terça-feira, 12 de junho de 2007

IV. As velas ardem até ao fim, Sándor Márai, Dom Quixote, 2007

Ao contrário do drama burguês em que o princípio artístico envenena o princípio plebeu, a arte e o militar nascem de uma mesma classe aristocrática. Nem todos possuem um e outro sentido, e as pessoas opõem-se por isso. Mas em suma são interdependentes, e não seria se espantar ver o artista a arriscar mais na aventura que o militar, não perdendo nem um nem outro o seu princípio de nobreza.

A música tem um papel determinante na novela, e no entanto não se ouve uma nota de música. A Europa Central, e mais uma vez, mostra a sua lição habitual ao resto da Europa neste campo. É espantoso ver como são surdas as obras de literatura peninsulares, como a música não tem papel vital nelas. É a Europa central que nos mostra a seriedade da música. A sua natureza determinante.

Porque a música, como a imagem do cristal que aparece na novela, ligação cristalina que liga as várias personagens como as relações genealógicas que conformam as mesmas personagens, é exemplo de uma substância que vive da relação e não da vitória individual. É raro encontrar fora da aristocracia este composto de personalidade vincada e de dependência. Para que outras pessoas sejam tão determinantes na nossa vida é preciso que a nossa vida seja determinante. Só consome outros quem se sabe meramente consumível.

Não posso fazer juízos de valor sobre o livro em questão. Fui forçado a lê-lo por dever de amizade e não saí arrependido. Mas o reconhecimento de uma obra-prima carece de um extremado juízo. Extremo de proximidade ou de distância, o que vem dar ao mesmo. Mas essas experiências extremadas carecem sempre de um juízo ponderado. Não se chega aos extremos sem se ser prudente. Quem não o é não volta para contar a história. Seja como for, não me arrependi de conhecer mais um autor, facto raro em mim. Já é dizer muito. A quem aproveitar que se siga a leitura.

http://www.webboom.pt/ficha.asp?ID=67607
http://www.librarything.fr/author/maraisandor
http://www.randomhouse.com/knopf/authors/marai/index.html
http://fr.wikipedia.org/wiki/S%C3%A1ndor_M%C3%A1rai

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III. As velas ardem até ao fim, Sándor Márai, Dom Quixote, 2007

A história passa-se na Hungria, nessa Europa Central em que, cada vez mais me convenço, ao contrário do sentido parolo de certos “ocidentais” (sejam eles quem forem), muita da alma da Europa se encontra, e dos seus problemas com a outra (muito verdadeira) Europa que é a Rússia.

É desta parte que vem muitas vezes um sopro novo, sem a pudicícia plebeia em relação à continuidade, à honra, à grandeza.

A história passa-se entre dois aristocratas, um pobre e outro rico, que redunda num triângulo amoroso. A estrutura é simples, a história em muitos aspectos expectável, mas por isso mesmo não está presa à procura do efeito. Um triângulo amoroso, em que a mulher de um deles está envolvida, que narração mais banal?

Mas o autor está bem consciente da banalidade da história. Não é ela que determina a relevância da novela. Quase em monólogo, é da relevância das respostas e da forma como elas podem vir de que se trata. A ideia de resposta vem recorrentemente e mostra que em última análise é de respostas que carecemos, e mais ainda, que são elas que conformam a vida. Respostas feitas de gestos muitas vezes mais que de palavras, ou respostas feitas simplesmente de se viver ou morrer.

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segunda-feira, 11 de junho de 2007

Aeroporto: decidindo como decidir

São tantas e tão contraditórias as opiniões técnicas sobre a nova localização do aeroporto de Lisboa que nos sentimos desorientados, vítimas de um jet lag mental em que a cabeça se encontra perdida entre tantas posições opostas mas expressas sempre com a mesma autoridade científica. Será que teremos de olhar para lá da ciência? Talvez fosse interessante ler um artigo recente da TIME: aparentemente alguns dos melhores aeroportos recentemente construídos recorrem ao… Feng Shui! Um dos casos referidos é o do aeroporto de Hong Kong. Segundo a TIME a sua localização foi determinada com a ajuda de técnicos de Feng Shui. Pessoalmente, tendo já utilizado este aeroporto, posso confirmar a excelência do resultado final. Talvez seja esta a solução possível para um contexto de tanta disputa técnica como aquele que envolve o futuro aeroporto de Lisboa…

O que me parece claro é que não é multiplicando estudos que chegaremos a uma decisão consensual. Temos antes de encontrar uma forma de decisão à qual estejamos dispostos a oferecer o nosso consenso. Será que James Surowiecki (The Wisdom of Crowds) tem razão e que as multidões frequentemente "sabem" mais que as elites? O problema é que os instrumentos e condições que Surowiecki apresenta para tomar decisões dessa forma já não se encontram reunidas neste caso (a informação já está demasiado disseminada e conhecida e a grande maioria de nós já se associou a uma posição; por outras palavras, já não somos suficientemente ignorantes para poder decidir de forma inteligente como multidão…).
A decisão sobre o aeroporto de Lisboa é "vítima" de duas circunstâncias. A primeira é que o discurso técnico é crescentemente uni-disciplinar: cada grupo técnico racionaliza a decisão exclusivamente (ou, pelo menos, predominantemente) à luz da sua disciplina. Não surpreende por isso que os engenheiros civis tenham uma opinião, os engenheiros do ambiente outra e os engenheiros de aeronáutica outra ainda. Acrescente-se que dentro de cada uma destas disciplinas existem diferentes "escolas". Resultado: contrapõem-se certezas técnicas sem que exista forma de estabelecer uma hierarquia entre elas. O segundo problema é a contaminação do discurso técnico pela política e vice-versa. É, hoje, impossível diferenciar o que é uma opção política do que é uma escolha técnica. Tal circunstância descredibiliza as conclusões(?) técnicas e, simultaneamente, retira espaço à política (acusada de não ser tecnicamente bem fundamentada). É por isso que a única forma de voltar racionalizar o discurso passa por abandonar, temporariamente, a questão da decisão para nos concentrarmos previamente em como decidir: independentemente de nunca virmos a chegar um consenso sobre qual a melhor decisão talvez consigamos chegar a um consenso sobre uma forma aceitável para todos de decidir a questão.

