Fundamento e encontro III
O que lhe falta então?
A natureza do problema ajuda-nos a perceber a natureza da resposta. Dizia eu
que os fundamentos da matemática conduzem a paradoxos. Sempre se soube isso. Esperanças
de Hilbert só alguns momentos de imprudência as puderam alimentar. Na física, a
natureza da constituição fundamental da matéria remete para a metafísica, de
uma forma ou de outra. Os mesmos padrões teológicos se repetem nos fundamentos da
física. Cantor dizia que preferia a matemática à física, porque a primeira e
mais livre de fundamentos metafísicos. Não era destituído de bom senso quando o
dizia. Na biologia, quando se pergunta sobre a origem da vida, falar em origem
extraterrestre apenas evacua o problema para essa região do mundo, falar em
origem bioquímica da vida remete para a química mas também para a explicação de
como o inanimado pode comungar com animado e no entanto ser tão diferente. Como
a criança que pode estar a evacuar a questão atirando mais e mais porquês,
também podemos estar apenas a evacuar o problema colocando a questão. Mas, não a
colocando não apagamos o problema, apenas o escondemos da nossa vista.
Quando Pilatos coloca a
questão rotineira na sua época e decorrente de uma versão vulgata da filosofia,
«o que é a verdade?» recusa o fundamento, o tema, a comunicação. Não percebeu
que sempre que se coloca a questão do fundamento surgem jogos de espelhos,
labirintos, reflexos de reflexos. O seu instinto diz-lhe que é disso que se
trata. A sua incapacidade fala, não o seu pensamento. É a sua impotência que
coloca em cima da mesa. Que a dialéctica seja um caminho da solução, percebe-se.
A palavra está gasta e perde por vezes do seu fulgor inicial. Mas que coisa afinal
se refere quando se usa a palavra? Alguns antigos perceberam que o fundamento
se descobre num encontro, numa efectiva comunicação, em tornar comum. Esse
encontro tem de ser realizado com alguém que nos seja comum. Em suma: uma
pessoa. Ma os dialogo é apenas a face externa do mais importante. O fundamento
é um encontro. O diálogo apenas a sua faze visível.
Perguntar pela verdade
e perguntar pelo fundamento. Não se trata de pieguice invocar o encontro com
uma pessoa. Uma coisa são os desistentes que param algures, muito cedo, e sem perceberem
que a paragem em nada legitima o seu discurso, outra coisa são os herdeiros,
que, ao contrário das crianças, perguntam e tentam dar respostas. Na lógica e
na matemática, encontram paradoxos, na pintura depuram até quase nada sobrar,
na arte em geral tentam encontram fundamento e acabam no conceito longe dos sentidos,
pudibundo e solitário, ou num primitivo arrevesado que mais não é que retorno à
casa de partida num jogo viciado. Na filosofia idolatram Unos, Seres, a
Totalidade, a Dialéctica... As palavras são necessárias, mas acabam por ser
empecilhos, meros ícones adorados que não deixa ver o que precisamente deveriam
representar. Ir à procura do fundamento acaba muitas vezes por ser ir para a
lugar nenhum, a boa da clareira que nos persegue por onde vamos, e não nos deixa
entrar na floresta. Despojados, acabamos barrocos, técnicos, acabamos infantilizados,
palavrosos, acabamos no silêncio. Por que via lá tentemos chegar, uma e a mesma
paisagem nos espera, quando confiamos apenas nas próprias forças: o paradoxo, o
jogo de espelhos, a miragem, o ícone impeditivo. São apenas diversos nomes para
um mesmo lodaçal.
É preciso parar para
que haja demonstração, lembrava sabiamente o velho Aristóteles. Não era por
medo que o dizia, mas porque sabia que o uso de uma razão debatida com ela
mesma e assente nela mesma exige que se assente num ponto de partida a partir do
qual nada mais podemos afirmar. Apenas refutar. Medos tinha ele do infinito
enquanto tal e com boas razões. Mas não de reconhecer que ele estava ali à
nossa porta sempre que não nos contínhamos.
Quem pretende tapar os
olhos, ou usar a pergunta como mera forma de ênfase, ou impedir que se faça a
pergunta, quem como a criança atira a pergunta apenas para exercer um poder mágico
sobre o interlocutor, atirando-lhe o ónus de uma impossibilidade, e coloca a pergunta:
«mas o que é...?» a verdade, e a Europa, a felicidade, o amor, pretende acabar
com o encontro, torna-lo nulo, e por isso mesmo impedir que surja na sua glória
o fundamento. E que este seja um encontro, e consequentemente, não o fim, mas o
início do verdadeiro diálogo.
Schelling dizia «Person
sucht Person». Pessoa procura pessoa. Não é pieguice. Sou o primeiro a saborear
a beleza das paisagens depuradas e abstractas que nos oferece a matemática, a
lógica, a ascese de linguagem e vivências. Quem chegou ao Uno só se pode
maravilhar. Mas bem sabemos que o caminho de volta é trôpego. Plotino tem um
percurso lógico até ao Uno. Nada ou quase nada se pode apontar ao seu rigor
logico quando sobre. Mas quando desce, que tombos. É ele mesmo a espantara-se
como se «atreveu» o Uno a dividir-se, emanar, sair fora de si, permitir ao
menos que haja algo fora de si. O diálogo é apenas a forma exterior de um
verdadeiro encontro. Por isso a ideia de um deus pessoal que parece infantil e
meramente consoladora para almas limitadas, é afinal a única solução para o
paradoxo: a de ser vivo o paradoxo ele mesmo.
Não sei se a
generalidade do que afirma poderá afastar olhares, ou se será antes a sua
incarnação. Que seja. Ambas as atitudes são infantis. Se somos dotados de ambas
capacidades, a de viver concretamente e a de congeminar na abstracção, algum
sinal isso nos dá do nosso destino. O fundamento é um encontro. Com uma pessoa.
É simples. Só quem nunca se deparou com ele pode dizer o contrário.
Alexandre Brandão da
Veiga
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