quarta-feira, 9 de março de 2011

A economia de mercado

Os idólatras de uma construção meramente técnica da Europa dizem que a Europa é economia de mercado. Um dos miraculosos critérios de Copenhaga. A copulativa é aqui assustadora. É? Ou tem como condição? Trata-se de duas coisas bem distintas.

Tenho tido o cuidado de salientar que não faço análise económica e nem sequer política, mas trabalho apenas no subterrâneo da política, no que a fundamenta. Não venho pois aqui fazer laudas ou diatribes sobre a economia do mercado. O que me preocupa é saber o que sustenta este discurso e o que significa sob o ponto de vista civilizacional.

Toda a economia no limite é de mercado. Em muitos aspectos é inevitável que o seja. Por mais planificada que seja uma economia, se não houver pão, este não pode ser distribuindo em grande quantidade e baixo preço. Quando muito ficciona-se pão, como fez a Albânia (país ídolo dos detentores das esquerdas doces antes de se converterem à política moral), ou a China ou a Roménia. E bem se pode inundar o mercado de manuais de cálculo tensorial que não é por isso que a sua procura aumenta sem mais.

A economia de mercado é manifestação de liberdade e fomenta a liberdade. A dimensão patrimonial é fundamental na vida humana. O que eu como, visto, onde habito, no que trabalho são sectores fundamentais da minha liberdade, manifestam os meus gostos e a minha opção de vida. Todas alternativas à economia de mercado mostraram-se, além de ineficientes no seu conjunto, limitadoras da liberdade.

A economia de mercado tem um efeito redistributivo muito potente. Costuma-se dizer que o Estado distribui melhor e a economia de mercado produz melhor. Este lugar comum está de há muito afastado. Nenhuma televisão privada atingiu a excelência da BBC nos seus tempos áureos, ou da ARTE nos seus bons anos. Há certos tipos de bens que consoante os países e a épocas o Estado produziu melhor que os privados, seja na saúde, na cultura, na educação, em alguns casos na infra-estrutura. Os serviços públicos nórdicos são mais bem eficientes que as empresas do Burkina Faso. De igual forma a economia de mercado por via da concorrência tem permitido o acesso a bens e serviços a camadas de população que nem com eles sonhavam há anos atrás. Tudo depende da época, do país e do modelo ético de organização que exista.
Só por isto seria legítimo política e civilizacionalmente que a Europa se baseie na economia de mercado. É uma visão mais adulta, mais realista da vida, uma visão mais livre e generosa do ser humano.

Mas coisa bem diversa é esquecer as taras do mercado.

Os critérios do mercado são anti-democráticos. O poder de voto não é igual para todos. Gera desigualdades tanto mais insuportáveis quanto entra em crise. Se no momento de crescimento todos beneficiam ainda que desigualmente, em momentos de crise os mais frágeis sofrem mais, e as redistribuições gerais dependem de factores de depredação mais que de mérito. O mercado opõe-se à meritocracia em muitos aspectos. Os depredadores ganham sempre em mercados instáveis.

O mercado deixado a si mesmo despreza o ser humano. Um velho, um analfabeto, uma criança enquanto não têm valor económico, são deixados de lado pelo mercado. São outras instituições, sejam elas formais ou informais, que atribuem valor à fragilidade humana. Por isso, mesmo nos países ditos mais liberais, o mercado nunca actua sozinho. Daí que se afirmar a natureza fundante do mercado é esquecer o papel que nas grandes economias capitalistas o evergetismo, sobretudo de dimensão cristã, tem no seu equilíbrio e no equilíbrio dos seus efeitos. Quem conhece o modo de vida do proletário do século XIX, ou as formas de proletarização actuais, obnubiladas, precarizadas, em ambientes laborais de humilhação e opressão que ainda hoje em dia são permitidos sabe até que ponto o ser humano pode efectivamente ser destruído por uma lógica de poder económico. Porque a economia de mercado, endeusada por si mesma, esquece os homens concretos que nela vivem. Com o seu poder e as suas fraquezas, as suas frustrações e a sua crueldade, mas também a sua generosidade.