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II. As velas ardem até ao fim, Sándor Márai, Dom Quixote, 2007

O plebeu não conhece a grandeza. Apenas um seu substituto: o tamanho. O tamanho da conta bancária (“ele “vale” X dólares”), sem dúvida. E é significativo que a nossa época se preocupe tanto com a linha, o tamanho dos peitos e as operações de alargamento do pénis. Toda a grandeza mensurável é relativa. Deixa por isso de o ser para ser apenas tamanho.

Daí que esteja votado ao fracasso qualquer livro que queira dar sentido de tragédia ao que por definição não aspira à consumação. Porque o sucedâneo no plebeu é o mero consumo. O termo destrói, não vivifica.

Fora drama burguês a obra chamar-se-ia “as velas crepitam”, ou “esbarrondam-se no fim”, ou “gastam-se”. O título da obra, pelo contrário, anuncia uma consumação, não um consumo. Para isso o autor teve de usar nome que mostrasse que o objectivo foi atingido, não que foi descartado.

Se o plebeu não conhece a grandeza nem a consumação, é porque vive num mundo comparativo. Não gosta de paradigmas e por isso apenas obedece a leis que o ultrapassavam. Não conhecendo o exemplo, torna-se apenas um exemplar. Uma ilustração de uma lei, uma mera ocorrência. Viver para ele é comparar-se. O meu carro é melhor que o teu, tenho mais doutoramentos que tu, o meu cargo é mais importante que o teu, eu tenho poder sobre ti, tenho de ter mais importância que tu. A comparação para o plebeu é apenas mais um substituto da substância. Se se compara é apenas porque ele não a tem. Mas sendo toda a sua vida de mera substituição nenhuma destas conclusões é de espantar.

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domingo, 10 de junho de 2007

Direito à vida, direito à morte

Num comentário anterior, relativo a um texto do Pedro Norton, exprimi a minha concordância com as suas posições liberais de princípio: tal como o direito à vida e à procura da vida com dignidade é inalienável, também o direito à (própria) morte e à dignidade na morte deve ser um direito, e um direito inalienável.

Citei como exemplo o "Bourbaki Gambit" do Carl Djerassi: um romance científico em torno de uma colaboração científica com vista a encontrar uma cura para o cancro. Termina com um caso de amor entre um casal entradote, o cientista sénior e a financiadora do projecto, que oferecem um ao outro a seguinte presente de casamento: uma caixa contendo veneno de acção imediata, compromentendo-se cada um a administrar o conteúdo ao outro no caso de este contrair cancro.

A ideia romanticamente atrai-me, e compreendo a atitude. No entanto, como diz a Sofia a vida não é a preto e branco, sim e não. Nem sequer a tons de cinzento: há cores. Não há uma moeda com duas faces: há toda uma paleta de possibilidades.

O post do Manuel Cunha e Sá lembrou muito bem a questão de um necessário enquadramento legal, que, à parte a recente experiência suíça, tanto quanto sei só existiu num único país: a Alemanha nazi. E esse facto não pode ser liminarmente ignorado. Convém recordar os antecendentes.

As ideias de "limpeza dos deficientes" já andavam no ar desde antes de Hitler. Contudo, o poder absoluto deste permitiu, precisamente, a consideração da eutanásia como missão do Estado. Começando com crianças deficientes, com argumentos pseudo-humanitários segundo os quais "tal como não é lícito matar, é cem vezes mais errado desafiar a natureza mantendo vivo o que não foi feito para viver", deu-se início aos programas de eutanásia infantil.

Por volta de 1940, esta acção foi estendida aos hospícios e hospitais. Tomou o nome de código de "Aktion T-4", porque os escritórios se situavam em Tiergarten nº4. Quando foi a operação foi encerrada, em Agosto de 1941, calcula-se que cerca de 90.000 pessoas tenham sucumbido a estes programas de eutanásia.

Foi no âmbito da Aktion T-4 que foram desenvolvidos alguns métodos de extermínio em massa que mais tarde foram discutidos na infame reunião de Wannsee e utilizados nos campos de extermínio do Holocausto, de Auschwitz a Treblinka: os camiões de gás, por exemplo, e (por estes mostrarem a sua inadequação às dimensões do extermínio) as suas sucessoras câmaras de gás.

Na verdade, e por arrepiante que pareça, pode traçar-se (e isso está feito pelos historiadores, como por exemplo Ian Kershaw) uma linha de continuidade lógica ininterrupta e com um sentido histórico de quase inevitabilidade entre os programas iniciais de eutanásia para crianças deficientes e, seis anos mais tarde, as câmaras de gás e crematórios de Auschwitz.

É claro que a insanidade brutal da ditadura nazi não pode ser tomada como exemplo para nada. No entanto, o facto de esta ser a única experiência moderna neste sentido mostra bem como são muitíssimo delicadas e frágeis as fronteiras éticas num ponto tão sensível como este, em que não há preto e branco.

O Manuel Cunha e Sá colocou brilhantemente as questões médicas. Mas pensemos no seguinte: se numa sociedade essencialmente pacificada, evoluída e integrada num grande bloco político e social como Portugal a discussão sobre o aborto foi tudo menos pacífica, imagine-se o que poderia significar, hoje, a legalização da eutanásia numa república das bananas nas mãos de um ditador sem escrúpulos.


