sábado, 6 de outubro de 2007

O mundo sem espelho

Numa época em que predominam as análises é de desconfiar que se esteja a rodear um problema e a evitar encará-lo. É, também, comum identificar problemas e tentar resolvê-los com análises espúrias que só os irão agravar e nunca resolvê-los. Neste caso, esconde-se por detrás de uma suposta e incipiente cientificidade uma intenção manipuladora que, induzindo um bom senso social (o que será isso), infecta as mentalidades ingénuas ou distraídas.

É claro que, o que hoje se chama ciência no sentido popular em que é utilizado não é mais que uma vox populi do materialismo e, por isso, com observações não universais, induzem-se hipóteses não necessárias, confirmadas em experiências viciadas para concluir ilusões como corolários. A estrutura do método cientifico, o que nele é mais frágil, é com oportunismo utilizado para dar azo a lucubrações alienantes.
Não se reduz, porém, a ciência à ciência moderna e ao seu método. Há, na sua hodierna exaltação, muitas simplificações que acabam por negá-la no seu valor e alcance. O que caracteriza a ciência moderna é o objecto do que é pensável e, nesse lance, à circunscrição das suas possibilidades à fenomenologia. A definição do objecto da ciência não é mais, ao contrário do que se possa supor, que a circunscrição e limite das possibilidades atribuídas ao pensamento, principalmente à metafísica.
A distinção entre o que é pensável e o que não cabe na racionalidade necessária do pensamento não tem valor de conhecimento. O processo é equivalente ao de amputar uma parte do cérebro e daí concluir que só o que a parte do cérebro pode utilizar é que é pensável. Ao reduzir o objecto da ciência ao mundo sensível e material está-se a amputar uma infinidade de faculdades que concorrem para o conhecimento e, com isso, está-se, efectivamente, a diminuir as possibilidades que o pensamento tem em si para conhecer a realidade sensível e inteligível.
O resultado desta negação da liberdade de pensar impõe à arte o domínio do arbitrário, e incompreensível, e da pura e simples manifestação da interioridade e personalidade do artista, sem qualquer valor universal de conhecimento ou saber. Na política conduz ao esvaziamento do direito numa mortífera e insanável luta de vontades individuais. Finalmente, na filosofia, conduz à negação da especulação que, na procura do absoluto, sempre propôs caminhos de comunhão universal.
Uma das grandes dificuldade do homem moderno é o convívio. Não do convívio impropriamente chamado aos encontros sociais em que figuras e imagens se encontram, entre sorrisos e palavras sem significado, para cumprir uma necessidade e uma obrigação social de se mostrar e de ser reconhecido, mas do convívio entre espíritos livres que têm em comum princípios e afinidades e em que o encontro entre si enriquece e desenvolve o que em cada um está potenciado, nascituro e à espera de um apelo para se revelar. O convívio implica esta partilha de uma intimidade, não na própria intimidade, mas na chama comum e universal em que cada um autenticamente se espelha, ou é para espelhar.
Fragilizada na sua característica principal que é o pensamento filosófico e pressionada por um conhecimento imposto que, intimamente, nada diz à sua existência, a humanidade sofre a vulnerabilidade do que não está em si e se sujeita a todo o tipo de manipulações. O mais que irá conseguindo, numa rota de degradação contínua e incessante, é estabelecer compromissos e atenuantes para a sua ferida e para o seu sofrimento. Sofrimento silencioso a que já se habituou ao ponto de chegar a supor que já nem o sente. Anestesiada, já não faz mais do que rodear os problemas ou, pior, simplificá-los sem autêntica consciência deles.

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