segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Indignai-vos?




Está na moda a indignação. Uma criatura simpática passeando a sua adorável insuficiência intelectual apresenta-nos um livro do alto da sua autoridade moral, algo fenecida pelos anos, com o título “indignai-vos”. E as pessoas vão nas ruas passeando pela trela a sua indignação.

Estamos já habituados a que os livros não carreiem ideias, mas apenas o que vai andando por tripas das pessoas. Mas existem situações em que a dissimulação esconde que se passaram limites. A insatisfação pode ser legítima, fica no entanto muito aviltada quando sofre enunciação tão pobre. Num espaço onde escasseiam as ideologias racionais, por mais vazias que se tenham tornado, pululam discursos sentimentais de toda a natureza, ou melhor, apenas emotivos. Puxando à emoção.

A injunção, o imperativo, surge na literatura sempre que as pessoas querem criar acção através da palavra. Em si, o facto não é novo, nem pecaminoso. Tanto melhor se alguém quer criar acção. A questão é a de saber qual.

Não me alimento apenas de sabedoria antiga, mas não cometo o erro simétrico de a descurar completamente. As várias gerações de homens que passaram por esta Terra não eram todas estúpidas, bem pelo contrário. E atrevo-me a pensar que em muitos casos eram muito mais inteligentes que, não apenas a maioria das pessoas da nossa época, mas superiores em muitos casos ao melhor que a nossa época produz.

Mas não preciso sequer partir desta premissa. Bastemo-nos com um exemplo. Um autor antigo, do séc. I a.C., chamado Aelius Theon, escreveu um tratado de retórica, muito apreciado ao longo dos séculos. Não tem a completude de um Quintiliano nem a originalidade de um Aristóteles, é certo. É uma espécie de manual escolar. Não é um génio. É o que hoje em dia se chamaria apenas de professor catedrático com assento pedagógico. Mas, por vezes, um simples professor catedrático consegue ter um sucesso secular. É raro que aconteça, mas pode acontecer.

O seu tratado de retórica era dos mais lidos na antiguidade, embora hoje em dia seja esquecido do público comum. Uma das impressionantes lições que dele retirei – porque ele não é grande criador, mas sintetiza séculos de sabedoria incorporada na retórica – é muito simples: os discursos de indignação são discursos de ódio.

Alguma atenção me tem de criar este aviso: estarão a incitar ao ódio toda uma geração?

Vejamos mais fundo.

Quando se incita à revolta, está a dar-se uma injunção para a acção. A finalidade do mundo futuro pode não estar desenhado, mas a acção pretende ter efeitos, mesmo que sejam negativos. Acabar com um mundo antigo, ou ao menos com partes desse mundo antigo.

Pode-se ar mais um passo em frente, e ter um projecto, mais ou menos messiânico, de um mundo futuro. Nesse caso, a exortação à acção implica destruir algo de antigo e construir algo de novo - os liberalismos e marxismos vários fizeram parte deste complexo de atitudes.

Seja. Mas basta para a análise?

Não. Pode-se exigir uma acção que é meramente interior. A exortação do “Acordai” de José Gomes Ferreira e Lopes Graça tem a sua beleza mas é vazia quanto à acção a seguir, não fora um contexto e chaves de leitura que se dão por adquiridos. Em si mesmo, apenas manda acordar, tomar consciência, não entorpecer. Só isso poderia ser perigoso para um regime, porque seja o que viesse a seguir seria forçosamente negativo para ele. Mas, nesse contexto, embora vazia em si mesmo, a exortação pode ser eficaz como um primeiro passo.

Indignai-vos? Onde se situa esta exortação?

Demos mais um passo.

Quem exorta à indignação está a dizer: merecem mais e melhor. A vossa situação está baixo de vós. Sois dignos e há o que está abaixo de vós é indigno. Daí a palavra de indignação. O que pode ser um bom dito e provavelmente justo. Mas, em boa verdade, exige alguma presunção. Porque quem aceita esse mandamento está a dizer: eu sou melhor que... Melhor que a situação que me rodeia, melhor que outros seres humanos (sejam os capitalistas, os políticos ou quem seja). Sou melhor que o meu actual destino.

Seja, mais uma vez. Pode ser justo. Estamos perante pessoas superiores. Superiores a outros, superiores à sua situação.

Teremos então de saber se o seu restante discurso é consistente com esta noção de hierarquia. E para nossa surpresa dizem em geral que não existem hierarquias que não há lugar a hierarquias. Vejamos... Então existe ou não o melhor e o pior?

O movimento até poderá ter toda a razão. Não discuto isso aqui. Apenas tento perceber qual a sua dinâmica interna. E alguém considerar-se mais digno que outras coisas e outras pessoas, sem ao mesmo tempo aceitar a hierarquia das dignidades, vive pura e simplesmente na contradicção.

Pois que demos outro novo passo.

Indignar-se para fazer o quê?

Aqui mais uma vez a exortação é vazia quanto à acção. Mas não há contexto que torne inequívoca a mensagem. É-se contra várias coisas, por muitas razões diversas, e sem plano quanto ao que seja o futuro. Bem pior ainda, pode-se ser contra, mesmo sem querer destruir o sistema que nos provoca a revolta.

Poderão querer reformas? Sem dúvida. Mas entre as reformas que uns querem, as revoluções que outros pretendem e os remendos que ainda outros desejam há anos luz distância.

Assentemos pois a poeira.

Os antigos tinham razão quando diziam que os discursos de indignação são discursos de ódio. Quando se ficavam pela indignação não estabeleciam, por definição, qualquer medida de acção. Medida, mensuração, proporção. Deixavam aberta qualquer acção. É um discurso de ódio puro, seja a outras pessoas, seja a situações próprias ou alheias. Quem aceita um discurso de indignação apenas diz: Sou mais que... Qualquer coisa. Mereço mais, seja dos outros, seja da situação em que me encontro. É um discurso dirigido a quem tem presunções mas não está disposto a reflectir mais, nem comprometer-se com acções futuras. Nem tem propostas para destruir um mundo antigo e muito menos para construir um novo, por mais que uma e outra presunções sejam destituídas de real significado no final. Não aceita qualquer medida. Abre um espaço, rasga um horizonte que conduz a lugar nenhum, sem direcção. Pressupõe a hierarquia quando a nega ao mesmo tempo. Recusa a alternativa e não sabe o que dizer sobre a acção.

A maior parte das épocas não foram dirigidas por teorias sistemáticas vertidas em formas de catecismos, como aconteceu com os liberalismos e marxismos. Por isso, a nossa época não é em nada especial. É apenas um regresso à trivialidade do quotidiano histórico. Nisso não há problema. A questão é que as épocas dirigidas por uma teorização sistemática da acção percebem com maior acuidade o vazio de um discurso em relação a esta. As restantes, a maioria na História provavelmente, não tem a sensibilidade apurada para os vácuos de acção nos discursos.

Indignai-vos? Compreensível movimento. Há sentimentos insatisfeitos e muito legitimamente. Mas indignar-se é apenas presunção de quem quer odiar livremente sem ter com isso problemas, num mundo sem hierarquias, onde se pode sentir hierarquicamente superior para chegar a acção nenhuma. Apelam ao seu sentimento e ele dá o que tem resguardado: o ódio. E a inacção.





Alexandre Brandão da Veiga







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