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I. As velas ardem até ao fim, Sándor Márai, Dom Quixote, 2007

Confesso ser cansativo pela repetição o espectáculo do plebeu. A obra digna reflecte ou a nobreza ou o povo. O povo apenas se torna plebe quando pretende sair de si. Não ponho em causa a grandeza da saga burguesa, que soube nobilitar-se pela cultura e apenas através dela. Mas nem todos os países tiveram efectiva burguesia. Abaixo dos Pirinéus é vão procurá-la.

Os gregos, que estavam bem longe de ser tontos, bem sabiam que a tragédia e a obra digna em geral apenas lidava com aristocratas, por vezes com gente do povo, como o criado de Ulisses. Já a comédia metia em jogo a plebe, não tanto o povo enquanto tal, mas o bufarinheiro, o marchante.

Mesmo a burguesia, nos seus melhores momentos, e quando produziu obras-primas inegáveis perante as quais me inclino respeitosamente, acaba por reconhecer que a grandeza corresponde à negação do princípio de que nasceu. Em Roger Martin du Gard, mas sobretudo com Thomas Mann dos Buddenbruck e da Montanha Mágica, não há consumação de um destino, mas apenas a dissolução de um princípio. Ao princípio burguês da quantidade segue-se a geração artística, heróica, que nega o paradigma burguês. Teria de ser assim. Para que o burguês seja gente precisa de negar a ideia de continuidade. Para se perpetuar precisa de se negar portanto.

É por isso natural que a tragédia aristocrática corresponda à manutenção de um princípio, mesmo que transformado pelos atropelos da História. O Leopardo, sobretudo na versão de Visconti, apela para a eternidade, para a constância das estrelas.

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sexta-feira, 8 de junho de 2007

Dr Kervorkian revisited

O post do Pedro Norton sobre o famoso Dr.Kervorkian interpela-nos a todos e claro esta a nós médicos em particular.
A morte médicamente assistida e um assunto cada vez mais importante sobretudo à medida que se assiste ao envelhecimento da população a par do desenvolvimento da Medicina e das suas capacidades de manutenção da vida mesmo em condições extremas.
A eutanásia não pode ser vista de uma forma monolítica.. Existem de facto três formas diferentes de euthanasia: a passiva, a activa e o suicídio médicamente assistido.
A eutanásia passiva, que consiste na não obstaculização da morte ou mesmo a sua facilitação por meios passivos, é uma realidade frequente nos nossos hospitais. Estas situações ocorrem por decisão médica, assumida de uma forma mais ou menos velada. Em causa estão pessoas em estado terminal ou seja numa fase absolutamente final do tratamento da sua doenca, irremediàvelmente perdidas para uma vida com um mínimo de qualidade e que na maior parte dos casos implica uma perturbação fundamental do seu estado de consciência impeditiva de uma vida de relação.
Muitas destas situações são o resultado de um processo de tratamento mais ou menos penoso e longo de acordo com o tipo de doenca em causa, e a que não é alheio por vezes algum encarniçamento terapêutico. Para estes doentes a medicina já nada pode oferecer que possa fazer reverter o seu estado clínico o que acaba por concorrer para aumentar a frustração dos clínicos e esgotar a sua natural resiliência.
Na nossa sociedade e no nosso meio médico e hospitalar, com as referências éticas, religiosas e culturais que lhes são próprias, estaa medidas não vão além de uma atitude fundamentalmente passiva de não implementação de medidas médicas extraordinárias. É, repito, pela omissão de medidas consideradas inconsequentes pelos clínicos, se bem que com a possibilidade manter o organismo vivo por mais algum tempo, que se mede esta attitude com a qual nós médicos convivemos e com que na maioria dos casos penso estarmos de acordo.
Não são de forma alguma práticas comuns as de eutanásia activa, em que o médico se envolve activamente na administração de fármacos que ,em doses mais elevadas, possam contribuir para tornar mais expedito um exitus inevitàvel de outra forma a prazo e não sem um acréscimo de sofrimento físico e psicológico para o doente e seus familiares.
Um outro aspecto da mesma discussão é o do suicídio a pedido e médicamente assistido. Este é verdadeiramente o cenário em que se mexe o Dr Kervorkian. São casos em que o próprio doente pede ajuda para terminar a sua vida para pôr fim a uma dor e sofrimento que por razões vaáias nao tolera mais.
Em tese este desígnio nem sequer me parece chocante. Este sentimento é alinhado com o do Pedro quando reinvidica uma atitude liberal de completa responsabilização do indivíduo pelos seus actos.
O problema começa quando tentamos identificar as situações em que tal atitude eventualmente se justifica. Esta questão poderá parecer insignificante para quem não tenha responsabilidades no tratamento de doentes nestas condições. De facto o que leva uma pessoa a considerar intolerável o prolongamento da sua vida pode ser tudo menos claro.
Não são raras as situações em que a angústia e o sofrimento do doente se tornam intoleráveis como consequência também de factores fora do âmbito do exercício da medicina, por exemplo factores de isolamento e miséria social que retiram ao doente qualquer possibilidade ou vontade de lutar contra a doenca de uma forma que lhes permita manter um patamar de vida com alguma qualidade. Outras há em que são os próprios familiares a pedirem a terminação da vida por factores a que também não são alheias questões de natureza estritamente não médica
Temos ainda os casos de doentes com perturbações do foro psicológico e psiquiátrico que somadas a outros quadros de doenca orgânica os fazem reinvidicar uma attitude auxiliadora no sentido de pôr fim ao sofrimento experimentado.
Hà mesmo quem se preocupe que, com o envelhecimento da população e com o inexorável aumento das despesas de saúde, o esgotamento de recursos a que esta situação nos conduz pode servir como argumento e tentação para a facilitação desta atitude eutanásica como forma de solucionar algumas destas situações clínicas e sociais.
Concluo: Na minha opinião a possibilidade de se poder terminar o sofrimento de doentes em casos ímpares e muito bem identificados, de doenca terminal com comprovado sofrimento físico e psicológico, devidamente apoiados e aconselhados do ponto de vista médico incluindo o aspecto psicológico, não constitui um índice de barbárie.
No entanto a consagração deste princípio nao poderá nunca ser deixado exclusivamente aos médicos e terá que passar á forma de lei. O facto de a legislação em favor da eutanásia poder acarretar implicações de tal forma importantes possibilitando utilizações potencialmente abusivas e que extravasam completamente os principios que a deviam assistir leva-me a ter as maiores dúvidas em relação à sua promulgação.

