domingo, 23 de dezembro de 2007

Laicidade positiva, em nome das raízes cristãs


Cónego honorário de São João de Latrão, Nicolas Sarcozy recebe o legado que remonta a Henrique IV. Em Roma, há dias, em plena cerimónia de consagração, recordou o baptismo de Clóvis e as profundas raízes cristãs de França. E fê-lo para afirmar, nesse quadro, a necessidade de uma laicidade positiva.
Muito marcada pelo sentimento anti-clerical, a laicidade francesa, embora assente na proclamação da liberdade, da tolerância e da neutralidade, assentou em incompreensão e sofrimento. Como é sabido, as relações entre o Estado e a Igreja, antes e depois da lei de 1905, foram um palco privilegiado de múltiplas tensões. A influência do jacobinismo manteve-se poderosa. E a desconfiança permanece até hoje.
Mas Sarcozy apela, agora, a uma laicidade positiva que, sem pôr em causa a liberdade de pensar, a liberdade de crer e de não crer, recuse ver as religiões como um perigo, reconhecendo-as antes como um trunfo. Uma vantagem objectiva para o diálogo com o mundo e a construção da paz. Para tanto, aos católicos, especificamente, pediu militância: convicção, coragem, generosidade e esperança.
O ponto de Sarcozy não é coisa pouca (os mais atentos recordam, certamente, a sua não muito longínqua controvérsia com Chirac e de Villepin – estes, herdeiros mais ortodoxos dos velhos princípios do laicismo republicano francês). Recém-eleito, empreende o caminho da reconciliação. Com ele, a laicidade não implicará a negação das raízes cristãs que indelevelmente moldaram a história e a cultura francesas. Porque, nas suas próprias palavras, “arrancar a raiz é perder significado, enfraquecer o cimento da identidade nacional e secar ainda mais as relações sociais que têm tanta necessidade de símbolos de memória”.
Por cá, em tempo de tantos e tão lamentáveis equívocos, talvez valha a pena lembrar que nascemos da cruzada de um conde borgonhês, que chegou ao extremo da Europa em nome da fé cristã. Um conde que aqui teve um filho que o Papa viria a reconhecer rei. E lembrar que, depois disso, para o bem e para o mal, foram quase 900 anos de laços profundos que marcaram os costumes, os valores, a cultura, as artes, a arquitectura, a paisagem.

3 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Cara Sofia, já estava escrito, quando vi o seu post. Deixe-me juntar este texto como adenda ao seu post, tantos são os pontos de acordo. Aí vai.
Podia ter sido só uma cerimónia para uns “happy few” de báculo e sotaina. O discurso de Nicholas Sarkozy deu-lhe repercussão política e cultural. Pouca conversa e vamos aos factos.
O Papado confere o título simbólico de Cónego de honra da Basílica da São João de Latrão, em Roma, ao mais alto representante do estado francês no século XVI. Sarkozy, por inerência, veio receber essa honra e dignificou o acto com um discurso claro e corajoso, muitos furos acima do “European pudding” em que se transformou grande parte do pensamento da União.
Sem equívocos, Sarkozy assumiu as raízes cristãs e católicas da identidade cultural e nacional da França. Sublinhou a contribuição moral e espiritual que o cristianismo trouxe à França e, também, a França ao cristianismo. Mostrou que essa contribuição tem dimensão literária, artística e cultural.
O presidente francês, com apreciável elegância, foi frontal e disse aos cardeais e bispos que valorizava o papel do laicismo, não pondo em causa a lei da separação do Estado e da Igreja de 1905. Mas também não escamoteou o cortejo de injustiças que a sua aplicação, num quadro de anti-clericalismo e de intolerância, trouxe aos católicos. Sarkozy não propõe uma vígula de recuo à lei, invocando inclusivamente a necessidade de proteger os não crentes do proselitismo dos crentes, o que não o impede de sugerir que à França de hoje faz falta uma laicidade positiva que não desminta os factos históricos e não negue a contribuição dos cristãos e dos católicos, recalcando um passado que o presidente francês entende como meritório e constitutivo da identidade francesa.
Sarkozy foi mais longe e fez um elogio ao papel da religião, quer como resposta à aspiração mais profunda da humanidade que é a busca de uma dimensão do sublime e de um sentido para a vida, quer na acção prática que o clero e os leigos desenvolvem na sociedade francesa, seja em acções de caridade e de formação espiritual e cultural, seja na defesa dos direitos do homem e da dignidade humana e no consolo dos que mais precisam. Em suma, para Sarkozy, presidente de uma República laica, a religião não é um perigo, mas sim um trunfo para responder, através da esperança, ao deserto espiritual de grande parte da vida contemporânea.
Por tudo isto que a mim, agnóstico e laico, me parece lúcido e razoável, faço votos de que, a breve trecho, Sarkozy consiga transmitir aos burocratas europeus que são essas também as raízes da Europa e que inscrevê-las nos documentos fundamentais da União é mais um acto cultural e filosófico do que um “acto político”.

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Não posso concordar mais com os dois. Mas isso só demonstra o que eu tentei dizer há uns tempos atrás quando mostrei que Sarkozy não é a supremacia do fazer, mas há uma teoria por detrás. E um balanço de décadas do pensamento crítico da modernidade entendida de forma primária.

http://geracaode60.blogspot.com/2007/07/i-sarkozy-populista.html


http://geracaode60.blogspot.com/2007/07/ii-sarkozy-populista.html

http://geracaode60.blogspot.com/2007/07/iii-sarkozy-populista.html

Inez Dentinho disse...

Divorciado, amigo de expôr as mais recentes conquistas, repetindo as virtudes da laicidade - escusava de elogiar a lei de 1905 que, entre outras variantes, tantos estragos nos trouxe à Lei da Separação de 1911 - Sarkozy torna-se no maior aliado da Igreja Católica.
Cumprindo os escritos dos Evangelhos, há na Igreja um fortíssimo fraco pelos que recusam a obediência e o sacrifício impostos pela exigência da Fé, todos os dias.
Na parábola do filho pródigo, não se sabe se o filho mais velho entra na festa a convite do Pai. Garante-se apenas que o mais novo é recebido com pompa, apesar ou por causa do desvio.
Combate-se assim o fariseísmo, promove-se o perdão, o regresso à casa do Pai, o amor.
Hoje, como ontem, a Igreja desfaz nos seus filhos para aclamar como heróis os que nela desfizeram ou não fizeram.
Mas, numa época em que a obediência, a hierarquia e o sacrifício não estão na ordem do dia a Igreja corre o risco de ter entre si apenas as sobras heróicas dos súbitos justiceiros.