, prefere-se arrumar assim as questões complexas e julgar que se percebeu uma aplicação prática da teoria. Engano! Estas são, apenas, soluções para a razão raciocinante. Não geram hábitos para uma razão especulativa. A especulação filosófica implica, através de iniciação, uma concepção da transcendência que é cada vez mais difícil de reconhecer e integrar nos nossos hábitos de pensar. A ausência da metafísica amputou os caminhos que sempre foram corridos pela imaginação criadora. Tudo o que está fora do método científico é uma fantasia sem aplicação à realidade. Tudo tem de se aplicar à chamada realidade porque tudo é para operar sobre o real. Este pragmatismo funcionalista e materialista (transformista podia ser uma boa palavra) não permite que se reconheça qualquer valor ao que transcende a realidade conforme ela é concebida na modernidade. A interrogação sobre o fim da filosofia, às mãos da cultura relativista e comparativista, já não é propriamente sobre o fim da filosofia mas sobre se o pensamento ainda poderá ser criador da realidade. Sem a filosofia o pensamento esgota-se na mesmidade, na equivalência, na tautologia. Sem a filosofia, significa: sem a capacidade de intuir o alimento da razão.
Não é de estranhar que os valores propagados pelo comunismo estejam actualmente realizados nas sociedades ditas livres: a negação da transcendência, a igualdade, o papel central do animal no humano, o primado do social sobre o individual, a relativização da família, a desconfiança da privacidade, a hipnotização pelos meios de comunicação social , nomeadamente, a televisão, além da negação dos valores que distinguem o espírito humano como as virtudes cardeais e teologais, ou o reconhecimento de princípios transcendentes que permitem superar os paradoxos em que o homem cai e desespera como a Verdade, a Justiça e a Liberdade.
O comunismo é a expressão de uma decadência e a reivindicação da liderança dessa decadência. Se o homem já não tem a capacidade de pensar com todas as possibilidades que o pensamento filosófico lhe oferece, se a razão opera sem intuição, fechada num pensamento imanentista, sem tradição, nem diálogo, então o homem será, finalmente, presa fácil e dócil de qualquer ideologia que o pretenda guiar e condicionar, será, como escreveu Leonardo Coimbra, um esboço de alma suspenso na certeza de uma sombra.
O medo de um poder central que a todos vigia, e que a todos condiciona as vidas, parece ser uma realidade que ninguém teme porque julga compensadora e, em rigor, não reconhece como equivalente à situação que as anti-utopias (Huxley, Orwel e Junger) anteciparam. Os modelos desses avisos julgam-nos longínquos. O medo traz as pequenas concessões, faz ir aceitando a protecção que o tal poder central oferece e faz ir aceitando a invasão da privacidade por todas as formas. Acossado, diminuído, amedrontado, anestesiado, o homem iludido de uma falsa liberdade de que já não goza, aninha-se na alcofa e espera apenas que não reparem nele para não ser maltratado. Trata discretamente da sua vidinha. Não lhe falem de transcendências, nem de metafísicas. Ele quer é sossego e não coisas complicadas que não lhe dão arranjo para nada.

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Che Guevara


Nos quarenta anos da morte de Che Guevara a polémica parece acender-se. Afinal parece que teria sido um homem sanguinário, perpetrando massacres e discursando nas Nações Unidos em apologia do fuzilamento.

Tanto os que ficam contentes com esta notícia como os que se entristecem ou surpreendem com ela participam da mesma época, da mesma mentalidade, da mesma platitude, da mesma chatura e do mesmo simplismo de vistas. Ambos bebem de uma antropologia a preto e branco, numa só dimensão, em que de um lado há os bons e de outro os maus, a esquerda e a direita.

Da parte que me toca a notícia não me entristece, nem me alegra. A notícia nem sequer é notícia.

Qualquer pessoa com uma visão algo mais cuidada da História veria com facilidade quem é Che Guevara.

Ernesto Guevara de la Cerna, aristocrata.

Aristocrata sem dinheiro em acréscimo.

Homem consumido por ideais absolutos, radicais, sem concessões.

De uma rectidão que quase resvala na cegueira. Cegueira perante a sua vida privada, a sua ligação aos seus próximos.

