Fundamento e encontro II
A estreiteza de vistas
é a de quem perante a pergunta sobre o fundamento, ao pé julga que é pergunta,
mas visto ao longe percebe que é dissolução do tema. Aquela só pode ser vista
ao longe, porque vista ao perto parece inexistente, ou apenas inócua. Só ao
longe se percebe que a ênfase está no tema, mas a enfase é dada para que lhe
retirar importância.
O que o leva a ter
estreiteza de vista, a querer ter esta dissolução do tema? O modo como se
comporta o que ele recusa. O fundamento. O processo é que o fundamento tem uma
natureza esguia, arredia, escapa-se-nos das mãos. Na matemática os fundamentos
acabam em paradoxos. O nosso velho Aristóteles mandava parar algures, sob pena
de a demonstração nunca ser feita. Ele bem sabia das perguntas das crianças: E
porquê? E porquê? E porquê? Se a criança pergunta até ao infinito, essa afirmação
tem a sua razão. Percebe que uma pergunta muito simples lhe abre portas tanto
sobre as coisas, como sobre a incapacidade dos adultos. Exaure o mundo enquanto
ao mesmo tempo exaure os seus pais. A sua origem não é capaz de explicar a
origem das coisas. Maravilhoso, mágico instrumento, este «porquê?». É evidente
que se pode tornar muleta, mero instrumento de preguiça, ou mesmo de exploração.
Perguntar porquê até ao infinito retira-nos o trabalho de pensar e atra ao que
nos rodeia todo o esforço nesse sentido. O «porquê» das crianças pode ser
profundamente explorador, parasita, manipulador. E quando ingenuamente alguns pedagogos
se fascinam com a infinitude da pergunta e a beleza do pensamento infantil que
é inesgotável a perguntar «porquê?», esquecem que se pode tornar em instrumento
de exploração. É nesse momento em que ao adulto deve parar o questionamento.
Questão bem diversa é
quando a pergunta é feita do próprio ao próprio. Aqui a varinha mágica
perde-se, porque todo o esforço que criamos somos nós a ter de resolver. Porque
isso o que recusa o fundamento, é precisamente o que mais vezes pergunta «porquê».
Perguntou-se algumas vezes e embateu com a dureza da sua própria cabeça. Incapaz
de responder à pergunta atira aos outros os limites do seu próprio pensamento.
«O que é a verdade?». Se Pilatos coloca esta questão é porque nunca foi capaz
de lhe dar uma resposta. Se faz a pergunta, não é para abrir uma discussão, mas
para colocar o interlocutor na mesma posição em que se ele se sentiu quando se
colocou essa questão: fechado, sem resposta, obnubilado, indisponível, sem
forças.
A pergunta, que começa
por ser mágica na criança, mas que a dado passo a mesma criança percebe que é instrumento
de poder, torna-se embaraço quando colocada a nós mesmos, porque nos mostra
onde paramos, onde somos impotentes. Quando Pilatos pergunta «o que é a
verdade» quer lançar a Cristo o mesmo sortilégio, quer produzir junto dele o
mesmo efeito que a pergunta produziu nele: o bloqueio absoluto, o fim do curso
do pensamento. Da mesma forma, quando se pergunta retoricamente «mas quais são
os fundamentos da Europa?» apenas se visa produzir no interlocutor o mesmo efeito
que produz em nós: lançar-lhe um sortilégio de impotência.
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