O mercado deixado a si mesmo despreza a cultura, o património, em suma é indiferente às identidades humanas. Mesmo quando na aparência se escora nestas identidades (como vemos pelas especializações em finanças muçulmanas, ou indígenas) irreleva-lhes o centro dessa cultura, apenas aproveita o facto de ela existir como oportunidade de negócio. Assim como o inválido não é um humano que sofre, mas apenas uma oportunidade de vender uma prótese, o índio não é um ser humano que vive de certa forma, mas apenas um consumidor de objectos de penas.

Em suma, falar só de mercado é desprezar a democracia, o ser humano, e pôr em causa a cultura e a sua identidade.

A economia de mercado assenta numa antropologia e gera uma antropologia. Em cada cultura tem formas bem diversas. O que se produz, como se produz, quem produz, para quem produz depende de cultura para cultura. Mas gera igualmente uma antropologia. Enquanto só e apenas economia de mercado é indiferente à cor, raça, credo, não por amor ao ser humano, mas apenas por este lhe ser absolutamente indiferente. Sem assentar noutra antropologia que não em si mesma, reduz-se à indiferença perante a alegria e o sofrimento humanos. Uma Europa exclusivamente baseada na economia do mercado seria assim indiferente à sorte humana.
Mas, pode-se contra argumentar, os critérios de Copenhaga contém a democracia na sua referência. Quais sejam as limitações da democracia já o vimos. Esta referência conjuntamente com o mercado apenas tempera o lado anti-democrático do mercado. Não apaga o seu lado esmagador das culturas, da identidade e nem forçosamente de uma determinada visão do ser humano que só a cultura e a identidade transportam.

O pior ainda é dizer que a Europa é economia de mercado. Dizer que qualquer país que preencha os critérios de Copenhaga é um país europeu resulta de uma pobreza intelectual, de uma falácia lógica e de uma mendicidade espiritual sem nome. Porque assim sendo tanto os Estados Unidos como o Japão, Marrocos ou a Turquia serão países europeus. Porque demonstra que o que são condições fundamentais passam por ser essência. Ou seja, que a essência da Europa é meramente instrumental, condicional, e acessível por qualquer um. Que mesmo que apenas que formalmente se atinjam esses critérios, qualquer casca “europeia” (e que casca) é o que é a Europa. A Europa fica reduzida assim a uma casca.

Vejamos pois que imagem da Europa se desprende deste fetiche da economia do mercado. Se a Europa não tem uma economia de mercado mas é, então daqui decorre que a Europa é uma realidade meramente instrumental. E este resultado, se não é querido por todos os cultores dos critérios de Copenhaga, é expressamente querido e propagandeado pelos subservientes a políticas americanas que dizem que a Europa não é uma cultura, mas uma mera encruzilhada de culturas. A Europa não tem substância, substância é coisa que as outras culturas possuem: os turquemenos, os persas, os chineses e os turcos. Os europeus, esses reduzem-se a ser uma encruzilhada, um ponto de encontro. Vivem sem abrigo, ao sabor do clima e dos visitantes que passam nas três vias. A Europa é a trivialidade em suma.

O lugar comum diz que se quer uma economia de mercado e não uma sociedade de mercado. Seja. Cada um que escolha a sua fórmula. Mas assim como me parece infantil fazer de conta que a economia de mercado não existe e existirá sempre, sob uma ou outra forma, ou num ou noutro grau, parece-me igualmente infantil, e igualmente dogmatismo puro, esquecer o que pode ter de tarada uma economia de mercado deixada a si mesma ou apenas temperada pela democracia ou o “acquis communautaire”. Numa Europa construída com base apenas nestes critérios, apenas uma coisa está ausente: o ser humano. É um deserto em que existe de tudo, menos europeus, com a sua cultura, a sua maneira de viver, a sua civilização. É um mundo feito por mortos de inteligência para mortos de espírito. E em que só mortos de uma e outra coisa acreditam.




Alexandre Brandão da Veiga

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