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quarta-feira, 6 de junho de 2007

De Tucídides a Tavares

Rui Tavares é um dos melhores cronistas da nossa praça. Embora esteja varias vezes em desacordo com ele considero-o um dos poucos cronistas (de esquerda e de direita) que não escreve por empréstimo (i.e. reproduzindo os debates partidários ou os jornais de referência internacional…). Faz pouco uso da retórica e a sua identidade parece-me genuína e não uma personagem construída para reforçar as pré-compreensões dos leitores e assim assegurar mais facilmente a sua fidelidade. Foi com surpresa que o vi cair na simples demagogia no seu artigo de ontem no Público. Ao mesmo tempo que criticava riscos de um directório na União Europeia, Rui Tavares defendia que os líderes europeus deviam seguir a citação de Tucídides incluída no preâmbulo original do Tratado Constitucional (mais tarde abandonada): “A nossa constituição chama-se “democracia” porque o poder está nas mãos não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos”. Acontece que nem Tucídides tinha razão quanto ao que é a democracia nem eu penso que é esse tipo de democracia que Rui Tavares gostaria de ver na União Europeia…

A democracia assenta numa ideia de auto-governo, proveniente seja de um preocupação com a liberdade (obediência às leis que impomos a nós mesmos é liberdade, no dizer de Descartes) seja de um reconhecimento de igual dignidade política a todos os cidadãos. Sucede que o reconhecimento destes valores como subjacentes à democracia exige uma noção de democracia muito mais sofisticada que um mero "contar de cabeças". Exige um processo deliberativo livre, informado e inter-subjectivo. Exige que esse processo se preocupe não apenas com a opinião do maior número mas também com a intensidade com que diferentes indivíduos são afectados por diferentes situações. Isto explica, entre outras coisas, porque razão o constitucionalismo democrático não se preocupa apenas em prevenir a concentração do poder nas mãos de uma minoria. Ele procura igualmente impedir que a maioria abuse do seu poder sobre as minorias. A história do constitucionalismo democrático é dominada pela procura de um equilíbrio delicado entre a prevenção da tirania das minorias e da ditadura das maiorias. O poder deve estar na mão de todos e não apenas da maioria: esta é a verdadeira lição democrática.
Sucede que esta visão democrática é ainda mais relevante na União Europeia, onde a ideia de que a cada pessoa deve corresponder um voto tem de ser claramente equilibrada com o reconhecimento de um tratamento igual entre Estados ou comunidades políticas. É estranho que, no mesmo artigo, Rui Tavares fale dos riscos de um directório político dos grandes Estados e clame por uma democracia à la Tucidides: nada reforçaria mais o peso dos grandes Estados que um modelo democrático assente num puro sistema maioritário. No fundo, o artigo de Rui Tavares vem provar que a inconsequência do debate democrático na Europa tem a sua origem na ausência de um verdadeiro debate sobre o que é a democracia. Só partindo deste debate mais geral poderemos vir a descobrir a melhor forma de reforçar a democracia europeia e o valor acrescentado que ela também pode ter na reforma das democracias nacionais.

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terça-feira, 5 de junho de 2007

No meu Instituto

Trabalho numa instituição universitária pública de investigação de alguma reputação nacional e visando ter também alguma reputação internacional. No outro dia, estava aqui um colega de uma outra universidade portuguesa a almoçar e reparou que todos nós almoçamos com alguma pressa e que rapidamente subimos para os nossos gabinetes para trabalhar. Ficou espantado, alegremente, com a nossa "cultura de trabalho". Mal sabe ele que esta "cultura" no fundo deixa é tempo livre para o tempo livre. Mas, no meio disto tudo, vêm os feriados e as pontes. São uma verdadeira praga! De repente, não está cá metade do pessoal dos serviços (é exagero, claro, mas é o que parece). E, perante este cenário, olha-se à volta e também se nota que Lisboa está meio vazia. O que se passa? Passa-se neste país o mesmo que lá fora? Não sei comparar pois não consigo estar em dois sítios ao mesmo tempo. Mas parece haver algum exagero nacional nestas interrupções laborais. Será que os "portugueses" estão a trabalhar menos horas do que deviam? Este assunto é sério em termos macroeconómicos, pois ele afecta verdadeiramente a nossa produtividade (e, logo, a nossa competitividade). Olivier Blanchard disse um dia que Portugal precisava de baixar os salários nominais em 20% para recuperar a competitividade perdida pela valorização cambial trazida pelo Euro (http://econ-www.mit.edu/faculty/download_pdf.php?id=1295). Se calhar o país precisa é de velar mais pelo cumprimento das horas de trabalho. Um dia alguém terá de fazer as contas para perceber se haveria ganhos de produtividade substanciais a derivar de uma maior assiduidade laboral. Começo a pensar que sim. (Uma nota: o facto de escrever este post em horário laboral não afectou a minha produtividade de hoje...)

