quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A música da eternidade

“Não havia escola, nem cinema, nem teatro”. Xavier Camps e os amigos, protegidos pela impunidade dos 15 anos, acorreram aos Jardinets de Gràcia, em Barcelona, para ver o avião alemão que, abatido, se oferecia como espectáculo de bairro. Corria o ano de 1939 e a Guerra Civil, de Franco e republicanos, voara já, e em piloto automático, para o fim mítico e shakespeareno. Xavier e os amigos buscavam aventura e a palpável proximidade com as “metralhadoras, balas e bombas” que na sua imaginação enchiam a carlinga do alado monstro germânico.
Coincidiram, nesse dia, nessa hora, com a câmara de Robert Capa que sobre eles disparou com suavidade e discrição, ferindo-os para a eternidade.
As fotos de Capa estiveram perdidas 69 dúbios anos. Guardou-as com nobre reserva o general mexicano Francisco Javier Aguilar González. Descobertas agora e apresentadas pelo “NY Times” e pelo “El Periódico de Catalunya”, as imagens de Capa reencontraram-se com os fantasmáticos protagonistas que, em 39, correram pressurosos aos Jardinets de Gràcia e aos despojos que fulminados caíram do céu.
Aqui e aqui Xavier recorda, 69 anos depois, o orgulho e ousadia que, nesse dia, o fizeram avançar para uma posteridade que a estatura tímida e a deselegância de umas calças largas e de mau tecido não podiam adivinhar.
Poderia acontecer a qualquer um de nós? Poderia ter-me acontecido? Que Capa (e se fosse o local, competente e velho Quitos fotógrafo já iríamos muito bem servidos) terá fotografado o dia em que, sôfrego, vim a correr, com o RA, ao Terreiro do Pó, no Lobito, para assistir ao ataque (a metralha e granada) à delegação da Unita, por uma unidade mínima do MPLA, num só jipinho amarelo (só quem viu sabe do que falo), comandada pelo JM, que acabou atingido com um tiro na cabeça que o imobilizou por três meses? Alguém – que outro Capa? - terá em Luanda fotografado a conveniente explosão do jornal “Provincia de Angola”, a que o JS e eu fomos os primeiros a chegar, já passava do recolher obrigatório, e que serviria depois, mutatis mutandis, como acusatório “incêndio do Reichstag” contra a FNLA?
Nunca ninguém nos avisa de que nem todas as livre escolhas de juventude garantem a música da eternidade.

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quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

As Ideologias, a Questão Nacional, os Partidos Políticos e Portugal (II)

O segundo acto desta minha declaração de princípios prende-se, justamente, com o sujeito das ideologias, isto é, com a comunidade das pessoas e/ou dos grupos de pessoas originariamente vinculadas por uma vontade comum de existirem e viverem colectivamente de tal modo, que reúnam dentro de si todos os meios necessários à conservação e ao desenvolvimento dos seres humanos.
Como referi no meu post anterior, o que aqui direi aplica-se propriamente às comunidades nacionais, ocidentais e modernas, nas quais a legitimação da autoridade acontece por meio de um processo imanente – isto é, por auto-determinação –, ainda que, por analogia, possamos estendê-lo a todas as outras comunidades políticas, porquanto, conformemente a todas elas, o termo nação expressa o carácter da pertença, o qual, adquirido pelo nascimento na terra e/ou no sangue de um povo, é íntimo e inviolável (a palavra nação provém do vocábulo latino natio, nis, o qual, derivando de natus, significava originariamente nascer, a partir do que evoluiu para tribo, raça, povo e nação).
Ora, é esta comunidade nacional que, a partir das formas concretas que historicamente encontra para se organizar, produz imagens representativas de si mesma, as quais, reflectidas em ideias sistematicamente organizadas por referência a um todo social, resultam naquilo a que hoje chamamos ideologias. Estas, por seu lado, desligadas do processo vivo no qual acontecem, são, por assim dizer, transnacionais e/ou internacionais, isto é, aplicáveis a toda e qualquer entidade política concreta.
Esta abstracção ideológica, porém, pela qual historicamente se descobrem princípios racionais capazes de motivar a acção política das sociedades, embora perdendo o carácter próprio e diferenciador da comunidade política concreta na qual esses princípios vieram à existência (nomeadamente a sua história, a sua língua, os seus costumes, o seu território...), só se cumpre verdadeiramente se voltar a jogar-se no terreno da acção social e política das diferentes comunidades nacionais, as quais são o pólo subjectivo e afectivo motivador dessa mesma acção social e política.
Nações e ideologias, portanto, são os dois pólos – subjectivo e objectivo, afectivo e racional – motivadores da acção política das sociedades, os quais, interpenetrando-se continuamente, são absolutamente irredutíveis entre si. De facto, tal como uma ideologia não pode reduzir-se a uma nação, também uma nação não pode reduzir-se a uma ideia, ou a um conjunto de ideias. É o que aqui quero mostrar a partir do exemplo da chamada “questão nacional”, a qual, no seio da II Internacional, pôs justamente o problema da relação que se deve estabelecer entre as dimensões nacional e ideológica na esfera política.
Esta questão, que acompanhou os movimentos ideológicos internacionais desde o seu início (é curioso notar, neste sentido, como a própria Liga dos Comunistas foi o resultado, alcançado por meio de sucessivas cisões, da Associação Patriótica Alemã, criada em 1830, em Paris), estando latente nas cisões que sucessivamente opuseram os marxistas aos proudhonistas, aos anarquistas e aos revisionistas (que se desentenderam, no fundo, sobre o modo da relação que devia estabelecer-se entre as elites revolucionárias e as massas assalariadas e oprimidas – nomeadamente social ou político, nacional ou internacional –, a partir do que se desentenderam também na forma de conceber a natureza e o papel do Estado) colocou-se abertamente no seio da II Internacional, a partir do problema da guerra.
O problema da guerra, de facto, entrelaçado com o debate sobre a possibilidade e o modo de participação dos socialistas nos governos burgueses, fez com que os marxistas, para quem a guerra era uma consequência directa das contradições internas do sistema político burguês, levadas às suas últimas consequências, vissem nela uma oportunidade na luta contra o capitalismo, a partir do que defenderam ou o não envolvimento da classe operária no esforço militar em curso, deste modo inviabilizando a guerra, ou, se tal não fosse possível, o aproveitamento da eclosão da guerra para acelerar a queda mundial do capitalismo.
Em qualquer caso, acreditavam que o fim do capitalismo (consequência lógica inevitável das suas próprias contradições internas) estava próximo (o imperialismo era a etapa extrema do capitalismo que, em luta consigo mesmo, era o verdadeiro causador da guerra) e que a união internacional da classe operária se sobreporia às identidades nacionais dos representantes dos operários envolvidos no conflito.
O que aqui mais nos interessa é que, na defesa que fazem desta tese, partem de uma oposição radical entre o pólo ideológico e o nacional, para depois proporem o aniquilamento do pólo nacional e a sua subsumpção no ideológico, aniquilamento esse operado por meio de uma revolução que, por mais que seja violenta, vem racional – isto é, cientificamente – justificada (convém aqui lembrar a célebre frase de Marx, n´ O Capital, que diz que «a violência é a parteira de toda a velha sociedade que está grávida de uma nova.»).
É absolutamente esclarecedor, neste sentido, ler o que defendiam os marxistas a propósito da questão nacional. Assim, Lenine, em 1913, no auge do debate sobre esta questão no seio da II Internacional, dizia que «em cada cultura nacional existem, ainda que por desenvolver, elementos de cultura democrática e socialista, pois em todas as nações há uma massa trabalhadora e explorada, cujas condições de vida engendram inevitavelmente uma ideologia democrática e socialista. Mas em cada nação existe, apesar de tudo, uma cultura burguesa (e, além do mais, na maioria dos casos, ultra-reaccionária e clerical), não em forma de simples elementos, mas como cultura dominante. Por isso a “cultura nacional” é a cultura dos donos da terra, dos curas e da burguesia. (...) Ao lançar o lema de “cultura internacional da democracia e do movimento mundial do trabalhador”, tomamos de cada cultura nacional unicamente os seus elementos democráticos e socialistas, e tomamo-los única e exclusivamente em oposição à culturta burguesa e ao nacionalismo burguês de cada nação.» (Vladimir Ilich Lenine, Notas Críticas Sobre a Questão Nacional).
Estaline, em 1918, escrevendo já depois da revolução bolchevique russa e tendo, por isso, outras explicações a dar, leva ainda mais longe o argumento. «A questão nacional – diz ele – não é um problema fixo, dado de uma vez por todas, tendo antes de considerar-se no âmbito da questão mais vasta da transformação da ordem existente.» Assim posta a nu, logo no início do texto, a intenção de subsumir o elemento nacional no ideológico, o que se segue não é mais do que o desenvolvimento deste princípio, o qual é levado, porém, às suas últimas consequências, como se pode ver no breve resumo que aqui apresento.
Se – continua Estaline – na revolução burguesa da Rússia em Fevereiro de 1917, os movimentos nacionais, finalmente libertados da opressão do “antigo regime” czarista, logo se manifestaram nas regiões periféricas da Rússia, o facto é que cedo chocaram com a insuperável resistência do governo imperialista liderado de Lvov, Miliukov e Kerenski.
A revolução de Fevereiro, com efeito, ocultava no seu seio contradições internas irreconciliáveis. Ela foi uma revolução burguesa, feita pelos operários e camponeses em benefício dos seus exploradores, pelo que tanto o governo imperialista como os governos “nacionais” logo se bateram um contra os outros, em defesa dos interesses das classes burguesas dominantes que, em guerra consigo mesmas, foram insensíveis aos apelos e aos lamentos dos operários e dos camponeses de toda a Rússia.
Foi necessário, por isso, fazer a revolução bolchevique de Outubro, a qual, sendo efectivamente socialista, derrubou o poder da burguesia e dos grandes proprietários de terras, colocando no seu lugar os operários e os camponeses. Assim se resolveram as contradições da revolução de Fevereiro, a partir do que a revolução, começada no centro, rapidamente se alastrou a toda a Rússia.
Foi então que os governos “nacionais”, formados antes de Outubro e burgueses por natureza, declararam guerra ao governo socialista do centro, reunindo à sua volta todas as forças contra-revolucionárias da Rússia. A luta, porém, revelou-se desigual, pois que os governos “nacionais” tinham contra si o poder soviético, que os combatia por cima, e os “seus” próprios operários e camponeses, que os combatiam por dentro, razão pela qual foram obrigados a pedir ajuda aos governos imperialistas do Ocidente, opressores e exploradores das nacionalidades de todo o mundo.
Foi assim que começou o período da intervenção e da ocupação estrangeiras nas regiões periféricas, que amplamente demonstrou o carácter contra-revolucionário dos governos “nacionais” e a falsidade do princípio da auto-determinação, tal como é entendido pela velha concepção burguesa.
A revolução de Outubro, deste modo, já não podia permanecer nos limites territoriais da Rússia, estando obrigada a difundir-se nos países vizinhos, pois que, tendo rompido a secular letargia das massas trabalhadoras dos povos oprimidos do Oriente e servindo de exemplo vivo de salvação para os operários e soldados do Ocidente, a todos impelia no caminho da efectiva libertação do jugo da guerra e do imperialismo.
O pecado mortal da II Internacional, portanto, foi ter-se deixado enredar na velha concepção burguesa da auto-determinação nacional, relegando-a para o âmbito dos problemas culturais e não a encarando como indissociável da questão do poder, isto é, não compreendendo o seu significado revolucionário. Com a revolução de Outubro, porém, não se anularam os princípios da auto-determinação e da “defesa da pátria”; anularam-se, isso sim, as suas interpretações burguesas, a partir do que a Rússia surgiu como a condutora de uma guerra revolucionária contra os saqueadores do imperialismo burguês e em defesa da pátria socialista (sic), que é o que confere valor revolucionário ao princípio de auto-determinação, tal como é interpretado pelo socialismo (cfr. Joseph Estaline, A Revolução de Outubro e a Questão Nacional).
É difícil ser mais claro, ainda que se possa ser mais conciso, como é o caso de Rosa Luxembourg, que, nesse mesmo ano, escreveu: «Assim, o conflito entre a burguesia internacional e o proletariado russo revela o dilema da última fase em que se encontra a situação mundial: ou o prosseguir da guerra mundial até ao massacre generalizado ou a revolução proletária – imperialismo ou socialismo. (...) Guerra ou revolução, não há outra alternativa» (Rosa Luxembourg, A Revolução Russa).
O facto, porém, é que a esmagadora maioria dos socialistas não cumpriu as propostas aprovadas no manifesto de Basileia (onde, em 1912, se realizou o último congresso da II Internacional), colocando-se ao lado dos respectivos governos nacionais quando, dois meses depois, eclodiu a guerra, o que levou à sua denúncia como traidores na conferência de Zimmerwald, que, em 1915, procurava reerguer o movimento internacional socialista. Do mesmo modo, a desagregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, já no fim do século XX, não só implicou a imediata afirmação das identidades nacionais existentes nas 15 repúblicas que a compunham, como também a daquelas que, nas repúblicas suas vizinhas, tinham sido forçadas a uma mesma identidade ideológica.
Ora, deixando aqui, por impossibilidade objectiva, muitos temas por tratar (especialmente a questão da constituição histórica das nações como unidade de referência das comunidades políticas concretas e a questão da possibilidade e do modo do poder espiritual interferir na vida social e política das actuais comunidades nacionais), o que quero notar, em conclusão, é esta irredutibilidade histórica do pólo nacional ao ideológico.
Se aqui o ilustrei com a “questão nacional” debatida no seio da II Internacional e, consequentemente, no seio dos movimentos comunistas e socialistas que se lhe seguiram, quero deixar muito claro que de modo nenhum afirmo que o totalitarismo seja uma característica específica de uma determinada ideologia. Ao contrário, ele estendeu-se a todas, ou quase todas, as ideologias que pretenderam transformar o mundo no fim do século XIX e em grande parte do século XX… E é claro que subsiste ainda!
O que afirmo, portanto, é que a realidade política, hoje, se joga entre estes dois pólos – o nacional e o ideológico –, que, articulando-se e transformando-se mutuamente, se retraem e se expandem na procura de soluções históricas capazes de harmonizar o regular funcionamento das sociedades com o livre desenvolvimento dos seus indivíduos... pólos esses que, no entanto, são e permanecem absolutamente irredutíveis entre si.

