Fumar a preto e branco (Parte I da Trilogia do Fumo)
Numa rua secundária de uma povoação distante, num qualquer bar (de alterne?) um homem só bebe a sua “mil nove e vinte”. É só mas não está só. À sua frente, uma mulher (estrangeira?) não lhe faz companhia. Apenas se senta à sua frente. Não se vê vivalma. O empregado, desapareceu. Para os dois a vida é dura e não lhes traz alegrias. Pior, o futuro não existe. Ele procura emprego compatível; ela trabalha a dias em casa de uma senhora e às noites em casa de quem calhar. O sítio é feio e mal iluminado. Como compete. O homem, impaciente, mexe-se no sofá de veludo púrpura coçado. Está irrequieto. A mulher percebe. Aguarda um convite, uma proposta. O homem, mais do que uma vez, parece querer falar. Mas nada diz. No passado, o silêncio entre eles (quaisquer “eles”) era povoado pelo fumo de um cigarro e as passas prolongadas - e profundas - preenchiam o espaço das palavras. Agora não. É proibido.
Quando ele finalmente fala ela parece acordar. “Sim?”. “Vamos”, repete o homem.
Sheila levanta-se, pega na carteira, veste o casaco mas não apaga o cigarro. Não pode. Não neste filme.
Recomecemos:
Quando ele finalmente fala ela parece acordar. “Sim?”. “Vamos”, repete o homem.
Sheila levanta-se, pega na carteira e veste o casaco, não sem antes tragar, de um só golo, o resto do whisky cola. Era a frase que esperava há mais de uma hora.
“Adonde pensas que vais”, pergunta-lhe Adelino sem simpatia. “Embora? Para tua casa?”. “Não sejas parva, vamos lá fora fumar um cigarro. Não conheces o decreto em vigor?”.
Hoje, também no cinema, fumar acabou. Não me refiro às salas, mas aos filmes. Nos filmes! Heróis musculados e mulheres biónicas - de peitos de pedra -, rebentam estruturas, estropiam pessoas e corrompem as almas. Mas não fumam. Fumar não, isso não. Os novos heróis são saudáveis e têm intuitos pedagógicos. Não fumam – também -porque isso deseduca.
É um mundo curioso este que deixamos aos nossos filhos.
Nota final: verdade seja dita, o George Clooney também não é o Cary Grant e não há mulher – nenhuma! - no cinema actual que possa aspirar a ser a nova Ava Gardner.
9 comentários:
Já nem o lucky luke escapa a esta ditadura do politicamente correcto. Ainda a semana passada dei comigo a ler uma edição recente deste meu herói de juventude e reparei, para grande espanto meu, que o cigarrinho fora substituído por uma inocente palhinha...
Sinais dos tempos.
Caro JP,
Não só lhe dou as boas vindas, como, eu que não fumo mas sei que um Partagas SD nº 4 não é uma bravata, reconheço que a estética do cinema se empobrece sem fumo e cigarros. Embora já esteja a deitar por fora com as jeremíadas dos fumadores, e com os exaltados discursos cívicos que devem deixar ruborizada a Amnistia Internacional, o seu "Fumar a Preto e Branco" tem um talento de racconteur que em muito melhora este poiso da "Geração de 60", a meu ver um sítio em que o gosto pela linguagem, pela imaginação e pela narrativa devem prevalecer. Já agora, espreitou o "Expiação" com a angélica e sexuada Kira Knightley? Fuma-se tanto na primeira meia-hora de filme que estou em crer não ser possível, na América, oeyzufoivender bilhetes para as 3 primeiras filas.
Houve para ali um acidente (noeyzufoi)no texto que me obriga a repetir o último período:
Fuma-se tanto na primeira meia-hora de filme que estou em crer não ser possível, na América, vender bilhetes para as 3 primeiras filas.
Sinais dos tempos, escreve o meu caro Manuel Fonsenca. Eu concordo e acrescento que, para além de terem deixado de fumar, é frequente ver-se, actualmente, os cowboys, a chupar a palhinha...
Caro Manuel,
Muito obrigado pelas suas simpáticas palavras bem como pelas boas vindas. Ainda não tive oportunidade de espreitar a "Expiação" mas não deixarei de o fazer em breve. Aproveito ainda para lhe dizer que, curiosamente ou talvez não, também eu não sou fumador.
Por lapso (e senilidade) atribuí o comentário sobre "a palhinha do Lucky Luke" ao Manuel Fonseca e não ao Pedro Norton, o seu verdadeiro autor.
A propósito de cowboys e palhinhas arrisco-me a deixar um desafio ao Menuel Fonseca e ao Pedro Marta Santos: ainda há verdadeiros westerns?
Com tanto saudosismo temos de mudar o nome ao blog. Podia ser Oh! Geração de 60!
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