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Dr. Morte



O Dr. Jack Kevorkian, também conhecido por «Dr. Death», está de volta. No passado mês de Maio saiu da prisão onde passou os últimos oito anos depois de ter assumido que tinha «assistido» 130 pacientes terminais a pôr termo às suas vidas.
Como esta semana o NYT lembrava em editorial, o Dr. Morte está longe de ser um defensor ortodoxo da causa da eutanásia embora tenha conseguido como mais ninguém dar-lhe visibilidade e actualidade na sociedade americana. Com um gosto indesmentível pela provocação, chegou a gravar (e obviamente a ver emitidos em TV) alguns dos «suicídios» que promoveu. Por mais de uma vez desafiou abertamente as autoridades a julgá-lo. Mais grave, nem sempre actuou tendo um conhecimento profundo e de longa data dos seus «pacientes». Para Kevorkian os fins sempre justificaram os meios.
Mas se tendo a franzir o nariz ao homem e aos seus métodos, devo confessar que no essencial apoio a sua causa. Faço-o, bem entendido, com as dúvidas e as perplexidades que não podem deixar de existir quando se lida com matéria tão dramática e tão sensível. Faço-o disposto a aceitar as reservas e os cuidados múltiplos de que uma legislação séria sobre a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido deve revistir-se. Mas, no fim do dia, assumo alguma radicalidade da minha concepção liberal da pessoa humana e defendo o direito de cada um de nós dispôr da sua própria vida. Ainda que seja, numa decisão de desespero de que mais ninguém pode ser o juiz, para acabar com ela.

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segunda-feira, 4 de junho de 2007

The Clockwork Orange

A evolução das neurociências, designação que alberga um conjunto de disciplinas que conjuntamente trabalham com o intuito de desvendar os meandros de funcionamento do nosso cérebro, tanto ao nível neuroquímico, genético, molecular, farmacológico, nas suas vertentes de aplicação médica e cirúrgica, de análise psicológica e comportamental e finalmente também do ponto de vista ético e moral tem sofrido um desenvolvimento impressionante nas últimas décadas. Aquilo que se avizinha poderá ser ainda muito mais portentoso, com consequências sociais que começamos agora a descortinar. A isto aludia o post do Nuno Lobo Antunes de há algumas semanas atrás. Aí se levantava o véu relativamente a alguns indicadores de que vamos dispondo, que apontam para a existência de um determinismo e dependência do nosso ser em relação à máquina que o move, o cérebro, bastante maior do que poderíamos até há algum tempo sequer supor.
Este estado de coisas implicaria assim uma nítida redução do nosso tão prezado espaço de manobra individual, a liberdade e o livre arbítrio, podendo acarretar como consequência última uma situação de potencial desculpabilização do indivíduo em relação aos seus actos.
Levado este argumento às últimas consequências estaremos perante um cenário em que, quando alguém mata, rouba, viola, mente, canta, compõe, pinta ou esculpe, ama ou odeia, o faz não em liberdade mas sim como virtude de uma resposta pré condicionada e a que não pode escapar, que se desencadeia como resultado de um determinado naipe de estímulos, externos mas também internos.
O Homem não é então mais do que uma máquina de uma enorme perfeição dotado de um hardware intrincado que lhe é fornecido sem escolha por via genética e que passa a ser responsável por tudo o que de bom e de mau ele produzir.
Se por um lado alguma verdade, por incómoda que possa parecer a alguns, escorre visivelmente destes argumentos também é certo que nos encontramos numa fase ainda demasiado incipiente para que possamos anunciar estes princípios de forma redutora.
Ainda que a demonstração deste determinismo prossiga, a mesma não poderá sobrepor-se ao edifício moral e ético que nos rege, ele mesmo produto deste mesmo hipercondicionalismo. O saber que alguém errou como causa de uma determinada predisposição e condicionante genéticas não pode sistematicamente levar à diluição das responsabilidades muito menos à sua inimputabilidade. Em tese tal só seria admissível no momento em que a ciência permitisse o conhecimento de todos os botões do teclado humano e, assim sendo, todas as acções potencialmente nefastas do ponto de vista ético-moral pudessem ser preventivamente eliminadas. O catch 22 consiste no entanto no facto de que mesmo aquilo que temos como mal ou bem também não foge à regra do próprio determinismo e muito menos uma eventual vontade de eliminar de vez um ou outro padrão de conduta...
É de antever no entanto que alguma mudança nos padrões morais e éticos se venha a dar de forma lenta e cautelosa. Para o bem ou para o mal ninguém pára o Homem, e a pesquisa científica não é mais do que a demonstração da sua aguçada curiosidade, ela mesmo determinada genéticamente, uma atitude aliás que a meu ver tem também algo de religioso se quisermos utilizar o termo como procura das causas últimas e da nossa transcendência.

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Porcos a mais

A ARTE, televisão que já demonstrou mais de uma vez o seu filoturquismo, tendo mesmo chegado à vergonha de fazer propaganda sob capa de informação, não pode ser acusada de fazer campanha em denegrimento altaico.

Em fins de Maio de 2007 mostra uma reportagem em como o governo turco se aproveita das normas europeias para impor um programa islâmico. Como o Irão seu vizinho, quer expulsar todos os porcos da Turquia, para cumprir o comando muçulmano.

Para o efeito, deu apenas um ano aos criadores de porcos para se adaptarem às normas europeias de higiene, enquanto deu três anos à criação de todos os outros animais para o mesmo objectivo. O governo está a fechar uma por uma as criações de porcos sob o argumento que não respeitam as normas sanitárias europeias, embora não tenha a mesma preocupação com as criações de aves, que já deram problemas algo mais graves como a gripe das aves.

Este é um exemplo quase caricato de como a análise da realidade turca nada tem a ver com a de uma realidade europeia. Levar-nos-ia muito mais tempo, mas pode-se ser fundamentalista islâmico e favorável à adesão europeia, e laicista e totalmente contrário à adesão porque ferrenhamente nacionalista. Aliás essa está bem longe de ser uma excepção. Mas como não vou perder tempo com complexidades que assustam o vulgo, deixo aqui apenas esta pequena nota.

