Cristianismo e paganismo indo-europeu
Se não for muito esforço obrigar
o leitor a ter algum distanciamento, convido-o a elevar-se um pouco da cadeira
onde vê televisão e lê os seus jornais. Ao ver este improvável continente
chamado Europa, península feita de penínsulas, descobre dois aspectos
aparentemente contraditórios. Uma diversidade criativa como a História nunca
viu e ao mesmo tempo uma unidade que não existe em mais nenhum continente.
A diversidade de criação encontra-se
em todos os campos em que a Europa revolucionou o mundo, nas artes, todas, nas
ciências quase todas sua criação, na filosofia. A unidade nas instituições de
base, nos problemas fundamentais, nas fontes comuns.
Se nos elevarmos acima do
anedótico vemos que este continente sempre falou consigo mesmo, mais numas
épocas, menos noutras. Que é maior a ligação entre Lisboa e Moscovo, sendo que
em Lisboa se lê Tolstoï, que entre a Turquia e a China, apesar de estes dois
serem países asiáticos.
Se nos elevarmos do anedótico
vemos que sobre um substrato autóctone se instalam duas forças maiores, o
paganismo indo-europeu e o cristianismo. Quem conhece as fontes directamente
sabe que mais não fazemos desde há milénios senão colocar e recolocar problemas
que têm a mesma filiação, a mesma origem e semelhantes tonalidades de soluções.
Uma lei muito conhecida nos
estudos indo-europeus é a da alternância vocálica segundo a qual o significado
de uma raiz se define pelas suas consoantes e sonantes. A alternância de vogais
não afecta o seu significado. Lei descoberta e discutida desde o século XIX,
descrita por mim de uma forma que merecerá reparos graves pelos especialistas,
é no entanto metáfora adequada para o que sempre foi a Europa. Quem a conhece a
fundo percebe alternâncias que são vocálicas, mas que não alteram o significado
profundo das suas raízes.
A questão é a de saber se vale a
pena manter a estabilidade das raízes, ou seja, e enfrentando o problema: vale
a pena manter um espaço de diversidade, ou é melhor transformá-lo no seu
contrário, num espaço multicultural em que asiáticos, como os turcos e no
futuro a Ásia central participarão?
Sou o primeiro a reconhecer que
um modelo que falha deve ser substituído. A questão é a de saber se falha e, a
ser substituído, qual a melhor substituição. Vale a pena continuarmos a ser
Europa, em suma?
Vejamos primeiro se o modelo está
a falhar.
O modelo falha sob o ponto de
vista demográfico, falha pela sua grande rigidez em resolver problemas novos: a
unificação mais urgente da Europa, a criação de uma defesa comum, a adaptação
de sistemas de protecção social a um mundo em que a Europa já não está a
anos-luz de distância tecnológica dos restantes continentes, à criação de novos
movimentos culturais.
Mas o modelo não falha no que diz
respeito ao bem-estar geral das populações, à riqueza criada, ao património cultural
adquirido, preservado, e de certa forma desenvolvido. Não falha igualmente em
relação aos novos modelos, como o da integração europeia, que mostra ser a
Europa o continente mais desenvolvido sob o ponto de vista político. Modelo com
muitos defeitos, mas onde todos querem entrar, asiáticos e africanos incluídos.
Vejamos então por que modelos
querem substituir o actual. São três, e ambos frequentemente aliados entre si,
apesar de oficialmente inimigos.
O primeiro o do
multiculturalismo. Estéril sob o ponto de vista cultural. Nunca nenhuma grande
revolução científica, filosófica ou artística veio desses sistemas. Nem a
Turquia nem o império medo-persa deram contributos que deixassem marcas de
relevo na cultura mundial.
O segundo o nacionalismo. Proposta
simpática para pequenos comerciantes, mas irrealista e óptimo factor de
dissolução do poder europeu.
O terceiro é o cosmopolitismo,
seja ele capitalista ou ecológico, ou terceiro-mundista. O projecto é dissolver
a Europa num mundo, mundo esse que no seu conjunto nunca produziu, nessa
qualidade, nenhum fado relevante. Os grandes criadores, e as grandes criações
que influenciam a nossa vida nunca foram facto mundial pela sua fonte, mas
apenas pelas suas consequências.
O modelo tem inércias e falhas, e
não está num dos seus maiores momentos de glória, sem dúvida. Mas encontrou
dentro de si mesmo uma forma de renovação, a integração europeia. As
alternativas são pobres, ou já gastas ou sem resultados positivos.
Vale a pena manter, sobre este substrato
autóctone dissolvido sob o peso da invasão indo-europeia e cristã as forças que
sempre o compuseram? A resposta para mim é inequívoca: sim.
Vale a pena pelo que faz ainda. A
zona mais rica do mundo, com maior património económico, cultural, social e
político do mundo, que cria os maiores pensadores do mundo ainda hoje em dia. A
zona do mundo com maior equilíbrio entre prosperidade e distribuição de
riqueza.
Vale a pena pelo que já está a
fazer. Integrando-se a Europa já tem um real peso na diplomacia económica,
ecológica, social. É seguida como exemplo em todo o mundo. Todos os modelos de
integração económica seguiram o paradigma europeu, incompletamente, mas
inequivocamente.
Vale a pena pelo que pode ainda
fazer. Porque ao longo da História houve momentos de pausa, de tomada de
fôlego. Estes momentos podem ser de decadência ou de impulso. A França foi mais
de uma vez o país mais poderoso da Europa e mais de uma vez fraca. O sacro
império, a Inglaterra, Portugal, a Rússia, todos eles tiveram altos e baixos. Não
se pode dizer que há uma época de ouro e a partir daí é a decadência. É uma
visão demasiado europeia das coisas, demasiado marcada pelo trauma da queda do
império romano.
O que a Europa pode ser depende
do que se fizer dela. Problemas tem muitos, mas potencialidades tem-nas todas.
Desde que não se fie em soluções tontas, como as de integrar a Turquia, o
Azerbeijão, Israel ou Marrocos, ou um dia toda a Ásia Central. Desde que saiba
ter personalidade suficiente para não ter de ser anti-americana, mas também
para que o seu aliado principal não sejam os Estados Unidos. Desde que tenha um
projecto que use dessa tensão entre paganismo e cristianismo que sempre a moveu
e fez do pensamento teológico a origem da física e da matemática, da
irrequietude filosófica, motor de tecnologia.
É evidente que esta visão é larga
demais para quem viveu uma vida alimentando-se apenas das notícias do dia. É
evidente que é assustadora para quem se educou com sebentas, com circulares de organismos
internacionais ou com instruções de concelhias ou distritais de partidos.
Mas só se faz grande política que
percebemos que existe um mundo fora de nós, antes de nós, depois de nós. A
grande política é para gente de vistas largas, não para pessoas que se
satisfazem com comunicados técnicos da Comissão Europeia ou da Casa Branca.
Vale a pena continuar o nosso
paradigma? Digo que sim e direi mil vezes. A alternativa apenas abre as portas
a um sub-proletariado externo, vindo de culturas decadentes, de quem não são
sequer os melhores representantes. E mesmo que fossem, ser o melhor de mundos
poucos férteis não é credencial de qualidade. O melhor dos oásis não vale a florescência
dos campos europeus.
Alexandre Brandão da Veiga
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