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terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Da Política na América

Estas eleições americanas estão a revelar-se um manual sobre a política no século XXI. O mais interessante não é o confronto de ideologias mas o combate entre formas diferentes de entender a política. Do lado democrata a estratégia de Hillary Clinton é desenhada por Mark Penn (autor de Microtrends: The Small Forces Behind Tomorrow's Big Changes). Penn é alguém que acredita que a sociedade actual é uma simples agregação de pequenos interesses particulares. Numa sociedade deste tipo, fazer política é satisfazer o maior número possível desses interesses. Para quem acredita nisto, as eleições ganham-se propondo políticas que correspondam aos interesses particulares do máximo número possível de grupos. A política transforma-se quase num exercício de aritmética. Não é por acaso que Mark Penn é um especialista em sondagens e não um filósofo ou ideólogo político. Se é verdade que esta concepção pode parecer quase cínica ela não deixa de procurar responder ao que as pessoas realmente querem e reflecte o carácter crescentemente pluralista das nossas sociedades. Já a candidatura de Obama tem um coração liberal e uma estratégia republicana (em termos filosóficos). A ênfase não está nas políticas mas sim na própria noção de política. Obama acredita que ainda é possível mobilizar todos os membros de uma determinada comunidade em torno de um projecto comum. O que ele propõe é menos importante do que a forma como se propõe alcançá-lo: de uma forma inclusiva, mudando a forma de fazer política e, alegadamente, promovendo a contribuição de todos. As políticas sugeridas por Obama servem sobretudo para simbolizar a ideia de mudança e inclusividade (ideológica, racial etc.) que domina a sua candidatura. Não deixa de ser atraente que, para Obama, a política ainda pareça ser a arte de mobilizar um povo em torno de uma ideia e não uma mera arbitragem entre interesses distintos. Por outro lado, esta forma política também tem os seus riscos: é fácil manipular o ideal de uma ideia de futuro.
Do lado Republicano assistimos a um outro confronto de estratégias políticas. Alguns parecem seguir o modelo Karl Rove: as eleições americanas ganham-se mobilizando os "fieis" e não procurando conquistar os independentes. Subjacente a esta estratégia está a noção de que a política perdeu irremediavelmente interesse para uma larga margem da população. Quem decide não são os moderados (demasiadamente desiludidos ou indiferentes para serem decisivos) mas sim os mais radicais, mais fáceis de mobilizar e de fidelizar. Ganha quem levar mais dos "seus" a votar e não quem tenta conquistar os "outros". Huckabee e Romney parecem seguir esta estratégia. Falam apenas para os Republicanos e quase como se falassem para os adeptos do seu clube. MacCain, apesar de ter feito algumas concessões à filosofia Rove, é o candidato republicano que mais busca e necessita do eleitorado independente.
Estas eleições americanas são assim um laboratório sobre o possível futuro da política. Interessam as grandes ideias ou a satisfação do máximo número de interesses particulares? Ganham-se eleições ao centro ou mobilizando os extremos? Terça-feira teremos uma primeira ideia.

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Herodes, Salomé e o Ministro da Saúde.