O mesmo que depois de capturar dois espiões os liberta sem os maltratar, apenas depois de lhes ler propaganda revolucionária. Como um perfeito cavaleiro.

Quem é este Che Guevara?

Nada mais nada menos que mais um personificação de um herói cavaleiresco medieval bem conhecido. Che Guevara era um cruzado.

Não deixa de ser curioso que são exactamente os que deploram as cruzadas que se revêem em Che; e os que o odeiam; odeiam afinal o que faz a grandeza da alma europeia.

O cruzado é efectivamente violento. Violento porque o seu ideal é absoluto, sem concessões. O cruzado apenas passa a ser tolerante quando passa a ser político. Deixou de ser plenamente cruzado, na conquista de uma Jerusalém terrestre, carnal, como condição de uma Jerusalém celeste. O quadro mental de Che é o de Santo Agostinho, não com Deus a menos, mas com um Cristo que depois de Incarnado nos homens não consegue sair da sua prisão terrena.

Che sanguinário? Como um cruzado. Admirável por isso. E por isso perigoso. Mas por isso igualmente apto a manter-se incólume em mitos.







Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Saudades da Cortina de Ferro


Tenho de escrever 2.500 palavras sobre agricultura na Europa, no período de 1950 a 2000, para um trabalho em conjunto com outros dois autores que se vão ocupar da indústria e dos serviços. De repente, vejo-me com um quadro em que aparecem dados sobre a Eslováquia, a Ucrânia, a Geórgia, a Albânia e a Turquia. E tenho de dizer algo sobre estes países. Isto dantes não era assim. Para escrever sobre a Europa bastava escrever sobre o RU, a Alemanha, a França, a Escandinávia, os países do Sul e, quanto muito, davam-se uns palpites sobre a Rússia. Saudades da Cortina de Ferro!

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Turcos e americanos

Desde há muitos anos que digo que os Estados Unidos iriam mudar a sua política de complacência em relação à Turquia.

Perceberam desde há alguns anos que é aliado pouco fiável, com a população mais visceralmente anti-americana de entre os seus aliados e com as elites (nacionalistas e islamistas confundidos) menos amantes dos americanos.

As máquinas de propaganda, pelo seu peso, têm uma grande inércia e é evidente que a máquina diplomática e institucional dos americanos favorável à Turquia não cederá facilmente.

O que me interessa aqui realçar são no entanto dois aspectos:
a) O desfasamento entre os esbirros dos americanos favoráveis a adesão turca à União Europeia e o que se passa nos Estados Unidos
b) A reacção futura desses esbirros a este começo de inflexão (começo, porque vem do congresso apenas e não do Governo americano, e mesmo assim ainda timidamente da política americana.

Em termos mais simples: os comentadores políticos que pululam sobretudo em Portugal e que dizem um permanente ámen aos Estados Unidos ficarão cada vez mais divididos entre o seu apoio à adesão turca e a sua fidelidade aos americanos. Esperemos que estes recebam instruções do Komintern americano para deixarem de dizer dislates. Levará o seu tempo, porque vivem na ilusão de que têm opinião própria.

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quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Eu voto Roth

A decisão de atribuir o Nobel da Literatura a Doris Lessing «corresponde a pura correcção política». A sua «obra dos últimos 15 anos é ilegível». Trata-se de «ficção científica de 4ª ordem».Não sou eu que o digo. É Harold Bloom (que nestas coisas, dizem, tem um pouco mais de autoridade do que este vosso blogger).
Resta-me registar, para memória futura, que se me tivessem convidado para fazer parte do júri eu teria votado Roth. E a Academia Sueca talvez tivesse evitado fazer esta triste figura. Para a próxima não se esqueçam.

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Jackpot neurótico

«Luís Filipe Menezes e Pedro Santana Lopes estiveram reunidos quarta-feira à noite, num jantar que resultou num acordo de entendimento de colaboração institucional entre ambos quanto à estratégia a seguir pelo PSD. Segundo fonte junto do líder social-democrata, este acordo resulta de uma série de coincidências de pontos de vista quanto ao futuro do partido» TSF -11.10.07
Bem me queria parecer que havia «coincidência de pontos de vista». O PSD que se cuide.

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quarta-feira, 10 de outubro de 2007

De esquerda, ainda?


Vale a pena ler.

