Boston Legal (Alan Shore & Francisco Louçã)
O Miguel Poiares Maduro e eu tínhamos já há um tempo acordado em vir a discordar sobre a interpretação que cada um de nós tem sobre a série de televisão Boston Legal. O post do Miguel dá-me finalmente a hipótese de explicar porquê.
A série, como o Miguel diz, é fantástica: bem-feita, bem pensada, bem representada, inteligente, divertida, enfim… se do ponto de vista da encenação tivesse que lhe pôr algum defeito, seria apenas o facto de que o seu ritmo não permite seguir com a necessária calma os argumentos que, francamente, são bons. Até aqui, portanto, estamos de acordo.
O Miguel pensa, no entanto, que a série simboliza o reencontro daquilo a que ele chama as duas almas americanas: a liberal e a conservadora. Diz, com efeito, que por intermédio da amizade tolerante e sincera de Alan Shore e Denny Crane, esses dois amigos ideologicamente opostos que, no seu discurso e no seu comportamento, violam todas as regras do politicamente correcto, a série promove a reconciliação desses dois lados adversos da América.
Ora, eu penso, bem ao contrário, que a série promove abertamente a defesa do politicamente correcto. Em primeiro lugar porque é bom não esquecer que um desses supostos lados da América, nomeadamente o lado conservador, representado por Denny Crane, está, muito significativamente, com Alzheimer. Quer dizer: defende os valores tradicionais, ou socialmente maioritários, mas já não se lembra bem porquê. A defesa que faz dos seus valores, aliás, é muito pouco racional, ficando-se quase sempre pela afirmação veemente dos factos. É, no fundo, um tonto, embora muito divertido.
Alan Shore, pelo contrário, representando, de acordo com o Miguel, o lado liberal (embora, na verdade, represente a esquerda liberal norte-americana), é de uma inteligência afilada e de uma sinceridade genuína, ambas enraizadas num sentimento profundamente humano que transporta para tudo aquilo que faz, seja para os casos que defende – sempre causas minoritárias e socialmente fracturantes –, seja para a amizade tolerante que mantém com este seu amigo conservador, ao qual já prometeu – imagine-se – desligar a máquina que o mantenha apenas artificialmente vivo quando chegar – porque vai chegar (!) – a altura.
Assim, a nossa discordância resume-se nisto: o Miguel crê que esta série propõe uma reconciliação dos lados conservador e liberal da América através de uma linguagem e de um comportamento politicamente incorrectos. Eu julgo, bem ao contrário, que esta série é a apologia pura e simples do politicamente correcto. No cerne do nosso desacordo está, assim me parece, a actual incompreensão generalizada sobre o que é o politicamente correcto, normalmente entendido de um modo puramente formal, como um discurso irreverente, que não obedece aos cânones institucionais e que choca, por isso, com as tradições já sem sentido que, em nome de um poder particular e já velho, apenas artificialmente são mantidas.
Isto, no entanto, é apenas a sua propaganda: uma mera forma de comunicar que atrai facilmente aqueles que normalmente são contra o poder instituído e apressados nas suas conclusões: falamos, claro está, dos adolescentes, que entre nós engrossam as fileiras do partido português oficialmente defensor do politicamente correcto: o Bloco de Esquerda.
Materialmente, porém, o politicamente correcto é bem uma outra coisa – ou melhor: duas. Movimento de origem marxista, é o defensor intransigente ou da verdade absoluta, quando o seu partido esteja no poder, ou do relativismo absoluto, quando o seu partido esteja na oposição ao poder.
A expressão, com efeito, foi pela primeira vez utilizada, num discurso, por Mao Tsé-Tung, tendo a partir de então designado, no contexto comunista e maoísta, tudo aquilo que estava de acordo com a linha maioritária do partido e com o pensamento do seu presidente. Mais tarde, porém, a chamada nova esquerda norte-americana, mantendo o mesmo nome, deu-lhe o sentido exactamente contrário, não reconhecendo ao pensamento político e à prática social maioritários qualquer direito que lhes permitisse impor os seus próprios valores e, neste sentido, descriminar as minorias.
O politicamente correcto, assim, tal como no último quartel do século XX se tem espalhado por todo o mundo ocidental, significa o combate contra os valores pretensamente naturais e absolutos que sustentam a realidade social instituída (nomeadamente os valores da cultura judaico-cristã, branca, ocidental, patriarcal, heterossexual, euro-americana e capitalista), em nome da defesa de um direito a uma liberdade absoluta e formalmente igual (sobre este assunto pode resumidamente ver-se BESSA, António Marques, e PINTO, Jaime Nogueira, Introdução à Política, Ed. Verbo, Lisboa/S. Paulo, 2002, vol. III, págs. 70-75).
Ora, não há como não ver aqui o discurso e a agenda de Francisco Louçã e de Alan Shore. Concedo, de bom grado, que o segundo é muito mais divertido, tem muito melhores argumentos e, sobretudo, é incomparavelmente mais condescendente. Mas aqui estamos outra vez enredados já apenas na questão da forma. Materialmente - é bom que não nos iludamos -, são ambos terrivelmente perigosos, estando apenas à espera que o amigo/adversário entre em coma para então lhe desligar a máquina e assim impor de uma vez por todas a sua própria - e única - verdade.
