segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Beleza e Consolação

Alcochete e Ota, BCP e Totta, a lota dos pescadores que perde o mar ao ritmo exacto das directivas comunitárias, a taxa de inflação que nasce torta como a doçaria de Guimarães, um Tratado de ardilosa e bufa tecnocracia, o preço e o peso das coisas. A realidade é isto, e esmaga-nos o sentido de prazer, esse último cálice pagão no altar inicial do mundo. Onde é que se procura hoje a beleza? E quando paramos o tempo suficiente para sentir falta dela?
A beleza está para além da consciência - ela não necessita da percepção do observador para existir. As nuvens de gás de Andrómeda ou as estrelas de Cassiopeia são belas independentemente da existência humana. Mas a insustentável leveza da sua falsa complexidade está incrustada no cérebro dos homens, e passaram-se os últimos milhares de anos em busca da equação dourada, do número divino, dos segredos de Pi - da beleza como acrónimo de Perfeição.
Ora, a vida mostra muitas coisas, e uma delas é a explosão da beleza fora da perfeição: em certa medida, toda a beleza é imperfeita.
Na arte, tecida por gente de suprema imperfeição - da surdez de Beethoven à esquizofrenia de Van Gogh - a beleza é muitas vezes um afluente do equilíbrio semântico, da transcendência dos cânones religiosos, da composição quase matemática. Quando a imperfeição é louvada, ela resulta muitas vezes de um apriorismo estético, tão longe da realidade como o discurso enfático de um político calculista (perdoem a redundância).
Como faz notar Geoff Andrew num livrinho delicioso chamado "Ten Bad Dates With De Niro" (Faber and Faber, 2007), há marcas nítidas do senhor Diego Rodríguez de Silva e Velázquez - ver quadros como "A Infanta Margarida de Vestido Azul" - na estratégia de sugestão da opulência de Xanadu (através de cortinas negras, vozes distantes, adereços dissimulados) em "Citizen Kane" de Orson Welles. Ou no longo manjar herético - rever o "Festim de Baco" - que alimenta "Viridiana" de Buñuel. Mas a beleza de um e de outro filme, e de um e outro quadro, não são do domínio puramente estético, na antecipação do Impressionismo (Velázquez), do "cinema psicológico" dos anos 50 (Welles) ou da liberdade das Novas Vagas (Buñuel).
A beleza de Velázquez, Welles e Buñuel está, antes de mais, na forma como reformulam as angústias humanas e nos obrigam a repensar a realidade (e não, isto não é uma visão marxista da arte).
O "Tread softly because you tread on my dreams" de Yeats só se torna belo quando reflecte um mundo inteiro de esperanças perdidas, sofrimento tangível, diferenças de classe, as expectativas de uma vida à qual só resta o trabalho -ou a miséria - sem o amor.
O primeiro confronto que tive com a beleza em 2008 foi graças a 1974. Ontem. Em "Alice Já não Mora Aqui" de Martin Scorsese, a pobre Alice (Ellen Burstyn) vive em todo o sítio menos no país das maravilhas. O marido que lhe batia morreu, mas deixou-a sem um tostão e com um filho pequeno para criar. Ela sonha ser cantora, vende os móveis que restam, mete-se à estrada, compra um vestido verde apagado, bate à porta de todos os bares de Phoenix, chora baba e ranho até que, um dia, a deixam cantar num piano velho encostado a um balcão de cerveja morna. São dois minutos, Alice não canta grande coisa, mas a sua digna fragilidade é bela. Porque é real.
"A thing of beauty is a joy forever". Se mostrar o que fomos ontem e o que podemos ser amanhã, é.

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