terça-feira, 25 de janeiro de 2011

II. Mehmed efendi. Le Paradis des Infidèles. Un ambassadeur ottoman en France sous la Régence. La Découverte. Paris. 2004.

Um outro testemunho curioso é o de outro turco do século XVIII (pp. 237 ss.). Ibrahim müteferrika. Ibrahim deixa claro que os cristãos são para ele um só povo (p. 238), que se consola das suas antigas perdas (para o Islão) conquistando novos territórios (p. 238). “Os muçulmanos, seja por ódio da sua religião (cristã), seja por abominação dos seus usos e costumes, sempre testemunharam uma grande aversão pelo conhecimento dos negócios destes reis e potências destas execráveis nações (cristãs)” (pp. 238-239).

As frases são eloquentes do imenso espírito de tolerância e amor que tiveram desde sempre os turcos pela Europa. Repare-se que se trata de um pró-europeu, um dos primeiros turcos a sê-lo, favorável a que se passe do mero desprezo à imitação.

O argumentário de Ibrahim é simples: devemos reconhecer a superioridade técnica da Europa e parasitá-la para melhor vencermos politicamente. O argumento já se viu no Japão do século XIX. Os argumentos de aproximação em relação à Europa são por isso meramente tecnológicos e de poder, nada têm a ver com o fascínio cultural e muito menos com a identificação.

Tenho obviamente que salientar viários aspectos metodológicos:
1) Não é pela recolha de duas simples fontes que se pode fazer uma tese, quando muitas outras haverá.
2) Mas a verdade é que quem conhece as restantes fontes, em geral europeias, não chega a conclusões mais simpáticas.
3) Mas a verdade igualmente é que estas são particularmente significativas, na medida em que representam o início de ligação da cultura turca a uma Europa que pela primeira vez têm de reconhecer como válida por si mesma. Estão aqui os monumentos fundadores (além da diplomacia com casa de Áustria e, em muito menor grau, a Inglaterra) de uma relação com a Europa que se baseia no mimetismo pela primeira vez e não pela simples vontade de conquista. O cerco de Viena não tinha muito mais de três décadas na altura em que estes documentos são escritos.

Sobretudo, e mais importante que isso, percebo que haja quem tenha o desejo de integrar a Turquia. Desejos, cada um tem os seus, e não seria condenador de quem adorasse chibatar-se a si mesmo em casa. Aplaudi-lo-ia e achá-lo-ia merecedor de tal prazer.

Mas uma coisa é um desejo, outra a argumentação. Não esgoto e nem sequer começo aqui a minha. Apenas destruo a falsa aparência de argumentação de muitos. Os que pretendem usar uma História que sempre rejeitaram e só conhecem sob a versão de slogan, que nunca se defrontaram com fontes, mas apenas com torneiras. O pergaminho não foi feito para mão de canalizadores. E que vivem bem de mentiras desde que lhes ajudem os desejos. Desejar fica com cada qual. A falsidade espalha-se pelo mundo.






http://www.akadem.org/sommaire/themes/histoire/3/4/module_1680.php

http://www.stratisc.org/IHCC_3.htm

http://www.tropismes.be/books/content_detail.html?id=537


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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

I. Mehmed efendi. Le Paradis des Infidèles. Un ambassadeur ottoman en France sous la Régence. La Découverte. Paris. 2004.







O editor é conhecido pela sua simpatia pela Turquia e pela causa turca http://www.bibliomonde.net/pages/fiche-auteur.php3?id_auteur=272. O autor é um turco, ou melhor, um turquificado (não há diferença entre um e outro conceito, como se poderia demonstrar, o que deixo para outras núpcias). Não se pode por isso dizer que se trata de propaganda anti-turca.

Em 1720 é embaixador do sultão junto do rei de França. Pela primeira vez um embaixador turco em sentido próprio contacta o rei de França. Primeiro mito: o que afirma que os contactos entre a Europa e a Turquia desde sempre se fizeram ao mais alto nível. A França é o país com mais antiga aliança com a Turquia. O império da casa de Áustria o primeiro a receber uma embaixada de alto nível turca. A França o segundo. Numa perspectiva de longo prazo, os países que mais intensos e longos contactos tiveram com a Turquia (esquecendo obviamente os conquistados, destruídos ou pilhados, mas essa é mais uma vez outra demonstração) são exactamente mais são contra a sua natureza de país europeu.