A propósito do novo livro de Bernard-Henri Lévy - «Ce grand cadavre à la renverse» -, discute-se a actualidade da Esquerda, a possibilidade e o sentido de se ser de Esquerda hoje. A pretexto disso, há debate, confronto e pensamento. Ideias, afinal. Aquilo que nos falta, irremediavelmente.

Recomendo tudo. Mas, a ter de sublinhar algo, escolho o frente-a-frente BHL / Alain Finkielkraut. É uma excelente oportunidade para revisitar (e questionar) o argumentário que, indiscutido, tem permanecido o pano-de-fundo de uma certa maneira de fazer e entender a política e a sociedade. À Esquerda, evidentemente.


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Tormenta sobre a Zarzuela

Uma semana no País Basco dá-me o pulso, a cada minuto, da maior crise institucional que a Espanha vive desde a morte de Franco em 75, passando pelo golpe militar de 23 de Janeiro de 1981.
A queima de fotografias dos Reis, em Girona, por meia dúzia de jovens radicais nacionalistas da Catalunha, a alguns metros de um acto oficial presidido por Juan Carlos, foi o rastilho para uma guerra de palavras e iniciativas de sinal contrário que, 32 anos depois, transforma a discussão do Regime na primeira e mais abundante discussão na rua, nas antenas e nos jornais do País.
A recusa de um voto de repúdio pelo Parlamento catalão transportou a questão da rus de Girona, do plano criminal para o plano político. Em uníssuno, os bascos elevaram-se na rua e no Parlamento com a convocatória de um novo referendo sobre um plano de soberania para «o seu País».
Tudo se questiona: porque estava o Rei de férias enquanto ardiam as Canárias? Porque não disse uma palavra sobre a entrada na guerra do Iraque? Deve o Comando Supremo das Forças Armadas estar entregue a alguém por hereditariedade? Será sufiente referendar a Constituição que devolveu a democracia a Espanha sem referendar directamente o Regime?
A oficial TVE desdobra o assunto em peças sobre os gastos a Família Real por mês e por membro (bem menos do que o orçamento da Presidência francesa para 2008: 8,2 milhões de euros contra os 31,78 milhões gauleses); sobre a propriedade dos palácios (Património do Estado) e discute se o Rei pode aceitar como presente de um amigo estrangeiro o iate, sem comprometer o País?
Os veteranos do Exército expressam publicamente lealdade ao Rei como se estivesse iminente um golpe de Estado. E a alcaideza de Pamplona, Estella y Lizarza, é tratada como uma heroína na primeira página do jornal «La Razon» pelo simples facto de se ter atrevido a cumprir a Lei - rompendo a tradição - hasteando pela primeira vez a bandeira espanhola na sede do Ayuntamento. Outra publicação destaca um dossier sobre «o que é ser nobre no século XXI - retrato da «variopinta» aristocracia espanhola» - um tema inóquo, há meses, hoje carregado de sentido pólítico.
Não deixa de ser irónico este surto de notícias logo quando a Família Real estreava a renovação da sua imagem com o lançamento de site em que explica em detalhe a nomeação de Juan Carlos; a forma como sucedeu na Chefia do Estado (em 1969 e 1975); os impostos pagos pela Família Real etc. Para contrariar a opacidade, o próprio Rei introduzira voluntariamente o cargo de «interventor» ou auditor das suas contas, sobre as quais não está obrigado a responder.
Juan Tarda, deputado da esquerda republicana da Catalunha, admite que a estratégia do seu partido é pôr o debate da Monarquia na rua. Mas será politicamente eficaz fazê-lo. Será politicamente responsável abrir uma porta que ninguém sabe como fechar?
Os amigos de Tarda parecem repetir o perigoso lema dos revolucionários da I República (1873) «Paz aos Homens, guerra às instituições» que tanto sangue fez derramar em Espanha. Mais tarde, nos anos 30 do século XX, a violentíssima separação cromática entre vermelhos e nacionalistas seria mais circunstancial do que a separação regional que predura em Espanha.
Hoje, os alarmistas, ou os lúcidos, ou os de boa memória crêem que se está a reeditar o ambiente que precedeu o brutal disparate da Guerra Civil oitocentista. Os burgueses, ou os lúcidos ou os de fraca memória acreditam que tudo se resume a mais um beliscão dos nacionalismos na meseta centralizadora de Castela. As maiorias que a democracia gera favorecem o segundo grupo. Mas nada será como dantes no imaculado respeito pela família real espanhola, que será agora ainda mais profissional, mais política, mais sofrida. Ou não será.

