domingo, 17 de junho de 2007

V. L’innocente. Visconti

Quem é o inocente? A primeira resposta é de que se trata da sétima personagem: da criança que vai morrer. É da matança dos inocentes que se trata. Mas em boa verdade o primeiro e único inocente é Tullio, o marido, o filho, o amante manipulador. Ele viu-se sempre como inocente, destituído de um pecado original de que não quer participar e por isso recusa a existência. Assim fazendo, recusa a existência de todos os que o rodeiam. São apenas peças para o seu projecto de fruição e curiosidade. Nada mais. Ele vê-se como inocente, como o único inocente nessa história. Desfiando o rosário das suas teorias para justificar o que no fundo é a sua falta de presença no mundo. Tullio é um exemplar, mais um, dos múltiplos povos, pessoas e grupos que vivem propalando a sua inocência perante o mundo, espécie sempre perigosa para os outros.

No fundo, o final é feliz, porque consequente. Tullio acaba por se suicidar porque percebe que a inocência não é nada. Sendo a sua vida nada, essa é a única consequência lógica a retirar. Tullio suicida-se por coerência, e só não pode ser aplaudido por isso porque deixou um rasto de destruição à sua volta. Digo que é feliz, mas não sou justo. A cena mais triste é a final, em que a condessa Raffo desaparece na paisagem. Imagem sublime da mais absoluta perda de esperança, imensa tristeza a de ver alguém que mais que outro qualquer gostaria de a ter. O maior suicídio, este injusto, é o da condessa Raffo. Essa nem teve a possibilidade de pôr termo à vida. Apenas a deixou diluir-se no anonimato, num jardim de uma beleza imponente, plácida e tenebrosa. Aqui se mostra que Seurat está bem além de Munch, e que o expressionismo é apenas brincadeira de crianças ao pé da placidez enganadora do puntilhismo. O que se passa nesse jardim está bem além do desespero. É beleza pura. Apenas.

Visconti é frequentemente acusado de estetismo. Se estetismo é fazer coisas belas, bem vindo seja ele. Entre o grosseiro e o belo a minha escolha foi sempre evidente. É muito fácil fazer grosserias, a beleza poucos a podem criar. Mas o que se opõe ao estético não é a verdade. Apenas o desnudamento. E o desnudamento público foge geralmente à verdade. Conduz à pose. Nada mais.

Cada vez que queremos beber de uma verdade gritante não é aos gritos que a percebemos. Gritando apenas a afastamos ou apenas ouvimos o nosso eco. O velamento permanente que existe no filme (até nisso a época foi bem escolhida, em que as mulheres usavam véus faciais) é sinal de uma suspeita, de um indício, o que é em geral o que conseguimos apanhar de mais próximo da verdade. Não se chamara de “O Inocente”, o filme deveria chamar-se “O Véu”. Mas isso seria revelar demasiado a verdade. O Inocente mostra até que ponto é sob o discurso da mentira gritante que a verdade mais simples se descobre. Mesmo que para isso tenha de estar velada.

http://www.imdb.com/title/tt0074686/
http://www.luchinovisconti.net/visconti_al/illusioni_innocente.htm
http://home.att.net/~digitalworldtrade/web/visconti.html
http://www.arqnet.pt/portal/biografias/visconti.html
http://www.europaeuropa.pl/po/fiszka.php?id=1089


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