segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Fundamento e encontro II

A estreiteza de vistas é a de quem perante a pergunta sobre o fundamento, ao pé julga que é pergunta, mas visto ao longe percebe que é dissolução do tema. Aquela só pode ser vista ao longe, porque vista ao perto parece inexistente, ou apenas inócua. Só ao longe se percebe que a ênfase está no tema, mas a enfase é dada para que lhe retirar importância.

O que o leva a ter estreiteza de vista, a querer ter esta dissolução do tema? O modo como se comporta o que ele recusa. O fundamento. O processo é que o fundamento tem uma natureza esguia, arredia, escapa-se-nos das mãos. Na matemática os fundamentos acabam em paradoxos. O nosso velho Aristóteles mandava parar algures, sob pena de a demonstração nunca ser feita. Ele bem sabia das perguntas das crianças: E porquê? E porquê? E porquê? Se a criança pergunta até ao infinito, essa afirmação tem a sua razão. Percebe que uma pergunta muito simples lhe abre portas tanto sobre as coisas, como sobre a incapacidade dos adultos. Exaure o mundo enquanto ao mesmo tempo exaure os seus pais. A sua origem não é capaz de explicar a origem das coisas. Maravilhoso, mágico instrumento, este «porquê?». É evidente que se pode tornar muleta, mero instrumento de preguiça, ou mesmo de exploração. Perguntar porquê até ao infinito retira-nos o trabalho de pensar e atra ao que nos rodeia todo o esforço nesse sentido. O «porquê» das crianças pode ser profundamente explorador, parasita, manipulador. E quando ingenuamente alguns pedagogos se fascinam com a infinitude da pergunta e a beleza do pensamento infantil que é inesgotável a perguntar «porquê?», esquecem que se pode tornar em instrumento de exploração. É nesse momento em que ao adulto deve parar o questionamento.

Questão bem diversa é quando a pergunta é feita do próprio ao próprio. Aqui a varinha mágica perde-se, porque todo o esforço que criamos somos nós a ter de resolver. Porque isso o que recusa o fundamento, é precisamente o que mais vezes pergunta «porquê». Perguntou-se algumas vezes e embateu com a dureza da sua própria cabeça. Incapaz de responder à pergunta atira aos outros os limites do seu próprio pensamento. «O que é a verdade?». Se Pilatos coloca esta questão é porque nunca foi capaz de lhe dar uma resposta. Se faz a pergunta, não é para abrir uma discussão, mas para colocar o interlocutor na mesma posição em que se ele se sentiu quando se colocou essa questão: fechado, sem resposta, obnubilado, indisponível, sem forças.

A pergunta, que começa por ser mágica na criança, mas que a dado passo a mesma criança percebe que é instrumento de poder, torna-se embaraço quando colocada a nós mesmos, porque nos mostra onde paramos, onde somos impotentes. Quando Pilatos pergunta «o que é a verdade» quer lançar a Cristo o mesmo sortilégio, quer produzir junto dele o mesmo efeito que a pergunta produziu nele: o bloqueio absoluto, o fim do curso do pensamento. Da mesma forma, quando se pergunta retoricamente «mas quais são os fundamentos da Europa?» apenas se visa produzir no interlocutor o mesmo efeito que produz em nós: lançar-lhe um sortilégio de impotência.

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