Segundo lugar comum: a Turquia sempre fez parte da Europa e se sentiu parte da cultura europeia. O turco Mehmed bem pelo contrário mostra a absoluta alteridade entre a Europa e o império turco ainda em 1720: “ O mundo é o paraíso dos infiéis…” (p. 126).

Terceiro lugar comum que vemos na propaganda turca: tradicionalmente a mulher turca nunca sentiu o Islão como uma prisão, tendo tido sempre uma grande liberdade de movimentos. Que nos diz Mehmed? Que Paris não é maior que Constantinopla. Só o pode parecer porque as mulheres se passeiam nas ruas e por isso a cidade parece mais populosa do que é (p. 135). Coisa espantosa, esta das mulheres se passearem na rua! A libertação da mulher turca veio da Europa, assim como a da mulher libanesa, egípcia e japonesa.

Quarta afirmação temerária: a Turquia participou da revolução científica europeia. No entanto, Mehmed passeia-se por Paris espantado com os laboratórios, os observatórios astronómicos, os centros de investigação sem paralelo na sua cultura (v.g., pp. 147 ss.).

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? IV

“Fui destinada a espalhar o amor e não o ódio”. Cito de cor, e forçosamente de forma atrevida. Como muitas vezes ao longo da História, alguém com as suas forças humanas tacteia e descobre apenas vislumbres, como se esperasse uma revelação. Em muitos outros casos temos prenúncios estranhos e por vezes abusivamente interpretados de uma antecipação cristã. Séneca com o seu exame de consciência. A célebre écloga de Virgílio em que anuncia a criança que mais não é que o “puer aeternus”. O deus desconhecido de Atenas. Ou ainda a crónica de Senanchton que fala de um filho bem-amado de um deus que teria sido crucificado. Temos sempre de ver esses anúncios com luvas de pelica. É solução fácil recusá-los, tanto como aceitá-los sem mais.

Não é fruto de acaso que Antígona seja uma das grandes campeãs da diferenciação sentimental. Não antecede o cristianismo, no sentido em que tenha percebido todas as suas implicações, mas no sentido em que lhe percebeu a necessidade para ser possível uma expansão do ser humano. Os factos de não ser catalogável, nem suscitar essa tentação em grau bastante, de separar o espaço público do privado em nome de deuses inferiores, não políticos, e de ser legitimista estão ligados entre si.

Antígona não é contra a ordem instituída. Quer restabelecê-la na sua plena verdade. Os que vêm levar a lei à sua compleição e não à sua destruição são os verdadeiros revolucionários. São os que encaram de frente a complexidade. Ao contrário dos que querem destruir as leis, todas elas, que são apenas birrentos sem projecto próprio, amuados com o passado só porque existe e os limita, os revolucionários sabem que o passado, por existir, pode ser fonte de força e só prende quando é vivido de forma simplista.




Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? III

O segundo motivo de desconforto parece menos evidente. Porque no fundo Antígona opta pelo direito familiar (enterra um familiar morto) ao direito público (Jouanna viu-o bem). Em certo sentido, Antígona é uma das criadoras da separação entre o espaço público e o privado. O que diz é que o Estado tem limites na sua actuação na esfera privada. Nesse sentido seria antecessora da modernidade e pós-modernidade e deveria ser usada como referência permanente.

O problema é que não encontra melhor fundamento que a lei divina. Em acréscimo a lei dos deuses de baixo, que é respeitada até por Zeus. São os seus desuses inferiores que tutelam o espaço privado. Demasiada complexidade para a mente moderna. Invocar a lei divina e em acréscimo hierarquizá-la, mostrar que tem uma orgânica própria, algo de complexo demais para o suspiro pensativo do homem actual. Muito cansado anda ele sem pensar, quanto mais obrigá-lo a pensar.