O governo turco acha que há porcos a mais na Turquia. Acusaria de racista quem o contraditar. Vergo-me à sua opinião e apenas o posso citar. Apoio fervorosamente o governo turco. Se assim o acha, passa a ser verdade oficial. Há porcos a mais na Turquia e têm de ser eliminados.

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domingo, 3 de junho de 2007

Da radicalidade da fé

Perguntou, há muitos anos, o então Cardeal Ratzinger: «como se explica que o tema aparentemente mais supérfluo e inútil na Terra continue a ser o mais angustiante da história?»
Procurar a resposta ajuda a perceber a inevitável frustração daqueles que tentam encontrar certezas no conforto das verdades científicas (aliás, nesse sentido, a circunstância de poderem ser apenas pseudo-científicas aumenta o logro, mas nada muda de essencial).
A fé vive da ameaça da incerteza. A fé é insegura. A fé é, no fundo, vontade de crer. No reverso, a ausência de fé é, também ela, incerteza, insegurança e vontade de não crer. Aquele que não acredita enfrenta, necessariamente, a tentação da possibilidade. «Apesar de tudo, talvez seja verdade». Do talvez, ninguém foge. Crentes, agnósticos e ateus partilham a dimensão da dúvida.
Como também disse Ratzinger, «quem quiser fugir das incertezas da fé terá de suportar as incertezas da ausência de fé e nunca poderá dizer com certeza definitiva que a fé não é a verdade. Só na recusa da fé se revela a sua irrecusabilidade».
Ora, a fé dos cristãos – ao contrário da fé de outros, reconheça-se – radica no invisível, no intangível. Deus não se vê, não se ouve, não se toca. Mas, através da fé, os cristãos sabem que Deus existe. A fé dos cristãos faz com que o invisível se torne visível e o intangível se torne tangível, fornecendo uma chave de leitura para o sentido da vida e do mundo.
Contudo, em nenhum momento, a fé deixa de se reconhecer como fé. Com todos os riscos aí implicados, já que a realidade e o fundamento tidos por verdadeiros assentam, afinal, em bases que não se vêem (e cuja prova racional sempre andou, mesmo quando estava mais em voga do que hoje, longíssimo das fórmulas matemáticas ou das experiências laboratoriais).
Um crente sabe que é assim. Um não crente também sabe que é assim. Por isso, exercícios cientistas (ou pseudo-cientistas) só podem convocar os que não percebem a medida da irredutibilidade entre as diferentes explicações. E esses, os que não percebem, são sempre presa fácil para sensacionalismos desonestos.

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sábado, 2 de junho de 2007

A Física do Cristianismo: e ao terceiro livro passou-se!


Frank Tipler (ver também aqui) é um físico teórico bona fide. Não é um maluquinho - é um cientista da Universidade de Tulane, com vários livros científicos e mais de cinquenta artigos e publicados nas melhores revistas internacionais de Física. Trabalha sobretudo em áreas de Cosmologia e Relatividade. Mas passou-se.


Nua sua primeira incursão pela divulgação científica, The anthropic cosmological principle, publicado nos anos 80 em co-autoria com o cosmólogo britânico John Barrow, Tipler começa a debitar algumas ideias pseudo-científicas no mínimo bastante discutíveis. No seu Física da Imortalidade (publicado entre nós pela Bizâncio), de que já é autor único e data de 1994, Tipler já vende descaradamente banha da cobra em todo o seu esplendor: apela à sua autoridade em Física para “provar” a existência da vida depois da morte, proporcionada por uma “inteligência artificial” a que chama “ponto Ómega” e identifica com Deus, um pouco à la Teilhard de Chardin com aggiornamento. O livro conclui com um "apêndice científico" de 110 páginas de equações, obviamente impenetráveis e impressionantes para o leigo, mas que deixam qualquer cientista de cara à banda, pois pouco ou nada têm a ver com o que Tipler afirma. A pseudo-ciência no seu melhor. O que tudo isto tem a ver com Física a sério fica ao cuidado do leitor interessado (ou desinteressado, como é o meu caso).

Se isto já era muito mau, ao terceiro livro Tipler passou-se completamente. Ele acaba de publicar, em Maio de 2007, The physics of christianity. O objectivo é nem mais nem menos do que explicar os milagres da vida de Jesus Cristo à luz da Física Moderna. O primeiro capítulo pode ser encontrado na sua página em Tulane, aqui. Não é preciso ser físico teórico para começar a perceber o desvario.

A ideia central é que milagres são acontecimentos raros – muito raros. Não impossíveis, mas muito raros. Mas Tipler vai mais longe do que procurar a explicação na Física conhecida: quando ela não existe ou todos os dados apontam contra ela, Tipler distorce a realidade para lá do ponto de rotura até ficar de acordo com aquilo em que ele acredita, deixando-nos com a sensação de que afinal tinha sido sempre esse o objectivo. É um livro pseudo-científico, perverso e perigoso.

O facto de Tipler ser um cientista respeitável pode dar a ideia de que está a ser honesto. Não está! Leiam-se por exemplo as críticas dos físicos Lawrence Krauss na New Scientist (More dangerous than nonsense) ou Vic Stenger. Ele distorce a Física conhecida de acordo com as suas conveniências. Para citar Krauss, “Tipler afirma que o modelo standard da Física de Partículas é completo e exacto. Não é. Afirma que temos uma visão coerente e clara da gravidade quântica. Não temos. Afirma que o Universo irá entrar numa fase de colapso. Não tem de o fazer, e tudo o que sabemos actualmente indica que é o contrário que vai acontecer. Afirma que compreendemos a natureza da energia escura: não compreendemos. Afirma que sabemos existir mais matéria do que antimatéria no Universo. Não sabemos. E assim por diante”.