Não sei se o Presidente Cavaco dançou, tal como a bíblica Salomé, de lantejoulas e umbigo à mostra perante um Sócrates evidentemente deleitado. Sei, isso sim, que num incompreensível assomo populista aquele mandou às urtigas a sensatez a que o seu cargo obriga, deu voz à «rua» e reclamou a cabeça do Ministro da Saúde. Hoje ficámos a saber que o Eng.º Sócrates aceitou finalmente representar o papel de Herodes Antípas. E serviu-lha. Numa bandeja de prata.

O disparate é grosseiro. A demonstração de fraqueza é ofensiva. E a «dispensa» do Ministro não permite duas leituras: não é possível fazer verdadeiras reformas em Portugal. Amarga conclusão. Que nem a excelente notícia da exoneração da pior Ministra da Cultura do pós 25 de Abril consegue disfarçar.

Está oficialmente aberta a época pré-eleitoral. O país segue dentro de momentos.

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segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

«Endorsments» vs «Objectividade»



"When we endorsed Mrs. Clinton in 2006, we were certain she would continue to be a great senator, but since her higher ambitions were evident, we wondered if she could present herself as a leader to the nation.
Her ideas, her comeback in New Hampshire and strong showing in Nevada, her new openness to explaining herself and not just her programs, and her abiding, powerful intellect show she is fully capable of doing just that. She is the best choice for the Democratic Party as it tries to regain the White House."



Como é hábito em grande parte da imprensa anglo-saxónica, o NYT já veio a terreiro fazer o «endorsment» dos «seus» candidatos no campo Democrata e Republicano. Escolheu Hillary Clinton (aqui) e John McCain (aqui). Não me interessa discutir a sagacidade das escolhas (as minhas teriam sido Obama e McCain, mas sobre isso falaremos um dia destes). Interessa-me, isso sim, sublinhar a prática. Corajosa, frontal e transparente. Em Portugal, estou disso convencido, a maioria dos leitores dos jornais penalizaria uma atitude deste tipo. Vivemos iludidos uma sacro-santa «objectividade» que nunca existiu nem pode existir.


E a diferença, aparentemente insignificante, diz muito das duas culturas. Por cá passamos a vida à procura de uma inatingível pureza em todos os domínios da sociedade. Do lado de lá, habituaram-se a viver com a endémica imperfeição da humanidade.

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Apo(so)logia de um cigarro em três reflexões (Parte II da Trilogia do Fumo)


Não fumo. Mas não escondo a inveja de quem o faz. Com prazer - e por prazer -, claro. Imagino sempre o gosto de quem puxa de um cigarro depois de um jantar como se de um ponto final se tratasse. Sem o cigarro, a frase não tem fim.

Também à reflexão solitária o cigarro - e o fumo - emprestam o ambiente e trazem a necessária calma.

Vejo o meu Pai de olhos semicerrados, espraiado nas costas de um sofá velho, pernas estendidas, a medir a evolução dos quadros que pinta, um cigarro sempre à mão (na mão).

Não fuma enquanto trabalha. Fuma quando pára. Cada passa, uma pausa. Descansa, no fundo.

Não engole o fumo porque não precisa - nem quer.

Quer apenas a paz que um cigarro lhe traz.




Na sociedade em que vivemos, criada e imposta por uma Bruxelas asfixiante, temos que ser TODOS saudáveis e um dia, quiçá, todos loiros ou todos morenos ou, mais inusitadamente, todos absolutamente ruivos. Ruivos até nas axilas.

Aliás, em breve também os pêlos serão proibidos por inestéticos e desconformes, sempre tão difíceis de uniformizar.




Penso seriamente em criar a Associação dos Fumadores Passivos.

Seremos os “anti-Clinton”, por assim dizer. Quando confrontados pelas autoridades, responderemos com ar de desafio, enquanto o fumo nos foge pela boca:

“Não Senhor Guarda, não dei nenhuma passa, mas inalei, com muito orgulho”.

Enquanto os “criminosos” fumam, no espaço fechado de salas clandestinas, nós estaremos logo atrás, espreitando por cima dos ombros – como “abat jours”.

Pescoços estendidos, olhos fechados, narinas abertas. A inalar.


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domingo, 27 de janeiro de 2008

Top-Models de todo o mundo, uni-vos

Ontem, as grandes agências noticiosas mundiais (os oráculos da Fashion TV e o Windows Messenger de Hugh Hefner, p. ex.) davam conta daquilo que pode ser uma autêntica mudança de paradigma geo-estratégico: numa iniciativa concertada - e despudoradamente insidiosa - as principais manequins do mundo ocidental decidiram seguir o gesto visionário de Carla Bruni e Naomi Campbell, sob o alto patrocínio de Craig J. Venter, o mago patológico da genética.
Assim, Karolina Kurkova irá mudar-se para a datcha de Vladimir Putin, Adriana Lima acelerará (para aferir a velocidade exacta desta aceleração, é favor consultar o catálogo 2008 da Victoria´s Secret) o divórcio de Lula da Silva com a actual esposa e Valeria Mazza surgirá numa varanda da Moncloa em túnica transparente. Entretanto, o Presidente do Irão já acedeu ao convite de Aishwarya Rai para jantar (e talvez namorar, depende de como a noite correr), no mesmo dia em que Christy Turlington, disfarçada de tele-evangelista, conseguiu penetrar no rancho texano de George W. Bush, levando o líder norte-americano a confundir a esposa Laura com um revoltoso xiita. É favor seguir os desenvolvimentos no Christian Science Monitor.

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sábado, 26 de janeiro de 2008

He lost control


O fascínio das vidas interrompidas pelo desespero existencial, é contraditório com o excesso de criatividade com que as suas obras inundam e influenciam o mundo. A força libertadora quebra uma haste ainda frágil para tão grande empresa. E uma nuvem entristece o céu deixando o mundo cinzento e sem destino até aceitar o incompreensível.

A obra poética de Ian Curtis foi uma semente diferenciadora que fez florescer a Joy Division nos finais de 70. Não foram como os Sex Pistols, uma banda de contestação social, nem geracional. Não exprimiram uma revolta pela sua condição. O seu universo é poético e não político. Enquanto os Sex Pistols exprimiram, nesses anos, uma necessidade de afirmação na cena artística, os Joy Division simplesmente ocuparam-na pela força da sua sofisticação e pela profundidade das letras de Curtis, da música de Hook, Sumners e Morris e do som de Martin Hannett. A banda de Manchester, que a Factory de Tony Wilson desencantou, exprime duas ideias: a ideia de solenidade pelo valor absoluto dos momentos e a ideia de tempo, a sua irremediável sucessão, sem regresso, esgotando-se inapelavelmente. Cada sentimento é decantado de uma experiência quase mística e irrepetível. Cada sentimento é um combate à frivolidade.
Há um lado negro, uma negatividade existencial, no ambiente poético de Ian Curtis, afundado numa depressão que não o deixou sair do labirinto em que se foi enredando. Nele se espelhou um sentido trágico característico da juventude: uma urgência sem concessões. Tragédia que a morte destinou para uma manhã de Maio de 1980.
Poderemos talvez falar da tragédia de um desejo de absoluto ao qual se opunham formas de resistência que lhe impediam a expansão. O erro do seu casamento, a paternidade intempestiva, a doença, tudo isso lhe surgiu como formas de resistência à sua alma, inundada de uma luz, que não conseguia fazer despontar. Curtis não se desculpou com o mundo como tantos optam por fazer. Antes carregou nos ombros o peso da contradição em que se viu envolvido e não suportou a ideia de ter falhado a promessa de felicidade. Uma promessa que se falhe são todos os sonhos que se desfazem. No absoluto não cabe o facilitismo do relativo. Pelo menos na alma de Ian Curtis.



Twenty-Four Hours (1980)

So this is permanence, love’s shattered pride,
What once was innoncence, turned on its side.
A cloud hangs over me, marks every move,
Deep in the memory, of what once was love.

Oh how I realised how I wanted time,
Put into perspective, tried so hard to find,
Just for one moment, thought I’d found my way.
Destiny unfolded, I watched it slip away.

Excessive flashpoints, beyond all reach,
Solitary demands for all I’d like to keep.
Let’s take a ride out, see what we can find,
A valueless collection of hopes and past desires.

I never realised the lenghts I’d have to go,
All the darkest corners of a sense I didn’t know.
Just for one moment, I heard somebody call,
Loocked behind the day in hand, there’s nothing there at all.

Now that I’ve realised how it’s all gone wrong,
Gotta find some therapy, this treatment takes to long.
Deep in the heart of where sympathy held sway,
Gotta find my destiny, before it gets to late.

