sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Da Visão: Postais da Índia VI



1 – No Museu Arqueológico de Velha Goa estão, literalmente, amontoados os retratos dos 163 vice-reis e governadores que fizeram a história da presença portuguesa na Índia. O espaço expositivo está decadente, os quadros em paupérrimo estado de conservação, a iluminação é indigna, legendas ou explicações nem vê-las. Salazar, Américo Tomás, um colossal Camões e diversa estatuária hindu compõem o ramalhete de um museu sem nexo e ainda menos brio. Não sei se o Presidente da República sentiu o mesmo que eu quando visitou Goa em Janeiro do ano passado. Mas eu não pude deixar de pensar na National Portrait Gallery de Londres e na nobreza inteligente e requintada com que os britânicos aí celebram a história através dos retratos. E muito menos consegui evitar lembrar-me dos gigantescos outdoors de Mourinho e Ronaldo com que o país, muito saloiamente, se despedira de mim ainda há poucos dias. Estranho país este.

2 - Aires Sebastião Araújo é taxista em Goa. Tem dois filhos de nomes portuguesíssimos e em vez do incontornável Ganesh de outras paragens tem um crucifixo pendurado no espelho retrovisor. Com uma indisfarçável felicidade passa-me para a mão uma carta do Consulado de Portugal em Goa que atesta que está a prestes a acabar o longo calvário que há-de valer-lhe o tão desejado passaporte português. Mas Aires Sebastião não fala uma palavra da língua de Camões. Nem tão pouco sabe pronunciar o seu próprio nome. Duvido que saiba onde fica Lisboa. Ingénuo, confesso que a pergunta me pareceu naturalíssima: «então para que quer ir para Portugal?». A resposta dificilmente podia ter sido mais eloquente: «Portugal? Quero o passaporte para ir viver para Londres». Seria de esperar outra coisa de um país que votou os seus ao mais completo abandono e esquecimento?

3 – Mahomed é taxista em Mumbai. Tem 28 anos, um filho pequeno e trabalha há quinze. Na época alta do turismo (de Setembro a Abril) não tem férias, não tem fins-de-semana e trabalha 22 horas por dia. As duas horas que lhe sobram são muitas vezes gastas a dormir no próprio táxi. Atravessar uma metrópole caótica de mais de doze milhões de habitantes para ir dormir a casa não é luxo para todos os dias.
Mas Mahomed não se queixa. Tal como outros 380 milhões de indianos, votou nas últimas eleições legislativas. Pôde escolher livremente entre 5.398 candidatos de 220 partidos políticos diferentes. E a escolha até foi surpreendentemente informada. A leitura de imprensa é um hábito de rua e a Índia pode justamente orgulhar-se de publicar alguns dos grandes jornais do Mundo. Economicamente a sua vida mudou muito desde que, ainda rapaz, deixou a sua Calcutá natal. Não ignora que é já um dos membros de pleno direito de uma classe média indiana que, segundo rezam as crónicas, há-de contar com 500 milhões de representantes lá para 2025. Queixas para quê? O sorriso fácil e afável diz tudo. Mahomed acredita no futuro.
O milagre económico indiano também se faz disto. E o Presidente Sarkozy há-de lembrar-se disso quando, depois da sua visita de Estado à Índia com a bela Bruni, regressar a Paris para discutir o fim da semana das 35 horas.

2 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

É um postal amargo. Temo que, de Cabo Verde a Macau - mesmo em Angola, sobretudo em Moçambique - a memória se desvaneça e, cada vez mais, o tempo, a eles, caboverdianos, macaenses ou angolanos, cada vez mais os vá da memória dos portugueses libertando...

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Já há uns dias, quando vi este post, imediatamente quis dizer qualquer coisa. Que concordo; que me entristeço; que sou português e que tenho pena, imensa pena, de viver num país que insiste em esquecer-se de si... Mas nada disse, até porque tinha - e tenho - um post pensado sobre Portugal que quererei fazer dentro de alguns dias. Mas não resisti, hoje, lendo-o uma outra vez, de dizer como me tolhe este sentimento de vergonha que de todos os lados nos é imposto sobre o nosso país, sentimento ao qual nos vamos cada vez mais habituando, rindo e encolhendo os ombros enquanto aceitamos tudo como normal, congénito, fatal: os buracos das estradas, a ruína dos edifícios, a confussão do espaço público, a desorganização dos serviços do Estado, a mediocridade dos políticos, o desânimo da nação... Sentimento tanto mais difícil quanto acredito que este país, esquecido que anda por si mesmo em todos os lugares do mundo onde já verdadeiramente foi, deve, para o bem de todos, em todos esses lugares, voltar a ser - Portugal.