sábado, 16 de junho de 2007

IV. L’innocente. Visconti

O curioso é que o facto significativo se encontra na morte da criança em plena noite de Natal. Não é por acaso. É bem pelo contrário a chave de todo o filme. Todo o filme é uma anti-Natividade.

Tullio é um São José que se fez Herodes. Giuliana a sua mulher, a que teve como obra de redenção a poesia e o mero sentimento, tendo-se reduzido na sua vida a este projecto por ter previamente aceitado as regras estéreis do marido, as da tirânica “abertura” da relação. O seu destino não acaba na dádiva de si, mas no mero ódio. A mãe é uma Sant’Ana que não percebe o sentido do sacrifício que acaba de viver, duplamente irónico, porque não é seu neto quem morre, e porque não serviu de nada tal nascimento. O irmão é Pilatos, que lava as suas mãos dos problemas. Sabe que algures há uma indignidade, mas prefere não agir. E a condessa Raffo é a Maria Madalena e mulher pecadora, mas no fundo a única que ama a dignidade profundamente. Na cena final é ela quem aparece. Fundindo-se com a paisagem, em suma, com a natureza. Porquê? Porque numa história sem esperança apenas o apagamento na paisagem constitui final possível.

Tullio é loquaz até ao enfado. Fala para não ter de comunicar. E fala. Não em situação, mas sempre em nome de uma teoria. Sempre que está com as três mulheres da sua vida ou desfia projectos que sabe não ir realizar (ir a Paris com a amante, ir viver numa villa com a mulher próximo da sua mãe) ou então: enuncia teorias. Tullio usa as teorias, ou melhor a sua teoria, confrangedoramente banal, para não ter de comunicar, mas sobretudo para não ter de estar presente, de enfrentar a sua situação como vivente no momento em que vive.

E qual é a teoria de Tullio? A mais fácil de todas: o primado do prazer, da curiosidade, da carnalidade. Do presente sensível. Estranho que a observação não tenha sido feita, mas todos os materialismos da carnalidade são sempre soluções fáceis. Isto porque a base de locução não é comensurável com o seu objecto. O espírito afirma que a matéria, apenas ela, existe. O objecto não pode por isso sindicar a teoria. Ficciona-se que a carne o espírito se opõem, e vive-se no desejo que nunca se encontrem. Esta teorização da carnalidade como fundante do mundo é assim sempre uma forma de superstição, de segregação e de demissão da sindicância.

Feita de mitos mal estruturados, de vazios mal explicados, gera apenas um fruto consequente: o homem loquaz. Ao ponto de ser incapaz de ter sexo com uma mulher sem a inundar de teorias. Ou seja, de mais um véu que se lança à realidade, esperando que ela desapareça.

No fundo, Tullio apenas vive esperando que tudo desapareça. A existência do mundo é para ele mera teimosia, e teimosia vertida contra ele. O mundo torna-se conspiração. Onde não se participa apenas se acredita haver urdimento.

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