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Time shall set us free

Neste tempo, que não sei se é de narcisos, lilases ou rosas, não sei se lembre, não sei se esqueça. Só sei que "Me olvidó que te olvidé a mi que nada se me olvida."

in time of daffodils(who know
the goal of living is to grow)
forgetting why,remember how

in time of lilacs who proclaim
the aim of waking is to dream,
remember so(forgetting seem)

in time of roses(who amaze
our now and here with paradise)
forgetting if,remember yes

in time of all sweet things beyond
whatever mind may comprehend,
remember seek(forgetting find)

and in a mystery to be
(when time from time shall set us free)
forgetting me,remember me

e.e. cummings

No topo - Renoir, Jardin de la Rue Rue Cortot, Montmartre. Em baixo - Gustav Schmidt, Daffodils and Lemons

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sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

V. Curtius, European Literature and the Latin Middle Ages, Princeton / Boellingen Paperbacks

Os tópicos falam por si, embora se tivéssemos a tentação de os desenvolver, cada um deles daria um livro. Cada um deles, mesmo que não aceite, é tópico sério, estudado e reflectido por quem sabe o que diz. Podemos não concordar com as suas conclusões, mas apenas se armados da mesma erudição, o que não é figura a todos acessível. A muito poucos, para dizer a verdade. Mas com este autor estamos em casa. Pelo menos as pessoas sérias, as capazes de pensar e assimilar a informação que é alimento do pensamento. Em parte porque diz tudo o contrário do que o homem público iliterato afirma.

Numa Europa que oficialmente se diz permanentemente reinventada, que se chega mesmo a dizer anti-histórica porque a História são guerras (que triste imagem do passado se tem, e que idiota) é sempre bom lembrar as continuidades, não por o serem, mas por serem a fonte da sua riqueza. É certo que o latim já não é tão usado. Mas precisamente por isso os tópicos desta literatura são usados hoje em dia com menos maestria. Repetem como novidade o que não o é, não podendo superar o que desconhecem. Talvez nunca tanto como hoje as estruturas desta poesia neolatina sejam tão importantes. Como tudo o que foi afundado pela ignorância são o húmus que alimenta o estro literário. Triste fado no entanto o de as digerirem sob a forma de estrume. Advinha-se a que cheiram as obras que poderão produzir.

Alexandre Brandão da Veiga


http://www.amazon.co.uk/gp/reader/0691018995/ref=sib_rdr_zmin/202-2428107-3305408?p=S001&j=1#reader-page
http://en.wikipedia.org/wiki/Ernst_Robert_Curtius
http://www.uib.no/neolatin/
http://neolatin.iti.mta.hu/english.htm
http://rollyo.com/klausgraf/neolatin/
http://www.let.leidenuniv.nl/Dutch/Latijn/Heinsius.html

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A expiação da ASAE

Sejamos optimistas. A ASAE tem um caminho para a redenção e eu ainda não desisti de salvar a alma do Sr. Nunes das agruras do inferno. Proponho um «roteiro para a expiação» em dez singelas proibições. Instituam-nas com garbo, defendam-nas com diligência e contem com a minha capacidade de lobbying. Não «O» conheço de lado nenhum mas tenho companheiros de blog com ligação directa ao Paraíso.

1 - É proibido comer pipocas no cinema. Abre-se todavia uma excepção a todas as fitas com o Ben Afleck.
2 - É proibido ser-se o Dr. Louçã, o Sr. D. Duarte e a Fátima Campos Ferreira.
3 - É proibido partir-se do princípio que todos os homens gostam de automóveis e «se pelam» por uma boa conversa sobre «cubicagens» ou «carters».
4 - É proibido convidar os amigos para baptizados.
5 - É proibido não preferir o Luís Piçarra ao Sérgio Godinho.
6 - É proibido festejar o Carnaval em território português. As infracções cometidas em Loulé e em «Torres» serão admoestadas com especial rigor sádico.
7 - É proibido defender a tese peregrina de que existe Cinema Português ou exibir filmes do Oliveira fora de um perímetro de segurança em redor do «Les deux Magots».
8 - São proibidos gatos, cães com menos de 10 quilos e aquelas «molas» muito irritantes que prendem as gravatas à camisa.
9 - São proibidos o Algarve, o Panteão Nacional, as Avenidas Novas e as Segundas-Feiras até às 14h00.
10 - É proibido atirar alimentos ao José Saramago, ao M. Night Shyamalan e à Dulce Pontes.

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Da Visão: Postais da Índia VI



1 – No Museu Arqueológico de Velha Goa estão, literalmente, amontoados os retratos dos 163 vice-reis e governadores que fizeram a história da presença portuguesa na Índia. O espaço expositivo está decadente, os quadros em paupérrimo estado de conservação, a iluminação é indigna, legendas ou explicações nem vê-las. Salazar, Américo Tomás, um colossal Camões e diversa estatuária hindu compõem o ramalhete de um museu sem nexo e ainda menos brio. Não sei se o Presidente da República sentiu o mesmo que eu quando visitou Goa em Janeiro do ano passado. Mas eu não pude deixar de pensar na National Portrait Gallery de Londres e na nobreza inteligente e requintada com que os britânicos aí celebram a história através dos retratos. E muito menos consegui evitar lembrar-me dos gigantescos outdoors de Mourinho e Ronaldo com que o país, muito saloiamente, se despedira de mim ainda há poucos dias. Estranho país este.

2 - Aires Sebastião Araújo é taxista em Goa. Tem dois filhos de nomes portuguesíssimos e em vez do incontornável Ganesh de outras paragens tem um crucifixo pendurado no espelho retrovisor. Com uma indisfarçável felicidade passa-me para a mão uma carta do Consulado de Portugal em Goa que atesta que está a prestes a acabar o longo calvário que há-de valer-lhe o tão desejado passaporte português. Mas Aires Sebastião não fala uma palavra da língua de Camões. Nem tão pouco sabe pronunciar o seu próprio nome. Duvido que saiba onde fica Lisboa. Ingénuo, confesso que a pergunta me pareceu naturalíssima: «então para que quer ir para Portugal?». A resposta dificilmente podia ter sido mais eloquente: «Portugal? Quero o passaporte para ir viver para Londres». Seria de esperar outra coisa de um país que votou os seus ao mais completo abandono e esquecimento?

3 – Mahomed é taxista em Mumbai. Tem 28 anos, um filho pequeno e trabalha há quinze. Na época alta do turismo (de Setembro a Abril) não tem férias, não tem fins-de-semana e trabalha 22 horas por dia. As duas horas que lhe sobram são muitas vezes gastas a dormir no próprio táxi. Atravessar uma metrópole caótica de mais de doze milhões de habitantes para ir dormir a casa não é luxo para todos os dias.
Mas Mahomed não se queixa. Tal como outros 380 milhões de indianos, votou nas últimas eleições legislativas. Pôde escolher livremente entre 5.398 candidatos de 220 partidos políticos diferentes. E a escolha até foi surpreendentemente informada. A leitura de imprensa é um hábito de rua e a Índia pode justamente orgulhar-se de publicar alguns dos grandes jornais do Mundo. Economicamente a sua vida mudou muito desde que, ainda rapaz, deixou a sua Calcutá natal. Não ignora que é já um dos membros de pleno direito de uma classe média indiana que, segundo rezam as crónicas, há-de contar com 500 milhões de representantes lá para 2025. Queixas para quê? O sorriso fácil e afável diz tudo. Mahomed acredita no futuro.
O milagre económico indiano também se faz disto. E o Presidente Sarkozy há-de lembrar-se disso quando, depois da sua visita de Estado à Índia com a bela Bruni, regressar a Paris para discutir o fim da semana das 35 horas.

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Olhar Vadio

No belo e consolador post que o Pedro Marta Santos escreveu na sua estreia na Geração de 60, arriscou uma afirmação que eu, à John Wayne, me apetece abater ao primeiro tiro. Por facilidade, e para não tropeçar na minha adjectiva e substantiva inépcia interpretativa, cito-o:
A beleza está para além da consciência - ela não necessita da percepção do observador para existir. As nuvens de gás de Andrómeda ou as estrelas de Cassiopeia são belas independentemente da existência humana.”
Sou franco, enquanto a coisa se mantiver entre as nuvens de Andrómeda e as estrelas de Cassiopeia, consinto e calo. Ainda há dias, e no embalo de um inominável Douro Boys (ó beleza! ó consolo!), notei o indiscreto olhar de Andrómeda vigiando o “decote ideológico” (Nelson Rodrigues, puro Nelsinho) de Cassiopeia. Nem piei.
Mas, ó Pedro MS, quando o vício nos arrasta para as fundas sombras em que tu e eu vivemos as nossas vidas (e que as nossas mulheres não nos leiam ou rumor escutem), que outra beleza é que há no plano venusiano de Keira Knightley emergindo das águas, que não seja o que lírica e loucamente lhe presta o meu olhar míope?
Tu sabes do que falo. Sem a minha consciência, sem a tua visão vadia saltitando de Detour para Naked Kiss, de Ava Gardner para Rebecca Romijn Stamos, não há arquitecto para tamanha beleza. Mas tem de haver. E não me venhas dizer que é, ou há, Ele. Também Ele, essa rosácea celestial e sangrenta, essa omnipotência cega e surda, é coisa nossa, ficcionada pelos árduos argumentistas que, da Biblia ao Corão, da Ilíada aos Upanishades, O cantaram de calvicórdio e alaúde.
Julgando ter percebido tudo o que escreveste, só me fica a roer uma dúvida: porque é que, como a taxa de inflação “nasce torta a doçaria de Guimarães”?