Mas, para lá de permitir semelhantes exercícios desconstrucionistas, o livro de Tipler é fundamentalmente desonesto. Ele afirma que o nascimento de Jesus a partir da Virgem Maria se deu essencialmente por geração espontânea, sendo Jesus portanto homozigótico XX, sendo parte de um dos cromossomas X inactivado para funcionar como Y. A prova está na análise de DNA ao sangue deixada por Jesus no Sudário de Turim – que, infelizmente para Tipler, há muito se sabe ter sido forjado no século XIV. Não contém sangue: contém tintas. Claro que Tipler não acredita nisto, mas é precisamente o que caracteriza o seu livro - uma profissão de fé camuflada por trás de uma nuvem de pseudo-ciência que até pode parecer plausível a leigos.

Andar sobre o mar? Ressuscitar dos mortos? Simples. Bastou esperar 21 séculos para percebermos. Segundo Tipler, as partículas dos átomos do corpo de Jesus decaíram espontaneamente em neutrinos e antineutrinos. Para andar sobre as águas, estes proporcionaram uma espécie de “almofada” de partículas sobre a qual a caminhada teve lugar. Para a Ressurreição, o processo essencialmente inverteu-se: as partículas, ao terceiro dia, “des-decaíram” e voltaram a formar o corpo de Jesus.

Tão simples quanto isto. Mas quando eu parto um copo, os cacos não se voltam a unir, pois não? É uma chatice, chamada Segunda lei da termodinâmica. Para Jesus é pior: o decaimento do protão conduz a uma diferença de cerca de 100 ordens de grandeza! Isto corresponde a uma hipótese de acontecer em um milhão de milhões de milhões de... (um milhão corresponde a seis zeros: continue o leitor a enfileirar milhões até chegar a cem zeros). Impossível, não? Não para Tipler: ele usa uma versão grotesca do princípio antrópico que afirma que, se estamos aqui, é porque aconteceu. Curiosamente, esse princípio é aplicável não apenas ao Deus cristão, mas a qualquer Deus, ou mesmo a qualquer crença.

O Prémio Templeton, no valor de 1,2 milhões de euros (há quem diga que o valor foi escolhido para ser superior ao Nobel) e instituído pela Templeton Foundation, cujo objectivo declarado em grandes parangonas na página de entrada é "Supporting Science - investing in the big questions" premeia individualidades que consigam a proeza de aproximar a ciência da religião. Tipler esteve quase a ganhar com o seu Physics of Immortality; em 2006 o premiado foi o seu co-autor John Barrow. Agora, com Physics of Christianity, deve ser o eleito. Mesmo que a verdade seja a sua primeira vítima.

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quinta-feira, 31 de maio de 2007

V. A herança de Blair

Tornou-se num dos símbolos da política espectáculo, da simpatia feita político e feita política, da moral como paradigma mediático da política (a ideia de relações internacionais baseadas na moral (?), por exemplo – ironia se a há para quem mentiu de forma tão pobre, mais que descarada).

O político de génio é em parte como qualquer outro génio. Caracteriza-se por um misto indefinível entre obsessão, obstinação e flexibilidade. Churchill e De Gaulle são dois bons exemplos de teimosia descomunal e capacidade de compromisso com o pormenor. A natureza ginasticada de Blair não pode ser posta em dúvida. Mas “idée fixe”, nenhures. Em boa verdade, ideia, algo fraca.

Porque Blair é o epítome de uma das mais medíocres gerações de políticos que a Europa já viu. Schroeder, Aznar, Berlusconi, Chirac, Jospin, Prodi, a lista é infindável. A lista de políticos medíocres. Os anos de 1990 tiveram outros paralelos na História da Europa, em que a política foi invadida por meros gestores do quotidiano e do mediático. Boulanger sempre existiram. Boulangismos são sinal de épocas cansadas, exaustas, sem ideias.

Blair é apenas mais um entre muitos. Mais um exemplo de uma geração feita para os meios de comunicação social, em que o fundamental é o sorriso. Teve a sorte de herdar de Thatcher o trabalho mais difícil e a inteligência de o preservar. Mas em pouco se diferenciou dela. Thatcher em relação ao que destruiu não se fez de rogada, nem teve lágrimas de crocodilo. A grande diferença é que Blair se dizia preocupado. Sem mais. Sem nada mudar. Paradigma do politicamente correcto, das grandes causas, viveu de medíocres efeitos.

Se Blair foi popular é apenas porque se adequou à sua época, não porque anunciasse uma nova. Na política é uma Bela Otero, não um Baudelaire.

Só se pode julgar severamente quem ocupa altos cargos ou tem elevada dimensão. Estarei autorizado a fazê-lo em relação a Blair pela primeira razão, não pela segunda. É evidente que para o comentador político Blair pode ser grande. O comentador político está habituado ao tempo histórico curtinho, apertado. Não sabe por isso reconhecer o prenúncio nem ver para além dos cinco anos. Blair um grande político? Perdoem-me que o cite mais e uma vez mais. Talleyrand: “tudo o que é exagerado é insignificante”. Este sim era um grande político. Podia falar de pedestal.


Alexandre Brandão da Veiga

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Greve parcial

Não ouso tomar partido nas patéticas guerras de números entre governo e sindicatos. Mas uma coisa me parece evidente: se a greve de ontem serviu para alguma coisa foi para tornar evidente que o país está absolutamente dividido e que é impossível por de pé um greve verdadeiramente «geral». De um lado está um sector público pesado e ineficaz incapaz de se reformar, resistente a qualquer mudança e que só encontra mesmo companhia nuns sindicatos que há muito perderam o norte e sobretudo a respeitabilidade. Do outro lado está um país (o único «país real» sem o qual mais nenhum país pode existir) asfixiado pelo peso insustentável de uns dos impostos mais altos da Europa que, a estar solidário com alguma coisa, é precisamente com as (poucas) medidas do governo que estão na origem da pseudo-greve de ontem.
Como é habitual, os sindicatos verão na falta da adesão à greve dos trabalhadores do sector privado insondáveis maquinações e terríveis pressões de um patronato sem escrúpulos. É pena. Se se libertassem dessa visão arqueológica do Mundo talvez tivessem um papel a desempenhar na discussão do futuro do país. Assim arriscam-se a tornar-se irrelevantes mais depressa do que imaginam.