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Para acabar de vez com o serviço público

Devo confessar que tenho a maior admiração por muitos dos membros do actual Conselho de Administração da RTP. Não apenas porque me parece inegável que o trabalho desenvolvido em prol do saneamento das contas da televisão do Estado tem sido, no essencial, altamente meritório. Mas porque conheço o seu perfil e não me custa a acreditar que, estes administradores em concreto, se tentem constituir como uma barreira contra eventuais tentativas de ingerência dos poderes políticos na política editorial da RTP.
Infelizmente já não posso dizer o mesmo da maioria dos membros deste governo. José Sócrates e os seus ministros já deram provas mais do que suficientes de que têm um fraquinho irreprimível pelo controlo da informação e que não morrem de amores pelos nobres ideais da liberdade de imprensa. Não vale a pena repetir tudo o que se disse, escreveu e demonstrou a propósito do caso da licenciatura do Primeiro-Ministro. Não vale a pena voltar a lembrar as polémicas que rodearam a criação da ERC ou a aprovação do estatuto do jornalista. Mas também não vale a pena fixarmo-nos demasiado na acção do executivo socialista. Basta lembrar que o Ministro Morais Sarmento (pai ideológico da ERC) também nunca foi um menino de coro e que, antes dele, é longa a lista de responsáveis da tutela que nunca esconderam visões «controleiras» da comunicação social pública.
A questão da ingerência política na comunicação social pública é pois um problema tão inultrapassável como é endémico o apetite dos responsáveis políticos (de quaisquer cores ou partidos) pela instrumentalização desse fabuloso instrumento de propaganda que é a RTP. Sempre foi assim no passado, sempre será assim no futuro. É assim em Portugal como é assim na maioria dos países do Mundo que optaram por um sistema de serviço público semelhante ao português (quem se dê ao trabalho de investigar, por exemplo, o que De Gaulle dizia sobre a televisão pública francesa compreenderá que, nesta matéria, até no melhor pano cai a nódoa).
É óbvio que uma RTP bem gerida é melhor que uma RTP que não presta contas a ninguém. Mas a competência da actual equipa de gestão só tem servido para esconder o pecado original de toda esta história: o mundo mudou, a ideia de um canal prestador de serviço público de televisão deixou de fazer sentido, mas os efeitos perversos que a sua existência sempre provocou continuam, como fica mais uma vez demonstrado, bem vivos. O panorama tecnológico é outro, os canais de televisão proliferam (e não se diga que não existem canais privados que não prestam um verdadeiro serviço público porque, por exemplo, outra coisa não faz a SIC Notícias), a Internet revolucionou o acesso dos cidadãos à informação, a televisão sobre IP está aí, mas o velho conceito de um canal concessionário de serviço público de televisão está mumificado desde os idos de 50. Com todos os defeitos e nenhuma das vantagens que um dia, supostamente, representou. Será mesmo um tabu dizer isto?

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terça-feira, 9 de outubro de 2007

II. É Sarkozy atlantista?

Continuemos.

A construção europeia é por definição uma construção frágil, que carece de uma vontade permanente. A alternativa é a desagregação ou a guerra civil. A União Latina foi bom exemplo do primeiro fenómeno, a guerra civil americana bom exemplo do segundo.

Se há um elemento de inércia de movimento, no que respeita à integração económica, já no que respeita à integração política, simbólica, de defesa, a questão é bem mais complexa. A Europa não é os Estados Unidos. Tem muito mais densidade e diversidade histórica, muito mais densidade humana, de sentimento, de diferenciações.