Em terceiro lugar, é uma legitimista. Quem pretende ela enterrar? O irmão mais velho, Polinices. Em relação a Etéocles não mostra piedade. É certo que Creonte o quer enterrar com honras de Estado, por isso não se teria de preocupar com ele. Mas quando define o que seria um destino feliz fala no além com os seus pais e o seu irmão Polinices. De Etéocles nem uma palavra. Se bem virmos a explicação encontra-se em parte, não na tragédia com o nome desta heroína, mas no Édipo em Colona de Sófocles. Polinices é o irmão mais velho, é o legítimo herdeiro do trono. Etéocles é apenas um usurpador por não ter direito de primogenitura.

Antígona é uma legitimista. Os seus amores são ordenados, apesar de tudo. Uma coisa é a violação da ordem não consciente, a dos seus pais, que praticam incesto. Outra a consciente e voluntária, de usurpação. A clara diferença entre infracção voluntária e involuntária, tratada tecnicamente como essencial no direito, é esbatida numa moral algo frouxa que acha que a motivação explica mais que a vontade e que portanto a distância entre o voluntário e o involuntário, e as fronteiras da consciência, são factores menores, com limites esbatidos.

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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? II

Ao contrário de Electra, Jocasta ou Édipo, não se inventou complexo com o seu nome. Já seria algo mau que Freud tivesse usado a metáfora e não chamasse a atenção para o facto de ser uma metáfora. Nenhuma destas personagens adere aos complexos que ele descreve. Nem Édipo queria ir para a cama com a mãe, nem matar o pai, nem Jocasta queria ir para a cama com o filho. E nem sequer Jocasta tinha esse medo, e Édipo, que teve esse medo, fez tudo o que podia para não correr esse perigo.

Mas que Freud recorra aos conhecimentos filológicos do seu tempo e não os use plenamente já seria mau. Subtrai das personagens uma metáfora e não contribui assim em nada para a compreensão dos gregos nesta matéria. E lançou um equívoco, importante, mas algo pouco eficaz no mundo (quantos homens com impotência provocada pela diabetes tiveram de perder vinte anos da vida em psicanálise a tentar convencer-se que afinal a sua impotência se deveria a quererem ir para a cama com uma mãe que nunca desejaram, por exemplo?). Muito mais grave é que os seus apaniguados repitam escolasticamente as suas como verdades absolutas.

Sobra-nos pouco de Sófocles, apenas sete peças completas das mais de cem que ele terá feito. Sobram-nos apenas três tragediógrafos com peças completas, mas apenas escolhos da maioria delas. E estes três são apenas uma gota num oceano de criadores. É por isso quase impossível retirar ideias gerais justas sobre o que seja a cultura grega nesta sede.

Mas, mais importante que isso para a nossa época, é a necessidade de catalogação que a tem, obsessiva, tanto quanto se diz livre de preconceitos. São duas vertentes de uma mesma moeda.

Antígona não tem um complexo que a identifique e por isso é pouco manipulável. Ama o seu pai e irmão como pai apenas. É-lhe fiel. Continua fiel à mãe e ao irmão mais velho Polinices. Despreza a sua irmã Ismene e o seu irmão Etéocles. Enfim, ama e odeia sem se poder estabelecer um padrão rígido que explique esse amor e desamor de modo definitivo e catalogável. Ama e odeia como qualquer ser humano, o que as teorias mecânicas não admitem.

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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? I








Antígona pode estar na moda entre os intelectuais por mais um ou outro livro que a refira, mas a verdade é que é pouco citada, e sobretudo pensada, no espaço público. Em grande medida isto acontece pela profunda incultura clássica, em suma, incultura, da nossa época. Mas, apesar de tudo, algumas figuras e expressões ainda surgem. Édipo e Aquiles ainda oferecem uns dramas ou calcanhares ao mundo visível.

Já Antígona por sua vez anda muito calada. Não é a única. Efigénia, como as múltiplas faces da sua história, mereceria mais atenção. Dejanira das “Traquinianas” de Sófocles ou Medeia mereceriam bem mais atenção. Filoctetes ou Neoptolemo poderiam ser mais estudados. Seja, fiquemo-nos por Antígona, até porque aparece alvo de uma atenção um pouco maior de momento.

Porque é pouco usada como referência? É que Antígona suscita três grandes desconfortos na época actual. Não tem complexo com o seu nome, invoca a lei divina e é uma legitimista.

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