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

As ideologias, a Questão Nacional, os Partidos Políticos e Portugal (I)

Sentindo-me obrigado a estar à altura do convite que me foi feito para participar em tão distinto blog, o que muito agradeço, quis começar por uma declaração de princípios, em quatro actos, que o título claramente indica.
Sem grandes desenvolvimentos, nem demoras, como julgo ser próprio destes lugares, a que não estou habituado, o primeiro tem a ver com algo que, hoje, na vida social e política do ocidente, anda evidentemente escondido: as ideologias.
A oposição e mesmo a aversão que pressuponho surgirá face à proposta de discussão deste tema não são novas, tendo-a acompanhado desde o seu início. O termo idéologie, de facto, foi criado em 1801, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, com o significado de ciência das ideias, no sentido de estados de consciência, a partir do que evoluiu para ciência da natureza humana e pretendeu tornar-se a base de todas as ciências. O que aqui nos interessa é que a sua incursão no domínio da moral e da política cedo mereceu a oposição do regime, tendo Napoleão Bonaparte, cujos seguidores pejorativamente apelidavam de idéologues este conjunto de filósofos, proibido o seu ensino a partir de 1812.
Embora não se possa estabelecer uma ligação directa entre os idéologues e Karl Marx (para além do facto de Destutt de Tracy e os sensualistas terem influenciado Auguste Comte e deste ter sido professor de Marx), a verdade é que este, apesar dos diferentes sentidos que lhe atribuiu ao longo da sua obra, tem também uma concepção negativa de ideologia, entendendo-a essencialmente como distorção (sentido que especialmente expressa nos chamados escritos da juventude, nomeadamente na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, nos Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e n` A Ideologia Alemã), concepção essa que prevaleceu e prevalece na nossa tradição ocidental.
Ora, foi a partir da concepção Marx e do posterior acolhimento e desenvolvimento que lhe foram dados por determinados autores (nomeadamente Louis Althusser, Karl Mannheim, Max Weber, Jürgen Habermas e Clifford Geertz), que Paul Ricoeur, num conjunto de lições proferidas na Universidade de Chicago no Outono de 1975 (publicadas pela primeira vez em 1986, pela Columbia University Press, com o título: Lectures on Ideology and Utopia), analisa a questão da ideologia e da utopia dentro do quadro mais geral da imaginação como problema filosófico.
Nessa obra, não negando a análise de Marx e do marxismo, Ricoeur irá aprofundá-la, de modo a permitir uma abordagem positiva de ideologia, que aqui especialmente me interessa. Podemos dizer que ele começa por alertar para três desvios que, no desenvolvimento histórico do conceito de ideologia, limitaram a sua compreensão.
O primeiro é o que reduz o carácter representativo da ideologia a uma mera distorção. Marx - diz Ricoeur - seguindo Feuerbach na sua crítica da religião, reage ao modelo de Hegel e do idealismo alemão, segundo o qual o homem alienaria em seres ideais as suas próprias qualidades, deste modo invertendo a realidade. A tarefa de Marx, portanto, é revoltar à realidade cuja apropriação foi distorcida pelas ideias, processo no qual a representação da realidade que imediatamente cabe à ideologia ficou reduzida, desde o início, a uma distorção negativa que é preciso evitar ou controlar.
O segundo desvio é o que vai reduzir a realidade à ciência, ou melhor, ao conhecimento científico da realidade. Se nos primeiros escritos de Marx a ideologia se apresenta em oposição à realidade (ou, como diria Marx, à praxis), a leitura feita a partir dos seus escritos posteriores (sobretudo a partir d´ O Capital e dos subsequentes escritos marxistas, em especial os de Friedrich Engels) irá opô-la à ciência, a partir do que a ideologia se identificará não só com a religião e com a filosofia (especialmente o idealismo alemão), como até aqui, mas com tudo o que é pré-científico, a-científico ou anti-científico.
O terceiro desvio, assim, é a extensão ilimitada da ideologia a toda a realidade, decorrente do fracasso do propósito anunciado de, por meio da ciência, acabar com as ideologias. É o que Ricoeur expressa através do chamado paradoxo de Karl Mannheim, que justamente pergunta: «Se tudo o que dizemos representa interesses que não conhecemos, como podemos nós ter uma teoria da ideologia que não seja em si ideológica?» Por outras palavras: Se a ciência não pode definitivamente substituir a ideologia e se esta está sempre presente na realidade, então não pode haver uma verdadeira ciência da ideologia, pelo que estamos condenados a uma ideologia da ciência!
Assim acautelados perante a ocorrência histórica destes três desvios, será possível pensar que a relação que a ideologia estabelece entre a representação e a realidade seja de conjunção – e não de oposição (pelo que a distorção será uma consequência da representação, e não o contrário); que seja uma relação moral – e não científica (isto é, que as relações entre infra-estruturas e super-estruturas sejam moral e não cientificamente compreendidas); e que seja uma relação objectivamente circunscrita – e não absoluta (isto é, que reconheça os limites naturais da realidade por si representada, nomeadamente a teoria, propriamente dita, e a intimidade das pessoas concretas, nomeadamente a sua felicidade, ou salvação).
Ora, é partindo desta noção de ideologia como representação – e não como mera distorção – da realidade, que Ricoeur explica que a operatividade e o sentido próprio da ideologia se dão na legitimação da autoridade. A política, de facto, é o lugar privilegiado do pensamento ideológico, por ser aí que propriamente se levantam as questões da legitimidade. No entanto, tal como não existe nenhum sistema de legitimidade absolutamente assente na força, também não existe nenhum sistema de autoridade absolutamente racional. Ora, é justamente a partir do reconhecimento que uma comunidade faz de si mesma na experiência tensional do hiato existente entre a pretensão de legitimidade da autoridade proposta e/ou imposta pelos governantes e a crença na legitimidade dessa autoridade oferecida e/ou negada pelos governados, que a ideologia mostra a sua função mais funda, que é a da integração – ou fragmentação – de uma determinada comunidade.
Para Ricoeur, portanto, a função de legitimação da autoridade política própria da ideologia é o elo de ligação entre o conceito marxista de ideologia como distorção e o conceito integrador de ideologia que ele encontrou em Clifford Geertz. Voltarei a este ponto quando falarmos de Portugal. Para já, aproveitando a leitura que fiz de Ricoeur, atrevo-me a uma definição: As ideologias são conjuntos mais ou menos sistemáticos de ideias que, representando a experiência do todo social, legitimam a autoridade existente numa determinada sociedade política, articulando-se com e projectando-se nas crenças e opiniões que as diversas comunidades nela compreendidas – especialmente as comunidades nacionais – fazem de si mesmas e do mundo.
As ideologias, neste sentido, são um dos legados mais importantes do ocidente moderno. Elas são, de facto, a expressão viva de três princípios fundamentais que por volta do século XVI começaram a emergir à consciência humana no ocidente, nomeadamente o princípio de que o ser é essencialmente individual e instaurador de si mesmo; o princípio de que a democracia é o único regime dado pelo direito natural; e o princípio de que o poder político deve ser independente dos outros poderes, designadamente do espiritual.
Ora, o que afirmo é que não existem ideologias sem uma tomada de consciência destes princípios, nem estes princípios se realizam sem que existam ideologias. E se para o senso comum prevalece a ideia de que a ideologia é uma falsificação da realidade, tal não é mais do que uma das manifestações da ideologia actual, alicerçada numa pretensão totalitária do saber científico e de um consequente progresso económico. É evidente, porém, como diz Althusser (em Pour Marx), que «só uma concepção ideológica do mundo poderia ter imaginado sociedades sem ideologia». O que é preciso lembrar, portanto, é que o que o ocidente tem a oferecer ao mundo não é nem o saber científico nem o poder económico, mas a capacidade de organizar a vida social e política em torno dos três princípios atrás enunciados, a partir do que tanto o saber científico como o poder económico poderão ser bons! E isso não se faz sem ideologias.
Continuaremos a vê-lo nos textos seguintes.

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IV. Curtius, European Literature and the Latin Middle Ages, Princeton / Boellingen Paperbacks

Façamos um passeio rápido pela obra.