Uma política americana que vise fragilizar a Europa acaba por se virar contra os Estados Unidos. A longo prazo a União Europeia é a uma entidade política que pode ser um aliado simultaneamente leal e com dimensão bastante para os Estados Unidos. A sua localização geográfica e as suas diferenciações internas já são factores de instabilidade bastantes para ter problemas de auto-regulação. Os Estados Unidos não precisam de induzir mais factores de instabilidade. O curioso é que é dos conservadores clássico americanos, pertencentes ao partido republicano, que veio em grande medida esta consciência.
Em que é atlantista Sarkozy, na medida em que a expressão tenha significado? No seu discurso de posse fala primeiro da França, depois da Europa, de seguida na relação com os americanos. Ordem não arbitrária.
A ligação sincera (tem de se acreditar) de Sarkozy aos Estados Unidos acaba por ter potencialmente os seguintes resultados:
1) Convencer os Estados Unidos que precisam de uma Europa forte;
2) Convencê-los de que a política para a Europa inicialmente enunciada vai portanto em seu desfavor
3) Que a França é um seu aliado essencial na Europa.

Ao contrário do folclore dos apertadinhos temporais, muito mais que a Inglaterra, a França sempre foi o principal paradigma europeu para os Estados Unidos. Estes vêem a Inglaterra como uma prima mais velha com a qual têm parecença, mas em suma algo decadente. Na simbólica americana, tanto do americano médio como entre certas elites, a capital da Europa é Paris, nunca Londres.

Blair é alvo de grande simpatia americana. Mas fascínio é Sarkozy que até ao momento o provoca. Blair é como a esposa de meia-idade a quem se respeita mas já não excita. Quanto a Gordon Brown, ver-se-á. A novidade, o fascínio, vêm de Sarkozy. Ele provoca surpresa, provoca curiosidade, excitação. Durante quanto tempo, essa será outra questão. Mas se Sarkozy for consistente na sua política conseguirá uma inflexão na política americana (coisa que Blair nunca conseguiu), a diminuição do peso estratégico da Inglaterra junto dos Estados Unidos (a entrada dos novos países da União Europeia já não prenunciou grande coisa para o Reino Unido neste aspecto) e o reforço pragmático da Europa.

A obra, e mais uma vez, vê-se apenas depois de feita. Hinos e Te Deum só depois do feito consumado. Seja como for, e mais uma vez também, há sinais de que algo pode mudar na política europeia.






Alexandre Brandão da Veiga

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Prós e Contras

Confesso que me interessa menos o caso específico da "pequena Esmeralda", do que as razões inconscientes, de base biológica, que levam as pessoas a formar um juizo ou emitir opinião. No debate televisivo, quase todos, de forma insana, evocavam o supremo interesse da criança, que uma vez "criada" no meio de uma família adoptiva, estabeleceria ligações afectivas de uma força identica á de uma criança que cresce com os seus pais biológicos, e cuja rotura levaria a traumas emocionais irrreversiveis. Que fazer então com uma criança raptada, que vive durante 10 anos com a família do raptor a quem chama mãe e pai, uma vez descoberta e identificada a família "verdadeira"?. Absurda a comparação, dir-se-ia, porque evidentemente existe uma diferença fundamental entre a legitimidade de uma família adoptante, quando uma criança lhe é ENTREGUE, de outra raptada. A violência exercida sobre uma família a quem roubam um filho é inenarrável e justifica a "devolução" da criança. Mas será que essa violência se exerce apenas sobre os pais, não será também uma violência em relação a alguem, não crescer entre os "seus", isto é, a memória de tios e avós, um passado cultural e de valores transmitidos por AQUELA família entre gerações? Será por isso, por esse vinculo genético-comportamental, que tantas crianças criadas em famílias "ideais", procuram em desespero mães prostitutas, pais indiferentes, mas que são os "SEUS"? de onde vim, indica em parte para onde irei, a resposta qunto ao futuro encontra-se no passado, e no fundo do nosso ser, queremos saber qual foi.

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segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Vida Inteligente



Feche os olhos. Imagine que a televisão não existe. Imagine que a Casa Pia nunca aconteceu, que a Maddie não desapareceu e que o Benfica não está em crise. Imagine que o tempo parou. E imagine uma revista para lhe fazer companhia nos longos serões da eternidade. Uma revista onde pode encontrar um panegírico de Epicuro, uma dissertação sobre a importância das casas de botões nos fatos masculinos, as grandes exposições do momento, as cinco melhores «patisseries» do Mundo Ocidental e um magnífico portfolio fotográfico com o título muito britânico: «La Chasse». Tudo em pouco mais de 100 páginas, num grafismo requintado mas impecavelmente sóbrio e num papel de primeiríssima água. Quatro vezes por ano.

