terça-feira, 17 de março de 2015

O cristianismo reprime o «eros»?



Existe uma e só uma religião do amor: o cristianismo. Em mais nenhuma Deus é amor. Este axioma, equivalente a muitos outros do cristianismo, não é partilhado por mais nenhuma outra religião. A tentativa que hoje em dia existe de encontrar o amor universal noutras religiões resulta apenas de um etnocentrismo, de um provincianismo arreigado da parte de quem o enuncia.

Não é essa demonstração a fazer por agora. É outra. Que realidade nos dá este amor? A questão é que ser religião do amor está bem longe de planos delicodoces e bem compostinhos, ao contrário do que se possa pensar.

Existe uma tese simétrica à primeira: a de que ser religião de amor é uma pudibundice, porque mais não significa que o cristianismo oprimiu o «eros», o amor sensual, tão grego, tão puro, tão rico. A tese simétrica é uma espécie de birra. «Ai sim? És a única religião de amor? Serás então religião de um amor repressivo, o tal que esquece o “eros”».

Nem vou ter em conta o conceito de amor em hebraico e aramaico. Não tenho nenhuma competência nessas línguas.

A questão é que basta pensar no latim e no grego e encontro pelo menos seis palavras para designar o amor. Basta dar um passeio rápido por cada uma delas para se perceber que a tese simétrica cai pela base.

Comecemos pelo latim: «amor», «caritas», «diligentia».

«Amor» não é uma palavra indo-europeia sequer. Segundo Ortega y Gassett era de origem etrusca. A raiz indo-europeia «*leubh», refere-se ao desejo sexual, ao impulso vital numa direcção, ao querer ter para nós algo. É dela que vem «Liebe», «love», mas também «libido» em latim. É facto significativo que os romanos tenham tido de importar a palavra «amor». Os nossos antepassados viveram bem sem uma concepção expressa do amor. A ser assim o «amor» é uma realidade estranha ao nosso ambiente, importada como conceito. Conseguimos aguentar durante milénios sociedades sem precisar de o enunciar, tal como os gregos, apesar de terem e usarem um corpo, não tinham em Homero palavra para ele. «Soma» era inicialmente o cadáver, não o corpo.

«Caritas» é mais fácil de deslindar. Primo de «charis», dádiva, dom. Como o carisma, dom que é recebido. «Caritas» é semanticamente parente do «bagha» sânscrito, dádiva e deus ao mesmo tempo. O divino é o que dá sem se empobrecer, como Numénio, um filósofo pagão do Baixo Império dizia. Quando Bento XVI diz que «Deus caritas est» salienta este aspecto da divindade que dá, e que se dá.

A «diligentia», encontro-a recorrentemente em Santo Agostinho, sobretudo na forma verbal de «diligo». Parente de «dilecto» como em expressões «filho dilecto». Como «religio», parece que está ligada à raiz «leg», também «diligo» parece estar. «Leg» vem a dar «ler» mas na base é colher, e escolher. A «diligentia» é o que dá fruto, e o que se escolhe.

Vejamos agora o grego: «philia», «eros», «agape». Aqui a análise é difícil ser muito original. Mas infelizmente a escolha de palavras pelo cristianismo não é geralmente fundamentada, raramente se fala no assunto. Porque escolher «agape» para o amor e não «philia» ou «eros»? É que, se em latim as três anteriores palavras aparecem como amor em contexto religioso, em grego prevalece inequivocamente «agape». Será que a dita cuja tese simétrica tem razão?

Porquê «agape» e não «philia» ou «eros»?

Quanto a «philia», foi o bom do Benveniste quem me deu a explicação sem o saber. Mostra que «philia» é um sentimento que se pode ter mesmo por um inimigo, que se mantém como tal, apenas se suspende a inimizade. Há «philia» entre dois guerreiros inimigos quando fazem tréguas, quando estabelecem condições para a paz. «Philia» pode ser uma relação de interesse, como mostra Aristóteles. «Philia», assim, levanta vários problemas: é uma forma de «amor» que pode ser temporária, condicional e basear-se no interesse. Não serve para o amor divino, o amor que Deus tem por nós, e nós por ele. Nem pode servir para o amor entre irmãos.

Já quanto a «eros», o tão mal afamado e supostamente reprimido «eros», foi Festugière quem me mostrou o problema. Pode-se ter «eros» em relação Deus, uma relação apaixonada, erótica, de ânsia, nostalgia, languidez, «longing», em relação a Deus, como mostram os místicos. Mas seria algo suspeito ter «eros» em relação a um irmão, reconheçamo-lo. Ter anseio por ele, desejá-lo, ficar arrebatado com a sua presença, lânguido na sua ausência. Em suma, estar apaixonado.

Ora, entramos aqui nas razões profundas que levam a escolher «ágape». É significativo que em latim a tradição tenha aceitado três palavras diversas: «amor», «caritas», «diligentia». E que em grego faça prevalecer uma: «agape». Não é birra nem capricho. E nada tem a ver com a repressão do erotismo.

Fundante do cristianismo é que o sentimento (embora o amor seja mais que um sentimento) que se tem por Deus e pelos homens seja da mesma natureza entre si, bem como o sentimento que Deus tem pelos homens (e por si, já agora, por via da Santíssima Trindade) seja da mesma natureza. Do homem para Deus, de Deus para os homens, nos homens entre si, o sentimento é o mesmo. Fundante no cristianismo é que Deus e os homens estão unidos pelo mesmo sentimento, da mesma natureza. É essa a palavra de Cristo, quando lhe perguntam sobre qual é o maior mandamento.

Como se vê, o cristianismo não tem afã em cortar palavras. Três são aceites no latim, mesmo que uma só prevaleça em grego. Não visa reprimir o erotismo, que é admitido em relação a Deus, mas não pode ser sentido em geral em relação aos homens. O que visa é apenas espalhar a boa nova: o que Deus sente por nós estamos livres para o sentir por Ele e pelos outros homens, precisamente o mesmo, o mesmo sentimento. É uma escolha de liberdade. Aí a temos, a escolha: diligentia.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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