1) A artificialidade da divisão geográfica e histórica da Europa, entre os mitos nacionais e as necessidades pedagógicas (p.6)
2) Tanto Toynbee como Planck se confessam como cristãos (p.9)
3) É-se europeu quando se começa a ser um ciuis romanus (p. 12),
4) A literatura europeia é uma unidade inteligível que desaparece quando é cortada às fatias (p. 14).
5) A continuidade da civilização europeia dilacerada por uma separação segundo Toynbee (p. 20)
6) A ingénua crença no progresso e numa Europa fruto do progresso desmentida pelas guerras do séc. XX (p. 23)
7) Até ao séc. VIII fala-se latim (p. 25)
8) O barroco como forma rejuvenescida da Idade Média (p. 27),
9) A bela frase de S Bernardo no Paraíso de Dante: “Vergine madre, figlia del tuo figlio"
10) Em 1231 o mesmo papa que instituiu a inquisição aos dominicanos é o que completou a organização das universidades (p. 55),
11) O asianismo e o aticismo gregos como as primeiras formas do maneirismo e classicismo europeus (p. 67),
12) a bela poesia de François Malherbe "L'âge s'évanouit au deçà de la barque/ Et ne suit point les morts" (p. 82),
13) A modéstia ficta (p. 83) que encontramos ainda em Zeitblom do “Dr Fausto” de Thomas Mann,
14) La Fontaine : "je le dis aux rochers, on veut d'autres discours: / Ne pas louer son siècle est parler à des sourds » (p. 93)
15) O tópico do puer senilis desde o séc. II (p. 99),
16) O Espírito Santo sob forma de mulher (p. 103),
17) Na obra de Alan de Lille, um autor do séc. XII, a natureza planeia fazer um homem perfeito (p. 120),
18) Uma grande parte da poesia cristã primitiva como continuação da técnica retórica da paráfrase (p. 148),
19) A superação como técnica literária (p. 163) que encontramos em Camões no "Cale-se de Alexandre e de Trajano",
20) A maravilhosa frase de John of Salisbury, um autor do séc. XII “Rex illiteratus est quasi asinus coronatus" (p.177), um rei iliterato é como um burro coroado, o que nos faz lembrar muitos régulos actuais
21) William of Wykeham séc. XIV “Manners makyth man” (p. 180), uma boa lição para os grosseiros da nossa época
22) A continuidade na descrição das paisagens ao longo de toda a Idade Média (p. 184),
23) A teoria da prova (p. 193),
24) Jean de Meun no « Roman de la Rose » diz para compor poesia é "travailler en philosophie" (p. 208),
25) As musas que perdem terreno na poesia imperial romana (p. 234),
26) O homem heróico aristocrático que formou o Ocidente (p. 238),
27) Classicus, palavra que aparece em Aulo Gélio (p. 249),
28) A palavra “moderno” que aparece no séc. VI, sendo uma das heranças do latim tardio na actualidade (p. 254)
29) O cânone medieval como a confluência entre autores pagãos e cristãos (p. 261)
30) Uma maravilhosa síntese das relações entre romantismo e classicismo (p. 269),
31) A poesia concreta já na Idade Média como forma de maneirismo (p. 284, 315),
32) O siglo de oro espanhol como continuação da Idade Média (p. 299)
33) A importância da arte da caligrafia em Bizâncio do séc. V (p. 307) o que não deixa de ser curioso porque se admira a arte quando é muçulmana e se despreza quando é crista,
34) "O humanismo do século XII, como todo o verdadeiro humanismo, delicia-se simultaneamente com o mundo e com o livro” (p.315),
35) A objectividade perante o mundo como leitura em Dante (p. 326)
36) O rio como símbolo da eloquência (p. 356)
37) A Divina Comedia como uma comédia também humana (p. 367)
38) A literatura europeia como o campo inteligível de estudo (p. 383)
39) O artifício é visto como sinal de decadência, mas o contrário pode também acontecer (p. 389)
40) A rima é criação medieval (p. 390)
41) A tradição é um testemunho e uma renovação (p. 393)
42) A frase humorística de um prelado renano medieval – “A humildade é a mais rara das virtudes. Graças a Deus eu tenho-a” (p. 408)
43) A natureza divina da poesia (p. 444)
44) A composição numérica como método de composição de textos (p. 502)
45) São precisamente os frutos de uma cada vez maior especialização que permitem mais vastas universalizações (p. 520)
46) O escritor revolucionário é sinal de época de desintegração segundo Toynbee (p. 597)
47) O espírito em que Dante restabelece a tradição resume-se em duas palavras: fé e alegria (p. 598).

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Fumar a preto e branco (Parte I da Trilogia do Fumo)




Numa rua secundária de uma povoação distante, num qualquer bar (de alterne?) um homem só bebe a sua “mil nove e vinte”. É só mas não está só. À sua frente, uma mulher (estrangeira?) não lhe faz companhia. Apenas se senta à sua frente. Não se vê vivalma. O empregado, desapareceu. Para os dois a vida é dura e não lhes traz alegrias. Pior, o futuro não existe. Ele procura emprego compatível; ela trabalha a dias em casa de uma senhora e às noites em casa de quem calhar. O sítio é feio e mal iluminado. Como compete. O homem, impaciente, mexe-se no sofá de veludo púrpura coçado. Está irrequieto. A mulher percebe. Aguarda um convite, uma proposta. O homem, mais do que uma vez, parece querer falar. Mas nada diz. No passado, o silêncio entre eles (quaisquer “eles”) era povoado pelo fumo de um cigarro e as passas prolongadas - e profundas - preenchiam o espaço das palavras. Agora não. É proibido.

Quando ele finalmente fala ela parece acordar. “Sim?”. “Vamos”, repete o homem.

Sheila levanta-se, pega na carteira, veste o casaco mas não apaga o cigarro. Não pode. Não neste filme.

Recomecemos:

Quando ele finalmente fala ela parece acordar. “Sim?”. “Vamos”, repete o homem.

Sheila levanta-se, pega na carteira e veste o casaco, não sem antes tragar, de um só golo, o resto do whisky cola. Era a frase que esperava há mais de uma hora.

“Adonde pensas que vais”, pergunta-lhe Adelino sem simpatia. “Embora? Para tua casa?”. “Não sejas parva, vamos lá fora fumar um cigarro. Não conheces o decreto em vigor?”.

Hoje, também no cinema, fumar acabou. Não me refiro às salas, mas aos filmes. Nos filmes! Heróis musculados e mulheres biónicas - de peitos de pedra -, rebentam estruturas, estropiam pessoas e corrompem as almas. Mas não fumam. Fumar não, isso não. Os novos heróis são saudáveis e têm intuitos pedagógicos. Não fumam – também -porque isso deseduca.

É um mundo curioso este que deixamos aos nossos filhos.

Nota final: verdade seja dita, o George Clooney também não é o Cary Grant e não há mulher – nenhuma! - no cinema actual que possa aspirar a ser a nova Ava Gardner.

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2ª Classe

O mundo em que vivemos provoca-nos algumas perplexidades. Aqui, na Geração de 60, do BCP ao Cristianismo, do livre arbítrio à herança genética, cumprimos o papel cívico a que um blog pode aspirar e já nos apresentámos espantados, ofendidos, desencorajados e exaltados.
Não somos os únicos. Mesmo miúdos com 7 anos revelam, no labor académico da sua 2ª classe, sinais inequívocos de que a dúvida existencial contaminou a nova geração.
Reúno alguns pontos altos da aturada reflexão desses mestres do futuro sobre um leque de temas que marcam a agenda do pensamento contemporâneo, não sem uma vénia aos pedagogos que superiormente os orientam:

1. O Casamento
Em Portugal os homens e as mulheres podem casar-se. A isto chama-se monotonia.

Os homens não podem casar com homens porque então ninguém podia usar o vestido de noiva.

2.Reciclagem
Os meus pais só compram papel higiénico cinzento, porque foi utilizado e é bom para o ambiente.

3.Solidariedade Social
Adoptar uma criança é melhor. Assim os pais podem escolher os filhos e não têm de ficar com os que lhe saem.

4.Ciências Naturais
As vacas não podem correr para não verterem o leite.

Um pêssego é como uma maçã só que com um tapete por cima.

5.Religião
Eu não sou baptizado, mas estou vacinado.

6.Educação Sexual
A minha irmã está muito doente. Todos os dias toma uma pílula, mas às escondidas para os meus pais não ficarem preocupados.

A lista é parva e, aviso já, possivelmente falsa. Mas porque é que nos parece tão verosímil?

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quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Camouflages

Os co-autores e 40 mil leitores do Geração de 60 vão perdoar que eu rompa com a tradição aristocrática do blog e consequente elevação dos temas, mas a culpa é de dois Pedros, o Norton e o Lains, que me fizeram descer do pedestal e desarvorar por encruzilhadas mais vernaculares. A propósito deste Estiloso, insinuam aqui coisas.
Sugiro ao PN, mais lingerie oriented, que ponha os olhos neste belicoso modelo “camouflage”. Tal como a dos pantalons de gola alta, a inspiração é do bad boy Gaultier.