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O beijo. Ao vivo e a cores

Não que as palavras do Manel não fossem eloquentes. Mas é dificil fazer justiça à Maureen 0'Hara...

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quarta-feira, 30 de maio de 2007

O Beijo

O beijo que ele deu a Maureen O’Hara em The Quiet Man é o arquétipo de todos os beijos. É mesmo, neste mundo de cópias e simulacros, a única “forma platónica” a ter descido do mundo das ideias à conspícua caverna em que habitamos. No caso, o do beijo entenda-se, a caverna é irlandesa: há lá fora uma tempestade homérica, um relâmpago despedaça a escuridão e ele, Sean Thornton, num movimento redondo e olímpico, puxa para si o indomável corpo e a ruiva cabeleira de Mary Kate. Os lábios encontram lábios e um daqueles ventos, que só um grande filme romântico pode dar-nos, faz estrondosamente bater todas as portas. Poderíamos nunca mais ver mais nada, poderíamos nada ter visto antes, bastava esse beijo em Innisfree. Deu-o John Wayne a Maureen O’Hara, num dos melhores filmes de ambos e num dos melhores filmes dos 20 melhores filmes de John Ford. Evoco a cena para comemorar o centenário do nascimento de Wayne. Sem mais efusões e sem mariquices como ele gostaria.
E ponho-me a pensar se o Pedro Bandeira Freire, fundador dos cinemas Quarteto, também o homenagearia com esta cena. É o que lhe vou perguntar amanhã, 5ª, no Corte Inglês, quando às 19:00 apresentarmos, com a ajuda da Mafalda Mendes de Almeida, o seu livro “Entrefitas e Entretelas”. É no 7º andar e vai lá estar meio mundo e um belo circo mediático. O livro é dele, mas Fellini, esteja onde estiver, vai morrer de inveja por já não poder filmar as histórias de mulheres, as histórias de homens, as histórias de cama, as histórias de copos que neste livro se cruzam. São histórias de Lisboa que não tem nenhum Fellini para a filmar, mas tem o Pedro para a evocar.

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IV. A herança de Blair

Internamente deixou igualmente bastas fracturas.

Embora tenha conseguido a descentralização (a “devolution”) da Escócia e em parte do País de Gales, conseguiu alienar o escocês, tradicionalmente anti-conservador e mais trabalhista, para uma cada vez maior simpatia para o Partido Nacional Escocês.

Mostrou com a Guerra no Iraque uma fractura abissal entre a vontade popular e os seus representantes, mais do que uma democracia representativa pode suportar a longo prazo. Pela primeira vez em muito tempo os britânicos sentiram que numa questão essencial o poder popular irreleva. Nesse aspecto é apenas mais uma ocorrência de uma regra geral: a de que, em democracia, quando os povos desprezam os políticos são por eles desprezados. Mas mostrou igualmente os limites do nexo de representação numa democracia, nisso sendo banal e acompanhado pela Itália e pela Polónia por exemplo. Mais uma vez é apenas mais um exemplar de uma regra geral, seguiu o seu tempo, em nada o ultrapassou e em nada anunciou um paradigma para o futuro.

Quis fazer do multiculturalismo inglês o paradigma europeu e acaba o mandato a ter de restringir esse mesmo modelo. Desprezando os conselhos da DST francesa levou quase oito anos a perceber a sua valia, e fê-lo tardiamente. Mostrou-se generoso com os cidadãos dos novos países aderentes, para depois já em relação à Bulgária e à Roménia estabelecer restrições. Esperava que com a entrada da Turquia as emigrações se dirigissem para a Alemanha e para a Bélgica, sendo por isso irrelevante (na aparência) para a Inglaterra, mas começa a ter pensadores políticos que se começam a perguntar se a Inglaterra não terá o impacto directo dessa imigração, o que está a arrefecer algum entusiasmo deste apoio.

Há quem o compare com Gorbachov, mais amado no exterior que no seu próprio país. Comparação algo forçada, porque a obra de Gorbachov, incompleta que seja, foi essencial para evitar ao mundo uma guerra mundial, possivelmente nuclear, o que seria bem credível com um império agonizante. De comum, só o facto de ser detestado pelo seu próprio povo, pouco mais.

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Alguém Explica Esta Greve?

José Sócrates não é Margaret Thatcher e a conflitualidade social portuguesa nada tem a ver com a britânica dos anos 70 e 80 do século passado. Resultado: continuamos a ter uma central sindical a fazer o jogo de um partido político. Será que é isto que se passa? Não sou cientista político e os cientistas políticos também não têm dado a devida atenção a este fenómeno. É verdade que, nas actuais circunstâncias, o ajustamento dos preços portugueses aos preços internacionais se faz mais facilmente pela moderação salarial. Quem recebe salários sabe intuitivamente isso e por isso dá luta (mas o ajustamento também se faz pelo desemprego). Mesmo com alguma razão do lado de quem recebe salários, não é através de uma greve geral que se leva a prestar atenção a estes problemas. A greve geral assinalaria o descontentamento com as parcas reformas que estão a ser feitas pelo Governo. A central sindical comunista não quer as reformas? O que é que ela quer? Alguém explica? Ainda por cima a adesão pode ser grande, o que torna a explicação ainda mais complicada.
E aqui o desenvolvimento.

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