quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

As ideologias, a Questão Nacional, os Partidos Políticos e Portugal (I)

Sentindo-me obrigado a estar à altura do convite que me foi feito para participar em tão distinto blog, o que muito agradeço, quis começar por uma declaração de princípios, em quatro actos, que o título claramente indica.
Sem grandes desenvolvimentos, nem demoras, como julgo ser próprio destes lugares, a que não estou habituado, o primeiro tem a ver com algo que, hoje, na vida social e política do ocidente, anda evidentemente escondido: as ideologias.
A oposição e mesmo a aversão que pressuponho surgirá face à proposta de discussão deste tema não são novas, tendo-a acompanhado desde o seu início. O termo idéologie, de facto, foi criado em 1801, pelo filósofo francês Destutt de Tracy, com o significado de ciência das ideias, no sentido de estados de consciência, a partir do que evoluiu para ciência da natureza humana e pretendeu tornar-se a base de todas as ciências. O que aqui nos interessa é que a sua incursão no domínio da moral e da política cedo mereceu a oposição do regime, tendo Napoleão Bonaparte, cujos seguidores pejorativamente apelidavam de idéologues este conjunto de filósofos, proibido o seu ensino a partir de 1812.
Embora não se possa estabelecer uma ligação directa entre os idéologues e Karl Marx (para além do facto de Destutt de Tracy e os sensualistas terem influenciado Auguste Comte e deste ter sido professor de Marx), a verdade é que este, apesar dos diferentes sentidos que lhe atribuiu ao longo da sua obra, tem também uma concepção negativa de ideologia, entendendo-a essencialmente como distorção (sentido que especialmente expressa nos chamados escritos da juventude, nomeadamente na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, nos Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844 e n` A Ideologia Alemã), concepção essa que prevaleceu e prevalece na nossa tradição ocidental.
Ora, foi a partir da concepção Marx e do posterior acolhimento e desenvolvimento que lhe foram dados por determinados autores (nomeadamente Louis Althusser, Karl Mannheim, Max Weber, Jürgen Habermas e Clifford Geertz), que Paul Ricoeur, num conjunto de lições proferidas na Universidade de Chicago no Outono de 1975 (publicadas pela primeira vez em 1986, pela Columbia University Press, com o título: Lectures on Ideology and Utopia), analisa a questão da ideologia e da utopia dentro do quadro mais geral da imaginação como problema filosófico.
Nessa obra, não negando a análise de Marx e do marxismo, Ricoeur irá aprofundá-la, de modo a permitir uma abordagem positiva de ideologia, que aqui especialmente me interessa. Podemos dizer que ele começa por alertar para três desvios que, no desenvolvimento histórico do conceito de ideologia, limitaram a sua compreensão.
O primeiro é o que reduz o carácter representativo da ideologia a uma mera distorção. Marx - diz Ricoeur - seguindo Feuerbach na sua crítica da religião, reage ao modelo de Hegel e do idealismo alemão, segundo o qual o homem alienaria em seres ideais as suas próprias qualidades, deste modo invertendo a realidade. A tarefa de Marx, portanto, é revoltar à realidade cuja apropriação foi distorcida pelas ideias, processo no qual a representação da realidade que imediatamente cabe à ideologia ficou reduzida, desde o início, a uma distorção negativa que é preciso evitar ou controlar.
O segundo desvio é o que vai reduzir a realidade à ciência, ou melhor, ao conhecimento científico da realidade. Se nos primeiros escritos de Marx a ideologia se apresenta em oposição à realidade (ou, como diria Marx, à praxis), a leitura feita a partir dos seus escritos posteriores (sobretudo a partir d´ O Capital e dos subsequentes escritos marxistas, em especial os de Friedrich Engels) irá opô-la à ciência, a partir do que a ideologia se identificará não só com a religião e com a filosofia (especialmente o idealismo alemão), como até aqui, mas com tudo o que é pré-científico, a-científico ou anti-científico.
O terceiro desvio, assim, é a extensão ilimitada da ideologia a toda a realidade, decorrente do fracasso do propósito anunciado de, por meio da ciência, acabar com as ideologias. É o que Ricoeur expressa através do chamado paradoxo de Karl Mannheim, que justamente pergunta: «Se tudo o que dizemos representa interesses que não conhecemos, como podemos nós ter uma teoria da ideologia que não seja em si ideológica?» Por outras palavras: Se a ciência não pode definitivamente substituir a ideologia e se esta está sempre presente na realidade, então não pode haver uma verdadeira ciência da ideologia, pelo que estamos condenados a uma ideologia da ciência!