Ao PL, e sem lhe beliscar a tendência tropical, tenho a certeza de que esta variante não gaulteriana do “cone-bra” não o deixará indiferente. Get the point?

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III. Curtius, European Literature and the Latin Middle Ages, Princeton / Boellingen Paperbacks

É evidente que se podem estudar continuidades, pode-se mesmo aceitar que elas existem, mas em nome dessa busca da continuidade perder um tempo imenso a estudar mediocridades. É evidente que mais dificilmente se encontra um filão de continuidade nação por nação nas línguas vernáculas. Mas estas duas evidências não têm o significado que se lhes poderia atribuir. É que quando analisamos a fileira da continuidade da literatura neolatina verificamos que se encontram obras de grandeza em todas as épocas. E que se não se encontram em todas as épocas em todos os países isso resulta de falarmos de um espaço bem mais vasto de escolha. Podemos ser bem mais exigentes.

Reconheçamos que se fizermos um panorama da literatura europeia em língua vernácula não perderíamos muito tempo com a “Morgadinha dos canaviais”. O facto de os espaços geográficos serem mais curtos dá relevância a obras e autores que nunca a teriam em horizontes bem mais vastos. Um autor nacional adorado pode ser uma figura menor em termos europeus.

No que respeita ao latim, a sua importância não pode nunca ser descurada. Até à primeira metade do século XX ainda era comum as teses de doutoramento serem feitas nesta língua, sobretudo no Norte da Europa. Vejo muitas pessoas fugirem para a História contemporânea, julgando assim que se livram do latim, esquecendo que uma boa parte da produção cultural ainda se lhes escapa por ignorância da língua.

O latim não é uma língua qualquer. É a língua que mais carregou a cultura europeia. Os protestantes largam Roma, mas não o latim, os seu autores clássicos, ou a literatura neolatina.

Assim como noutras áreas verificamos continuidades na Europa também na língua as encontramos. A nobreza russa quando se ocidentaliza aprende o latim.

A análise de Curtius, como todas a macro análises, permite chegar a conclusões que assustam os suburbanos. Em vez das categorias banais de barroco, classicismo, românico e assim por diante, constrói com base em categorias retóricas muito vastas conceitos de síntese da cultura europeia.

É um renovador da retórica, que teve tanta importância a partir da segunda metade do século XX. É aliás significativo que esta renasça nesta época. Num mundo que se vê estilhaçado após guerras mundiais, desconfiando de grandes sistemas, a retórica passa a assumir um papel cada vez mais relevante, não como plano de acção, como era no mundo antigo, mas antes como visão do mundo. O homem posta-se no mundo tentando compreendê-lo retoricamente. Espera que o mundo o convença. Quer participar dessa sua derrota, em suma, porque ser convencido é ser vencido, mas participar na vitória alheia. Desconfia da contemplação, porque o mundo se lhe anuncia como luta, com vencedores e vencidos, ou, de preferência, com tratados de paz. A convicção, filha da retórica e seu motivo, não é visão, é um tratado de paz consigo mesmo e com os outros.

A questão é que Curtius faz reviver a retórica, não como um exercício, mas como um potente instrumento de análise. Não a idolatra, reconhece-lhe a força. Tão simplesmente.

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O incrível Hulk



Na próxima sexta-feira começa em Davos mais um Forum Económico Mundial. O programa é variado, os convidados ilustres e, como é da praxe, está já também garantida a presença dos habituais manifestantes anti-globalização sem os quais não há, nos dias que correm, cimeira digna desse nome.

Devo confessar que tenho um certo carinho por este tipo de manifestações-tipo-dança-da-chuva. Gosto do ar «soixantard» serôdio, gosto do tom «soyons realistes, exigeons l'impossible», gosto sobretudo do ar muito compenetrado com que pedem o fim da globalização como quem clama pelo fim do mau tempo, pela abolição das segundas-feiras ou até pela eliminação, mais genérica, das maçadas e das contrariedades em geral.

Dito isto, fico sempre com uma irritante dúvida: A quem querem apresentar a reclamação? Quem esperam que lhes responda? Deus? O Papa? O sr. Gates? O Dr. Louçã? O portal do cidadão? O incrível Hulk?

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Estiloso

A fotografia chegou-me com uma única referência: estiloso. Creio ser de um angolano, fotografado em Luanda. Se querem que vos diga, é uma fotografia que convida ao paradoxo: parece convocar o ridículo e exclui-o logo a seguir. Este jovem luandense exibe um prazer e uma alegria inabaláveis. É verdade que talvez haja nele uma pontinha de vaidade, mas o que no seu olhar ressalta (mais como sussurro do que como estrondo) é que as convenções sociais lhe são indiferentes. O masculino e o feminino estão nele relegados para um lugar irónico. Pode ser que este estiloso tenha o fascínio da moda, mas a forma como a introduz, sem pânico, nem grandes efusões, no quotidiano (a chaleira na mão, os pneus à rectaguarda) é de uma naturalidade superior e hedónica.
Este jovem, este estiloso, é o verdadeiro “calcinhas” de Luanda, com um inadvertido toque de Jean-Paul Gautier. E mais do que tudo o que acima escrevi, o que ele me diz, no júbilo do seu “outfit”, é que em Angola o “incertum” da guerra acabou.

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terça-feira, 22 de janeiro de 2008

II. Curtius, European Literature and the Latin Middle Ages, Princeton / Boellingen Paperbacks

O que aprendem as populações na escola é marcado pela idolatria do descontínuo. A matéria é descontínua (resta saber em que termos e com que limites), as formas de pensamento são discretas, os saltos são quânticos. As criancinhas aprendem o ermamento, que na revolução de 1383-85 apareceu uma nova nobreza (basta ver a genealogia de D. Nuno Álvares Pereira para perceber que isto é dislate), a nobreza galo-romana ou hispano romana ou itálica nem é referida. O mundo é feito de saltos, de cortes, de descontinuidades.

No caso do estudo da literatura este pressuposto ainda é mais cruelmente enunciado. Dão-se as literaturas “nacionais” apenas na língua vernácula. Nesta perspectiva parece que durante o Império Romano se escrevia e depois tivemos de esperar quase oito séculos para voltar a ver documento escrito. E, como toda a gente sabe, os clássicos andaram esquecidos e eis senão quando se chega à Renascença e são redescobertos.

O problema desta visão é que não percebe que as paragens são imagem da falta do próprio fôlego de quem pensa e não da vida que continua. Curtius não foi o primeiro nem o último a perceber isso. Mas teve o mérito de fazer na literatura uma suma, que é obra rara. Outros a fizeram na História como Mommsen, outros na física como Pierre Duhem.

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HUNGRY...think purple !

Is it possible to hate something if you haven’t really tried it?

Although its colors may vary from pearl white to almost dark chocolate, most of Portugal knows it for it’s large oval shape and beautiful shiny coat of dark purple.

It’s a common vegetable which has made it’s way through almost every Mediterranean household.

You guessed it…Eggplant/or Aubergine .

This innocent and diverse vegetable has not reached it’s “highest recognition”- due to the fact most people are serving it undercooked.
If you have tried it in the past - and it feels less than “soft baked apple texture” when you put it in your mouth - you have yet to savor its potential flavor!
There are a few things we need to know before we take home this potato-pepper-tomato descendant!
Eggplant holds a certain amount of moisture, and not like other moist vegetables, it contains a peculiar bitterness. This bitterness is the blame for eggplant making the “black list” while passing through the vegetable isle. Be daring and take a couple home – “test drive eggplant for the first time in 5th gear”. Here are a few simple tricks to getting it right the next time.

 Most Important - remove the bitterness!

1-slice the eggplant/soak it in water and salt/cover with a plate to keep it below water for a few hours/squeeze excess water before use.

2- slice the eggplant and sprinkle some salt on both sides/allow to rest on counter for 1hr/be sure to place some paper towels or clean cloth on bottom.

3-Do what I do-slice the eggplant and sprinkle some sugar on both sides/allow to rest on paper towels or clean cloth for 30 minutes.

This procedure is perfect if you want to sauté or steam the eggplant. Keep in mind..the bigger we cut it..the longer it will take to cook!
Be sure to use a non-stick pan, a splash of olive oil and keep the heat on very low. There will be a time it will seem the eggplant has “sucked up all the oil”. This is normal. Do not add more oil. After a given time, the moisture will release itself naturally from the vegetable. Continue to stir from time to time until it becomes extremely soft. Remove excess oil and continue to cook with low heat – turning on all sides. At this point - you can add cut meat, onions, fish, fresh tomato-you name it. The possibilities are endless!