Já imaginou? Pois essa revista existe. É a «Intelligent Life», a filha mais nova do circunspecto «The Economist» e , em vez de política e economia, interessa-se, mais prosaicamente, sobre «the ways people spend their time and money outside the office». É uma obra de arte da edição e um hino ao mais puro hedonismo. Mas atenção, é «hedonism with its head on». Ou não fosse a menina filha de quem é.

A não perder.

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I. É Sarkozy atlantista?

Os opositores de Sarkozy tentaram vender a imagem de que este era mais um vendido aos americanos. Facto curioso, mas infelizmente comum, muitos observadores externos, geralmente pró-americanos, viram com alegria o mesmo “facto”. Entristece a uns e alegra a outros a mesma mistificação.

Qual a política americana para a Europa nos últimos quarenta anos, politica essa que tem sido aboborada pelo último governo americano? Desenvolve-se em várias linhas:
1) Impedir a união política, a integração da defesa, mantendo apenas a integração económica
2) Instigar a criação de uma Europa multicultural
3) Impor a adesão turca, que produz os dois anteriores efeitos
4) Abrir as fronteiras da Europa para absorver os choques migratórios não qualificados sobretudo dos países muçulmanos, quando os Estados Unidos têm uma política de atracção sobretudo de pessoas qualificadas do terceiro mundo.

Sobretudo nas últimas duas décadas, grande aliado deste projecto tem sido o Reino Unido. Não o será por muito tempo, na medida em que começam a aparecer sinais de inversão de tendência, dado que perceberam que não ser apenas a Europa continental a pagar o preço dessa política.

Aliados igualmente dessa política os ultraliberais europeus, os ideólogos da economia de mercado como paradigma social, mas igualmente os altermundialistas. Os trotskistas, os verdes, os ecologistas, entre outros. Os extremos tocam-se com frequência. Os realmente ultra-ortodoxos entre os judeus são aliados do Irão por serem contra a criação do Estado de Israel. Aqui também não nos pode espantar este tipo de convergência de interesses e opiniões.
De uma forma ou de outra o consulado de Chirac compactuou com as grandes linhas de força da política americana. No que nela lhe desagradava, nada evitou. No que lhe agradava fez que se incentivasse.

Sarkozy contesta toda esta política. E não sendo o primeiro que a contesta (políticos holandeses, alemães, nórdicos, entre tantos outros já o tinham antecedido), não foi igualmente o primeiro a associar esta oposição à política americana uma vontade de aliança próxima com os Estados Unidos. A CDU-CSU alemã está igualmente na mesma linha.

O cenário é portanto bem mais complexo do que o de oposição/subserviência aos Estados Unidos.

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domingo, 7 de outubro de 2007

APL: Defender o Indefensável

Há muitos anos que Lisboa não é uma cidade simpática para tomar ar. Quando era miúdo, passar um fim-de-semana na cidade era um sinal de alguma chatice. O bom era sair para os vários sítios que havia – e de alguma forma ainda há – nos arredores. Ficar em Lisboa era sinal de ficar entretido em casa com alguma coisa, visitar amigos, também em casa. Não havia virtualmente nenhum lado para onde se pudesse ir apanhar ar. As excepções eram o Jardim Zoológico e as aulas de patins, famosas nesses anos 60, e a Feira Popular, nada de muito excitante e só alguns meses por ano. Só lá para o Restelo as coisas mudavam um bocado, mas isso também já era fora de Lisboa. Nessa altura, não sabia, mas sei hoje: tudo isto contrasta com algumas capitais europeias onde há muitos parques e jardins e aproxima Lisboa de cidades como Istambul, como se pode ver da descrição que Orhan Pamuk nos dá no seu livro com o nome da cidade.

Passei muitos anos sem precisar de Lisboa para espraiar. Nos finais dos anos 1970 e nos anos 1980, as circunstâncias mudaram e comecei a passar mais tempo livre na cidade. Um dos sítios para onde mais se ia apanhar ar eram as docas junto ao rio Tejo. Nesses anos as docas tinham um ar semi-industrial, uma vez que por todo o lado havia actividade portuária e grandes avenidas de contentores. Mas isso não era um problema, pois cultivava-se então um espírito urbano (não depressivo) de que tal cenário fazia parte. Pelas docas havia também dois (e apenas dois) restaurantes, nos clubes navais, onde se podia comer peixe e petiscos e ver algumas nesgas do rio. Eram sítios relativamente desertos e com pouca gente e isso era ainda mais uma qualidade.

