No Gesù
Não tenho por hábito descrever episódios da minha vida pessoal. Não por a achar desinteressante mas suspeito que não o será para mim tanto quanto o poderá ser para os outros. Mas de vez em quando podemos abrir excepções, porque em boa verdade não é de nós que falamos.
Gosto particularmente de Roma. Por mais razões que as que podem ser vertidas num texto curto. É das raras cidades onde se pode ir pobre e rico, só e acompanhado, habituada que está eremitas e imperadores. As cidades burguesas têm os seus fascínios, mas apenas se fruem plenamente quando se tem dinheiro e se vai em boa companhia. Roma é ao mesmo tempo popular e aristocrática.
O turista comum encontra em Roma locais extraordinários. Mas tive a sorte de conhecer alguns locais que não estão ao acesso do turista comum e apenas me posso sentir grato por isso. Um deles foi o Gesù.
Centro histórico dos jesuítas, mas isso qualquer turista sabe. Coisa diferente é conhecer o ambiente que nele se vive. E muitos são os aspectos que impressionam de forma permanente quem teve o privilégio (a palavra não é forte) de o visitar.
Em primeiro lugar tem um sabor particular encontramo-nos a falar em sala cujas paredes têm frescos de Andrea del Pozzo ou retratos de Matteo Ricci. Ou ver o quarto de Santo Inácio de Loyola que é mantido com uma intimidade reverenciosa, sem idolatria. Mistura de riqueza e austeridade a que os jesuítas nos habituaram.
A biblioteca é evidentemente impressionante em muitos aspectos. Pela primeira vez encontrei a Patrologia Latina e a Grega do Migne em edição completa. Mas também o raro Tixeront, que poucos coleccionadores se podem orgulhar de ter.
Quando entrei na biblioteca a primeira coisa que me mostraram foi um corão na língua original aberto. Estava a ser estudado por um dos alunos.
Quem me acompanhava disse: como vês aqui estuda-se o corão.
Eu apenas respondi: que surpresa, eu sei que foram os jesuítas quem abriu a cultura europeia ao mundo.
Em boa verdade fui injusto, porque tendo sido a Europa a fazê-lo seria mais correcto dizer que foram os jesuítas que abriram a cultura do mundo ao mundo. Não seria de surpreender ver jesuítas a estudar o corão, os Vedas ou obras pali do budismo antigo. Como pessoas efectivamente cultas, os jesuítas não são multiculturais. Têm uma só cultura e não várias, porque vasta e profunda. Numa época em que impera a fraude intelectual é consolador ver gente que estuda com seriedade antes de opinar.
Mas de todos os episódios que se passaram no Gesù um impressionou-me mais que todos. Um amigo meu estava lá hospedado e por isso eu combinava encontrar-me com ele à porta do Gesù. Ele várias vezes tinha dito que eu batesse à porta mas sempre preferi não o fazer. É casa de estudo e de oração e por isso sempre preferi não os incomodar.
Uma das vezes que estava à espera à porta, um conjunto de cinco alunos do Gesù entrou. Não me conheciam de parte nenhuma. Presumiram que eu estaria à espera de alguém que lá vivesse e nem me perguntaram se eu esperava alguém do Gesù. Convidaram-me imediatamente para entrar com um sorriso nos lábios. E insistiram. Eu agradeci e disse que esperava lá fora.
O episódio é curto e parece ser pouco significativo. Mas foi das experiências mais acolhedoras que tive de Roma. Um estranho que nunca se viu, presume-se que é benevolente. Convida-se para nossa casa sem perguntar quem é e ao que vem. Não só na nossa casa, mas numa casa conhecida pela sua discreção e recolhimento. E recebido com um sorriso.
Quando vejo os bem pensantes falar de abertura ao mundo, aos outros (essa entidade impessoal) e a outras culturas, lembro-me com frequência desse episódio no Gesû. Do privilégio de ter entrado e do privilégio de, mesmo estando à porta, ser bem recebido.