Another simple way to try eggplant:

Cut it in ½ long ways and sprinkle some sugar on top of “meat”. Place it on a roasting pan with skin side down-meat side up. Add some water on bottom of pan and place in the oven about 180. Allow to cook until the insides become extremely soft. (Not less than 30/40 minutes depending on size). It’s difficult to overcook-so don’t worry if the skin looks dark and it’s completely separating from the insides-it’s even better!
Afterwards-remove the “meat” using a soupspoon. Allow cooling down and refrigerate. This can be your base for several quick and easy dishes.
When guests arrive-sauté garlic and oil add the roasted eggplant, fresh cut tomato and continue to sauté. Season with salt/pepper. Top with goat cheese (or preferred cheese) and serve with toasts.

Or –sauté onions with olive oil till golden and soft, add the roasted eggplant, peeled shrimp, fresh tomato, coriander and continue to cook covered on low heat till shrimp are cooked. Season with salt/pepper and add to your favorite pasta - or bruschetta!

"give eggplant a second chance"

Chef Guerrieri

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A Festa de Guerrieri

Poder-se-á dizer que, com a entrada do Chef Guerrieri, a Geração de 60 vai ter a sua "Babette's Feast"? Seja bem vindo Chef.



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I. Curtius, European Literature and the Latin Middle Ages, Princeton / Boellingen Paperbacks

Tive a infelicidade de conhecer uma criatura de baixo coturno colocada num alto posto (“se queres conhecer o vilão...”) que costumava dizer “todos cometemos erros”, “temos de aprender uns com os outros”. Sempre que o dizia eu ouvia em eco “há mar e mar, há ir e voltar”, “todos diferentes, todos iguais”. O seu cérebro era ocupado por tais lugares comuns que suspeitava que a sua caixa craniana era uma pista de patinagem sobre o gelo em que uma só dendrite vivia desesperada escorregando atrás do único axónio, que se dedicava a fazer a esparregata.

A sabedoria das adjacências, suburbana na sua origem, afecta muitas actividades, mesmo aos mais altos (!) níveis. Muitos se vêm como eruditos porque ao falar de História em vez de dizer profissões falam em “mesteres” e o rei é automaticamente baptizado de “El – Rey”. O que dá em frases algo ridículas como “no tempo de El-Rey D. Dinis os mesteres viveram frondosa época”.

A erudição não é isto. Não é a referência mecânica a lugares comuns ou a arcaísmos deslocados. A erudição começa por ser trabalho. Muito e por vezes imenso. É memória, sempre grande, por vezes vasta. É inteligência, por vezes majestosa.

Os eruditos são muito mal vistos na nossa época. A criação é vista como espontaneidade. No entanto, nem sempre foi assim, e em geral nunca foi assim. Grande parte dos grandes génios era também erudita. E alguns eruditos atingiram as fronteiras por génio pela via da erudição. Exemplos destes são Mommsen, Gregorovius, Cornford mas também Curtius.

De vez em quando, mas muito raramente, surgem grandes sumas, verdadeiros monumentos, que conseguem sintetizar séculos de História, de reflexão, de criação. São raros pontos de civilização, que requerem condições sociais propícias à instrução, mesmo que por vezes adversas à segurança (este livro foi feito em exílio interior durante o nazismo), mentes particularmente favorecidas e uma disciplina e um amor à investigação sem falhas.


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Beleza e Consolação

Alcochete e Ota, BCP e Totta, a lota dos pescadores que perde o mar ao ritmo exacto das directivas comunitárias, a taxa de inflação que nasce torta como a doçaria de Guimarães, um Tratado de ardilosa e bufa tecnocracia, o preço e o peso das coisas. A realidade é isto, e esmaga-nos o sentido de prazer, esse último cálice pagão no altar inicial do mundo. Onde é que se procura hoje a beleza? E quando paramos o tempo suficiente para sentir falta dela?
A beleza está para além da consciência - ela não necessita da percepção do observador para existir. As nuvens de gás de Andrómeda ou as estrelas de Cassiopeia são belas independentemente da existência humana. Mas a insustentável leveza da sua falsa complexidade está incrustada no cérebro dos homens, e passaram-se os últimos milhares de anos em busca da equação dourada, do número divino, dos segredos de Pi - da beleza como acrónimo de Perfeição.
Ora, a vida mostra muitas coisas, e uma delas é a explosão da beleza fora da perfeição: em certa medida, toda a beleza é imperfeita.
Na arte, tecida por gente de suprema imperfeição - da surdez de Beethoven à esquizofrenia de Van Gogh - a beleza é muitas vezes um afluente do equilíbrio semântico, da transcendência dos cânones religiosos, da composição quase matemática. Quando a imperfeição é louvada, ela resulta muitas vezes de um apriorismo estético, tão longe da realidade como o discurso enfático de um político calculista (perdoem a redundância).
Como faz notar Geoff Andrew num livrinho delicioso chamado "Ten Bad Dates With De Niro" (Faber and Faber, 2007), há marcas nítidas do senhor Diego Rodríguez de Silva e Velázquez - ver quadros como "A Infanta Margarida de Vestido Azul" - na estratégia de sugestão da opulência de Xanadu (através de cortinas negras, vozes distantes, adereços dissimulados) em "Citizen Kane" de Orson Welles. Ou no longo manjar herético - rever o "Festim de Baco" - que alimenta "Viridiana" de Buñuel. Mas a beleza de um e de outro filme, e de um e outro quadro, não são do domínio puramente estético, na antecipação do Impressionismo (Velázquez), do "cinema psicológico" dos anos 50 (Welles) ou da liberdade das Novas Vagas (Buñuel).
A beleza de Velázquez, Welles e Buñuel está, antes de mais, na forma como reformulam as angústias humanas e nos obrigam a repensar a realidade (e não, isto não é uma visão marxista da arte).
O "Tread softly because you tread on my dreams" de Yeats só se torna belo quando reflecte um mundo inteiro de esperanças perdidas, sofrimento tangível, diferenças de classe, as expectativas de uma vida à qual só resta o trabalho -ou a miséria - sem o amor.
O primeiro confronto que tive com a beleza em 2008 foi graças a 1974. Ontem. Em "Alice Já não Mora Aqui" de Martin Scorsese, a pobre Alice (Ellen Burstyn) vive em todo o sítio menos no país das maravilhas. O marido que lhe batia morreu, mas deixou-a sem um tostão e com um filho pequeno para criar. Ela sonha ser cantora, vende os móveis que restam, mete-se à estrada, compra um vestido verde apagado, bate à porta de todos os bares de Phoenix, chora baba e ranho até que, um dia, a deixam cantar num piano velho encostado a um balcão de cerveja morna. São dois minutos, Alice não canta grande coisa, mas a sua digna fragilidade é bela. Porque é real.
"A thing of beauty is a joy forever". Se mostrar o que fomos ontem e o que podemos ser amanhã, é.

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domingo, 20 de janeiro de 2008

Um mundo muito perigoso


Os primeiros dias de 2008 foram marcados por uma iniciativa invulgar. George Shultz, William Perry, Henry Kissinger e Sam Nunn subscreveram um artigo publicado no Wall Street Journal (ver aqui), apelando à construção de um Mundo sem armas nucleares.
Para eles, a actual situação encerra ‘perigos tremendos’. Os recentes testes promovidos pela Coreia do Norte, a obstinada recusa do Irão quanto ao abandono do programa do urânio enriquecido e a crescente probabilidade de grupos terroristas virem a dispor de armas nucleares fazem do nosso mundo um lugar arriscado para viver. Mais grave ainda, se nada for feito, os Estados Unidos serão arrastados para a inevitabilidade de novos investimentos e a escalada nuclear agravar-se-á. Agora, tendo como pano-de-fundo uma situação muito mais incontrolável – e, portanto, muito mais explosiva – do que a dos anos da Guerra Fria. Porque, como é bom de ver, o crescimento exponencial do número de inimigos nucleares, espalhados pelos vários continentes, aumenta dramaticamente o risco de efectiva utilização das armas malditas…
É claro que, também nos lembram, a inequívoca gravidade do actual perigo nuclear encerra uma importante oportunidade histórica. Perante a impossibilidade de viver sob a presente ameaça, os países terão de encontrar soluções. E, para Schultz, Perry, Kissinger e Nunn, não há alternativa à total erradicação das armas nucleares.
Para que o mundo possa descansar, propõem um consenso entre os líderes dos países nucleares e um programa muito pragmático a concretizar no curto prazo. Aos Estados Unidos, caberá a responsabilidade histórica de liderar o processo e de imprimir a dinâmica e a consequência que as circunstâncias impõem. O fracasso de Reagan e Gorbachev, há vinte anos, em Reykjavic, tem de ser vingado – antes que seja tarde demais.
Mas, até lá, tudo pode acontecer. O mundo está mesmo muito perigoso. Como Schultz, Perry, Kissinger e Nunn fizeram questão de evidenciar, apenas a um curto passo do abismo.
Para nós, impotentes espectadores à beira-mar, só nos resta uma pequena satisfação: disto, o Primeiro-Ministro não tem culpa nenhuma. Temos medo, mas não é de Sócrates. Valha-nos essa certeza!

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