Entretanto, aquilo começou a mudar. A primeira grande mudança de que me lembro foi durante o infeliz consulado de Jorge Sampaio na Câmara Municipal de Lisboa. Sampaio mandou construir dois viadutos para atravessarem a linha de comboio de Cascais, um no fim da Infante Santo e outro lá para os lados de Algés, e mandou alcatroar a avenida que acompanha o caminho-de-ferro junto ao rio. Tudo isso teve como resultado que quem se ia passear para junto do rio teve de começar a conviver com uma verdadeira auto-estrada. O que era uma rua com pouco trânsito passou a ser uma saída de Lisboa. Juntamente com a destruição do aspecto oitocentista da 24 de Julho, que tinha uma alameda central com árvores centenárias e que Sampaio mandou deitar abaixo, aquela foi a primeira intervenção de monta da CML na zona da beira-rio. Não muito feliz, convenhamos.

Paralelamente ou talvez um pouco depois, mais perto do rio começaram a aparecer outras mudanças, essas claramente positivas, se considerar que aquela zona deve ser dada ao maior número de pessoas. Primeiro, foi a doca de Santos; depois, a área junto à antiga central eléctrica. Recuperam-se armazéns que foram convertidos em restaurantes com esplanadas, refez-se uma ou outra marina, plantaram-se umas árvores e umas relvas, e criaram-se zonas para as pessoas andarem a pé e de bicicleta. Alguns anos mais tarde, foi ainda transformada a zona em frente à estação de St. Apolónia, onde está o Lux e aqueles restaurantes e lojas mais sofisticados. A zona onde está o Speakeasy (ainda existe?) também foi entretanto melhorada. Instalou-se por lá também um ministério e a misteriosa Fundação Oriente também está por aquelas bandas a instalar um museu. Estes são exemplos, entre muita outra coisa que tem sido feita junto ao rio.

Devo notar que estes elogios não têm correspondência no uso que faço destes locais, uma vez que por lá pouco ando hoje em dia.

Mas a verdade é que as alterações junto ao rio são verdadeiros sucessos populares e, pelas minhas contas rápidas, também verdadeiros sucessos financeiros. Por outras palavras, aquilo atrai gente que traz dinheiro e faz com que não seja preciso gastar dinheiro dos impostos para manter tudo aquilo com um aspecto relativamente próspero.

A Administração do Porto de Lisboa é uma instituição de “jobs for the boys” que é obviamente mal gerida, para dizer o mínimo. Tem um património gigantesco, um grande potencial de negócio, e consegue apresentar regularmente grandes défices financeiros. Para além disso, volta e meia aparecem notícias menos abonatórias sobre a forma como os corpos administrativos gerem os seus próprios cargos. Todavia, a verdade é que foi a APL que esteve por trás das transformações que tiveram lugar, junto ao rio, nos últimos 15 ou 20 anos.

E a Câmara Municipal de Lisboa o que fez para dar mais espaço ao ar livre a quem vive em Lisboa? Há, claro, algumas mudanças, mas não para quem vive no centro da cidade. Fizeram-se uns parques para os lados da Expo (uma outra revolução urbana bem sucedida com que a Câmara não teve nada a ver), um outro por cima da Av. do Aeroporto, mas que entretanto foi tomado por um festival de rock. Mais no centro da cidade, de novo só me lembro de um parque junto a Belém e o jardim por cima do Parque Eduardo VII que ninguém frequenta por ser inóspito.

Apesar de mal gerida, a Administração do Porto de Lisboa ganha numa comparação com a Câmara Municipal de Lisboa. O actual presidente da Câmara devia olhar com maior atenção para o historial da entidade que preside antes de criticar os outros organismos.

Imagine-se o que seria se o rio tivesse sido gerido pela Câmara de Lisboa nestas últimas décadas.

Tudo isto não significa que se deixe tudo como está. Mas as mudanças devem ser feitas com cuidado. Seria bom que a Câmara não passasse a ter autoridade absoluta sobre a frente do rio e que os seus poderes fossem limitados por uma legislação apertada. Um desiderato porventura difícil de conseguir, dada a proximidade do actual presidente da Câmara ao Governo.