6 comentários:
Sou forçado a aplaudir! Tanto a série como este seu post. E forçado sou também a pensar que a série é politicamente tendenciosa. Embora simpatizando mais com Alan Shore(quem não simpatiza?), é óbvio que hiperboliza o tonto conservador do Denny Crane, tentando sugerir o todo a partir de uma pequena parte, como se toda a agenda conservadora andasse a volta da defesa das armas por velhos senis. A leitura é redutora, mas a série, neste ponto, também o é.
Eu também aplaudo mas...: o post do Gonçalo é excelente e tenho de concordar com o desequilíbrio que ele nota entre os dois personagens e que favorece, mais ou menos de forma implícita, as teses do Alan Shore. E é bem possível que eu tenha notado menos isso do que o Gonçalo porque me sinto mais próximo das teses do Alan Shore do que ele… But… também discordo bastante do post quando à série e quanto à questão de fundo:
1- No que diz respeito à série, acho que é ideologicamente mais aberta do que defende o Gonçalo. Primeiro porque a construção dos casos é bastante representativa dos melhores argumentos de ambos os lados e, frequentemente, está longe de ser dogmática mas deixa-nos uma enorme ambiguidade quanto à definição da verdade (claro que esta ambiguidade pode ser vista, em si mesma, como pós-moderna e como relativista mas não é o caso na série). Segundo, porque Alan Shore ou Candice Bergen (os "liberals" da sociedade de advogados) aparecem com frequência a defender posições não tipicamente liberais (liberdade religiosa ou o direito da América a não financiar clínicas onde se pratica o aborto são dois caso de que me recordo). E, ambos, estão nos antípodas de Francisco Louça (ou vice-versa).
2 – Também discordo, em parte, da análise feita pelo Gonçalo quanto ao politicamente correcto. Acho que também começa a ser politicamente correcto dizer mal do politicamente correcto… Não ponho em causa a origem do politicamente correcto identificada pelo Gonçalo nem alguns dos excessos de que fala. No entanto, a introdução do politicamente correcto nos EUA teve efeitos positivos e, em boa medida, limitava-se a alertar para a necessidade de sermos conscientes de como certas códigos linguísticos reproduziam padrões sociais discriminatórios. As palavras podem magoar e se certas pessoas se sentem excluídas por utilizarmos palavras que as parecem excluir porque não ter um pouco mais de cuidado? O problema foi quando o politicamente correcto se transformou num instrumento de policia. Todos os dogmas são maus. Mas na sua essência o politicamente correcto assenta numa ideia simples: o nosso comportamento e linguagem não deve tomar por norma aquilo que resulta da nossa própria condição mas deve atender à condição dos outros. È uma ideia de inclusividade que me parece positiva. Não confundiria o politicamente correcto com causas fracturantes. Esse é outro tema embora, por vezes, se confundam: por quem as defende e quem as critica.
Um abraço
Miguel
Superliga "incompetente-mor": Sócrates marca pontos
Cerca de 18 mil micro empresas encerraram desde Janeiro [...] De acordo com o presidente da ANPME, "há micro empresários a falir todos os dias" [...] De acordo com dados divulgados à Lusa pela AIP, as micro empresas empregam 28% dos trabalhadores, mais 3% do que as grandes empresas.
Já aqui, eu tinha falado das PME. Há já mais de 2 anos que o PSD tem alertado para a importância das Micro e PME. Marques Mendes até falou sobre a criação de um ministério para estas empresas. Manuela Ferreira Leite não para de alertar para a importância destas empresas na economia portuguesa. O PM não quer ouvir e continua a beneficiar apenas as grandes empresas.
Depois do início da grave crise, José Sócrates - o auto-intitulado salvador das empresas portuguesas - anunciou 'n' medidas para as Micro e PME. Os programas PME Invest 1,2 e 3; redução de impostos (quais? em que condições?); beneficios fiscais (quais? em que condições?). Medidas essas, tão boas... que o resultado é o que se vê.
Mais 3 pontos para José Sócrates na Superliga "Incompetente-mor"
continuo achar que will Shatner sucks big time
Sinceramente, concordo mais com o Miguel do que consigo. No entanto, não posso deixar de achar que mais do que um confronto entre Liberais e Conservadores, a série procura expor e analisar de maneira crítica a sociedade e a maneira de pensar americanas esta última representada muitas vezes Denny Crane. É claro que Denny está, como foi dito aqui, hiberbolizado. Mas não concordo que a série seja políticamente correcta e até acho que for essa a imagem que passa à maioria das pessoas, então fracassou na mensagem. É sem dúvida uma excelente série e só é pena que esta seja a última temporada.
Cumprimentos.
Será que Miguel Portas faz por lhe dar razão?
http://tinyurl.com/lhjvkw
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