Assim acautelados perante a ocorrência histórica destes três desvios, será possível pensar que a relação que a ideologia estabelece entre a representação e a realidade seja de conjunção – e não de oposição (pelo que a distorção será uma consequência da representação, e não o contrário); que seja uma relação moral – e não científica (isto é, que as relações entre infra-estruturas e super-estruturas sejam moral e não cientificamente compreendidas); e que seja uma relação objectivamente circunscrita – e não absoluta (isto é, que reconheça os limites naturais da realidade por si representada, nomeadamente a teoria, propriamente dita, e a intimidade das pessoas concretas, nomeadamente a sua felicidade, ou salvação).
Ora, é partindo desta noção de ideologia como representação – e não como mera distorção – da realidade, que Ricoeur explica que a operatividade e o sentido próprio da ideologia se dão na legitimação da autoridade. A política, de facto, é o lugar privilegiado do pensamento ideológico, por ser aí que propriamente se levantam as questões da legitimidade. No entanto, tal como não existe nenhum sistema de legitimidade absolutamente assente na força, também não existe nenhum sistema de autoridade absolutamente racional. Ora, é justamente a partir do reconhecimento que uma comunidade faz de si mesma na experiência tensional do hiato existente entre a pretensão de legitimidade da autoridade proposta e/ou imposta pelos governantes e a crença na legitimidade dessa autoridade oferecida e/ou negada pelos governados, que a ideologia mostra a sua função mais funda, que é a da integração – ou fragmentação – de uma determinada comunidade.
Para Ricoeur, portanto, a função de legitimação da autoridade política própria da ideologia é o elo de ligação entre o conceito marxista de ideologia como distorção e o conceito integrador de ideologia que ele encontrou em Clifford Geertz. Voltarei a este ponto quando falarmos de Portugal. Para já, aproveitando a leitura que fiz de Ricoeur, atrevo-me a uma definição: As ideologias são conjuntos mais ou menos sistemáticos de ideias que, representando a experiência do todo social, legitimam a autoridade existente numa determinada sociedade política, articulando-se com e projectando-se nas crenças e opiniões que as diversas comunidades nela compreendidas – especialmente as comunidades nacionais – fazem de si mesmas e do mundo.
As ideologias, neste sentido, são um dos legados mais importantes do ocidente moderno. Elas são, de facto, a expressão viva de três princípios fundamentais que por volta do século XVI começaram a emergir à consciência humana no ocidente, nomeadamente o princípio de que o ser é essencialmente individual e instaurador de si mesmo; o princípio de que a democracia é o único regime dado pelo direito natural; e o princípio de que o poder político deve ser independente dos outros poderes, designadamente do espiritual.
Ora, o que afirmo é que não existem ideologias sem uma tomada de consciência destes princípios, nem estes princípios se realizam sem que existam ideologias. E se para o senso comum prevalece a ideia de que a ideologia é uma falsificação da realidade, tal não é mais do que uma das manifestações da ideologia actual, alicerçada numa pretensão totalitária do saber científico e de um consequente progresso económico. É evidente, porém, como diz Althusser (em Pour Marx), que «só uma concepção ideológica do mundo poderia ter imaginado sociedades sem ideologia». O que é preciso lembrar, portanto, é que o que o ocidente tem a oferecer ao mundo não é nem o saber científico nem o poder económico, mas a capacidade de organizar a vida social e política em torno dos três princípios atrás enunciados, a partir do que tanto o saber científico como o poder económico poderão ser bons! E isso não se faz sem ideologias.
Continuaremos a vê-lo nos textos seguintes.

2 comentários:

Anónimo disse...

Excelente post.
Cumprimentos e obrigado,
Carlos C. Inez

Anónimo disse...

Bem vindo Gonçalo. A avaliar pela amostra receio que seja o Geração de 60 que possa não estar à altura de tão ilustre aquisição!