Uma última nota. Há comentadores que por vezes pecam por excesso quando se trata da Câmara de Lisboa. Não se pode criticar o poder autárquico de todo o País e, na disputa sobre o rio Tejo, ser irredutível defensor da Câmara contra a APL. É difícil provar que a Câmara teria feito um melhor trabalho nestes últimos 15 ou 20 anos. Já não é difícil mostrar que, em matéria de dar espaço ao lazer popular, a APL bate aos pontos a CML. Num campeonato de misérias, claro.

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sábado, 6 de outubro de 2007

O mundo sem espelho

Numa época em que predominam as análises é de desconfiar que se esteja a rodear um problema e a evitar encará-lo. É, também, comum identificar problemas e tentar resolvê-los com análises espúrias que só os irão agravar e nunca resolvê-los. Neste caso, esconde-se por detrás de uma suposta e incipiente cientificidade uma intenção manipuladora que, induzindo um bom senso social (o que será isso), infecta as mentalidades ingénuas ou distraídas.

É claro que, o que hoje se chama ciência no sentido popular em que é utilizado não é mais que uma vox populi do materialismo e, por isso, com observações não universais, induzem-se hipóteses não necessárias, confirmadas em experiências viciadas para concluir ilusões como corolários. A estrutura do método cientifico, o que nele é mais frágil, é com oportunismo utilizado para dar azo a lucubrações alienantes.
Não se reduz, porém, a ciência à ciência moderna e ao seu método. Há, na sua hodierna exaltação, muitas simplificações que acabam por negá-la no seu valor e alcance. O que caracteriza a ciência moderna é o objecto do que é pensável e, nesse lance, à circunscrição das suas possibilidades à fenomenologia. A definição do objecto da ciência não é mais, ao contrário do que se possa supor, que a circunscrição e limite das possibilidades atribuídas ao pensamento, principalmente à metafísica.
A distinção entre o que é pensável e o que não cabe na racionalidade necessária do pensamento não tem valor de conhecimento. O processo é equivalente ao de amputar uma parte do cérebro e daí concluir que só o que a parte do cérebro pode utilizar é que é pensável. Ao reduzir o objecto da ciência ao mundo sensível e material está-se a amputar uma infinidade de faculdades que concorrem para o conhecimento e, com isso, está-se, efectivamente, a diminuir as possibilidades que o pensamento tem em si para conhecer a realidade sensível e inteligível.
O resultado desta negação da liberdade de pensar impõe à arte o domínio do arbitrário, e incompreensível, e da pura e simples manifestação da interioridade e personalidade do artista, sem qualquer valor universal de conhecimento ou saber. Na política conduz ao esvaziamento do direito numa mortífera e insanável luta de vontades individuais. Finalmente, na filosofia, conduz à negação da especulação que, na procura do absoluto, sempre propôs caminhos de comunhão universal.
Uma das grandes dificuldade do homem moderno é o convívio. Não do convívio impropriamente chamado aos encontros sociais em que figuras e imagens se encontram, entre sorrisos e palavras sem significado, para cumprir uma necessidade e uma obrigação social de se mostrar e de ser reconhecido, mas do convívio entre espíritos livres que têm em comum princípios e afinidades e em que o encontro entre si enriquece e desenvolve o que em cada um está potenciado, nascituro e à espera de um apelo para se revelar. O convívio implica esta partilha de uma intimidade, não na própria intimidade, mas na chama comum e universal em que cada um autenticamente se espelha, ou é para espelhar.
Fragilizada na sua característica principal que é o pensamento filosófico e pressionada por um conhecimento imposto que, intimamente, nada diz à sua existência, a humanidade sofre a vulnerabilidade do que não está em si e se sujeita a todo o tipo de manipulações. O mais que irá conseguindo, numa rota de degradação contínua e incessante, é estabelecer compromissos e atenuantes para a sua ferida e para o seu sofrimento. Sofrimento silencioso a que já se habituou ao ponto de chegar a supor que já nem o sente. Anestesiada, já não faz mais do que rodear os problemas ou, pior, simplificá-los sem autêntica consciência deles.

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