Alexandre Brandão da Veiga
Gosto particularmente de Roma. Por mais razões que as que podem ser vertidas num texto curto. É das raras cidades onde se pode ir pobre e rico, só e acompanhado, habituada que está eremitas e imperadores. As cidades burguesas têm os seus fascínios, mas apenas se fruem plenamente quando se tem dinheiro e se vai em boa companhia. Roma é ao mesmo tempo popular e aristocrática.
O turista comum encontra em Roma locais extraordinários. Mas tive a sorte de conhecer alguns locais que não estão ao acesso do turista comum e apenas me posso sentir grato por isso. Um deles foi o Gesù.
Centro histórico dos jesuítas, mas isso qualquer turista sabe. Coisa diferente é conhecer o ambiente que nele se vive. E muitos são os aspectos que impressionam de forma permanente quem teve o privilégio (a palavra não é forte) de o visitar.
Em primeiro lugar tem um sabor particular encontramo-nos a falar em sala cujas paredes têm frescos de Andrea del Pozzo ou retratos de Matteo Ricci. Ou ver o quarto de Santo Inácio de Loyola que é mantido com uma intimidade reverenciosa, sem idolatria. Mistura de riqueza e austeridade a que os jesuítas nos habituaram.
A biblioteca é evidentemente impressionante em muitos aspectos. Pela primeira vez encontrei a Patrologia Latina e a Grega do Migne em edição completa. Mas também o raro Tixeront, que poucos coleccionadores se podem orgulhar de ter.
Quando entrei na biblioteca a primeira coisa que me mostraram foi um corão na língua original aberto. Estava a ser estudado por um dos alunos.
Quem me acompanhava disse: como vês aqui estuda-se o corão.
Eu apenas respondi: que surpresa, eu sei que foram os jesuítas quem abriu a cultura europeia ao mundo.
Em boa verdade fui injusto, porque tendo sido a Europa a fazê-lo seria mais correcto dizer que foram os jesuítas que abriram a cultura do mundo ao mundo. Não seria de surpreender ver jesuítas a estudar o corão, os Vedas ou obras pali do budismo antigo. Como pessoas efectivamente cultas, os jesuítas não são multiculturais. Têm uma só cultura e não várias, porque vasta e profunda. Numa época em que impera a fraude intelectual é consolador ver gente que estuda com seriedade antes de opinar.
Mas de todos os episódios que se passaram no Gesù um impressionou-me mais que todos. Um amigo meu estava lá hospedado e por isso eu combinava encontrar-me com ele à porta do Gesù. Ele várias vezes tinha dito que eu batesse à porta mas sempre preferi não o fazer. É casa de estudo e de oração e por isso sempre preferi não os incomodar.
Uma das vezes que estava à espera à porta, um conjunto de cinco alunos do Gesù entrou. Não me conheciam de parte nenhuma. Presumiram que eu estaria à espera de alguém que lá vivesse e nem me perguntaram se eu esperava alguém do Gesù. Convidaram-me imediatamente para entrar com um sorriso nos lábios. E insistiram. Eu agradeci e disse que esperava lá fora.
O episódio é curto e parece ser pouco significativo. Mas foi das experiências mais acolhedoras que tive de Roma. Um estranho que nunca se viu, presume-se que é benevolente. Convida-se para nossa casa sem perguntar quem é e ao que vem. Não só na nossa casa, mas numa casa conhecida pela sua discreção e recolhimento. E recebido com um sorriso.
Quando vejo os bem pensantes falar de abertura ao mundo, aos outros (essa entidade impessoal) e a outras culturas, lembro-me com frequência desse episódio no Gesû. Do privilégio de ter entrado e do privilégio de, mesmo estando à porta, ser bem recebido.
Alexandre Brandão da Veiga
3 comentários:
Obrigado por partilhar connosco, a sua - gratidão.
Belo texto!
A av. de Roma também não é má.
Alexandre, uma amiga que navega por estas páginas chamou-me a atenção para este texto. Nem queria acreditar... Foi com emoção que o li. Há quanto tempo?
O Gesù está mais bonito, foi pintado e a igreja está esplendorosa. Estive lá em Setembro. És sempre benvindo!
Um abraço
António
PS- Agora estou a viver em Lisboa, noutra biblioteca. Gostaria de retomar contacto contigo.
Aqui fica o meu e-mail.
trigueiros@gmail.com
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