O cristianismo reprime o «eros»?
Existe uma e só uma religião
do amor: o cristianismo. Em mais nenhuma Deus é amor. Este axioma, equivalente a
muitos outros do cristianismo, não é partilhado por mais nenhuma outra religião.
A tentativa que hoje em dia existe de encontrar o amor universal noutras religiões
resulta apenas de um etnocentrismo, de um provincianismo arreigado da parte de
quem o enuncia.
Não é essa demonstração a
fazer por agora. É outra. Que realidade nos dá este amor? A questão é que ser
religião do amor está bem longe de planos delicodoces e bem compostinhos, ao
contrário do que se possa pensar.
Existe uma tese simétrica
à primeira: a de que ser religião de amor é uma pudibundice, porque mais não significa
que o cristianismo oprimiu o «eros», o amor sensual, tão grego, tão puro, tão
rico. A tese simétrica é uma espécie de birra. «Ai sim? És a única religião de
amor? Serás então religião de um amor repressivo, o tal que esquece o “eros”».
Nem vou ter em conta o
conceito de amor em hebraico e aramaico. Não tenho nenhuma competência nessas
línguas.
A questão é que basta
pensar no latim e no grego e encontro pelo menos seis palavras para designar o
amor. Basta dar um passeio rápido por cada uma delas para se perceber que a
tese simétrica cai pela base.
Comecemos pelo latim: «amor»,
«caritas», «diligentia».
«Amor» não é uma palavra indo-europeia
sequer. Segundo Ortega y Gassett era de origem etrusca. A raiz indo-europeia «*leubh»,
refere-se ao desejo sexual, ao impulso vital numa direcção, ao querer ter para
nós algo. É dela que vem «Liebe», «love», mas também «libido» em latim. É facto
significativo que os romanos tenham tido de importar a palavra «amor». Os
nossos antepassados viveram bem sem uma concepção expressa do amor. A ser assim
o «amor» é uma realidade estranha ao nosso ambiente, importada como conceito. Conseguimos
aguentar durante milénios sociedades sem precisar de o enunciar, tal como os
gregos, apesar de terem e usarem um corpo, não tinham em Homero palavra para
ele. «Soma» era inicialmente o cadáver, não o corpo.
«Caritas» é mais fácil de
deslindar. Primo de «charis», dádiva, dom. Como o carisma, dom que é recebido.
«Caritas» é semanticamente parente do «bagha» sânscrito, dádiva e deus ao mesmo
tempo. O divino é o que dá sem se empobrecer, como Numénio, um filósofo pagão
do Baixo Império dizia. Quando Bento XVI diz que «Deus caritas est» salienta
este aspecto da divindade que dá, e que se dá.
A «diligentia»,
encontro-a recorrentemente em Santo Agostinho, sobretudo na forma verbal de
«diligo». Parente de «dilecto» como em expressões «filho dilecto». Como «religio»,
parece que está ligada à raiz «leg», também «diligo» parece estar. «Leg» vem a
dar «ler» mas na base é colher, e escolher. A «diligentia» é o que dá fruto, e
o que se escolhe.
Vejamos agora o grego: «philia»,
«eros», «agape». Aqui a análise é difícil ser muito original. Mas infelizmente
a escolha de palavras pelo cristianismo não é geralmente fundamentada, raramente
se fala no assunto. Porque escolher «agape» para o amor e não «philia» ou
«eros»? É que, se em latim as três anteriores palavras aparecem como amor em
contexto religioso, em grego prevalece inequivocamente «agape». Será que a dita
cuja tese simétrica tem razão?
Porquê «agape» e não
«philia» ou «eros»?
Quanto a «philia», foi o
bom do Benveniste quem me deu a explicação sem o saber. Mostra que «philia» é
um sentimento que se pode ter mesmo por um inimigo, que se mantém como tal, apenas
se suspende a inimizade. Há «philia» entre dois guerreiros inimigos quando
fazem tréguas, quando estabelecem condições para a paz. «Philia» pode ser uma relação
de interesse, como mostra Aristóteles. «Philia», assim, levanta vários
problemas: é uma forma de «amor» que pode ser temporária, condicional e
basear-se no interesse. Não serve para o amor divino, o amor que Deus tem por
nós, e nós por ele. Nem pode servir para o amor entre irmãos.
Já quanto a «eros», o tão
mal afamado e supostamente reprimido «eros», foi Festugière quem me mostrou o
problema. Pode-se ter «eros» em relação Deus, uma relação apaixonada, erótica,
de ânsia, nostalgia, languidez, «longing», em relação a Deus, como mostram os
místicos. Mas seria algo suspeito ter «eros» em relação a um irmão, reconheçamo-lo.
Ter anseio por ele, desejá-lo, ficar arrebatado com a sua presença, lânguido na
sua ausência. Em suma, estar apaixonado.
Ora, entramos aqui nas
razões profundas que levam a escolher «ágape». É significativo que em latim a
tradição tenha aceitado três palavras diversas: «amor», «caritas», «diligentia».
E que em grego faça prevalecer uma: «agape». Não é birra nem capricho. E nada
tem a ver com a repressão do erotismo.
Fundante do cristianismo
é que o sentimento (embora o amor seja mais que um sentimento) que se tem por
Deus e pelos homens seja da mesma natureza entre si, bem como o sentimento que
Deus tem pelos homens (e por si, já agora, por via da Santíssima Trindade) seja
da mesma natureza. Do homem para Deus, de Deus para os homens, nos homens entre
si, o sentimento é o mesmo. Fundante no cristianismo é que Deus e os homens
estão unidos pelo mesmo sentimento, da mesma natureza. É essa a palavra de Cristo,
quando lhe perguntam sobre qual é o maior mandamento.
Como se vê, o cristianismo
não tem afã em cortar palavras. Três são aceites no latim, mesmo que uma só
prevaleça em grego. Não visa reprimir o erotismo, que é admitido em relação a
Deus, mas não pode ser sentido em geral em relação aos homens. O que visa é
apenas espalhar a boa nova: o que Deus sente por nós estamos livres para o
sentir por Ele e pelos outros homens, precisamente o mesmo, o mesmo sentimento.
É uma escolha de liberdade. Aí a temos, a escolha: diligentia.
Alexandre Brandão da
Veiga
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