segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Grothendieck La Clef des Songes ou Dialogue avec le Bon Dieu I

 

 

Na comunidade científica francesa, quando se fala de Grothendieck, há sempre um lugar comum: ele teria sentido uma atracção pela meditação budista em certa altura da sua vida. Em conferências, ninguém se refere à sua relação com o cristianismo, sendo certo que é filho de um judeu, e de uma cristã, e tendo vivido anos da sua infância junto de uma família fervorosamente cristã. Esta ligação entre meditação e budismo é infelizmente o resultado de uma crassa ignorância. A separação entre humanidades e ciências tem custos para ambas as partes. Que a ideia de meditação da morte, por exemplo, se encontre em Anaxágoras e Séneca, e que haja meditação cristã, na mística oriental e ortodoxa, é algo que escapa à apreciação destes comentadores.

Para que não haja análises apressadas da questão, é preciso dividir o tema em varias partes:

a)      Vou reduzir a análise à CDS (GROTHENDIECK, Alexandre, La Clef des Songes ou Dialogue avec le Bon Dieu, s.ed., s.l., s.d.).

b)      Tentarei ver quantas referências há a Cristo e cristianismo, Buda e budismo, judeus e judaísmo, Maomé e islão.

c)      De seguida tentarei ver quais os conteúdos, o que diz sobre cada um destes temas.

d)      A comparação entre Freud e Jung pode também permitir alguns resultados.

e)      A análise das obras de alguns autores cristãos (ou clássicos) como os de Mestre Erckhart pode dar também alguns indícios.

f)       E, falando nós de religião, analisarei a sua obra numa perspectiva teológica.

Já sabemos que nunca há análises completas. Mas sempre é melhor que as haja com algum cuidado que apressadas.

 

Redução à CDS

Reduzir a análise à CDS tem uma razão muito prática. Não é a minha função estudar toda a obra de Grothendieck. Cabe a outros fazê-lo. Escolhi aquela que será a última ou das últimas obras de Grothendieck, e que poderá dar algumas luzes sobre o problema. Tenho de salientar desde já que qualquer análise e citação desta obra levanta um problema de edição. Não está editada, tem gralhas, e por isso qualquer análise e citação do texto é em parte a sua edição. Deixo os puristas ficarem chocados com este trabalho. Saliento que os sublinhados são meus e não do Autor.

Quando se refere a CDS, todos se esquecem de referir o título completo, que tem a expressão «Dialogue avec le Bon Dieu”. A expressão é cristã, melhor, católica, e muito latina. Antes de analisarmos o conteúdo da obra não podemos excluir que haja intentos irónicos. Mas o tema está evidente. É um tema religioso. E em conceitos católicos.

 

Referências a religiões

 

 

Nº de vezes que aparece

Percentagens

Jésus

235

37,01%

Christ (sem Jésus)

46

7,24%

Christianisme

22

3,46%

Chrétien

169

26,61%

Total Cristianismo

472

74,33%

Moïse

0

0,00%

Judaïsme

0

0,00%

Abraham

0

0,00%

Juif

17

2,68%

Juive

9

1,42%

Hébreu

0

0,00%

Judaïque

4

0,63%

Total Judaísmo

30

4,72%

Bouddha

95

14,96%

Bouddhisme

31

4,88%

Bodhisattva

2

0,31%

Total Budismo

128

20,16%

Mahomet

0

0,00%

Islam

3

0,47%

Islamique

0

0,00%

Musulman

2

0,31%

Total islão

5

0,79%

Total religiões supra

635

100,00%

 

Pode-se dizer que esta escolha de palavras é arbitrária. Que deveria procurar também «samsara» ou «karma» ou «dharma» que são também conceitos budistas. A problema é que estes conceitos de origem são hindus. Como distinguir o uso hindu do budista de forma cursiva? Da mesma maneira teria de procurar «pessoa», «substância» ou «amor» que são conceitos cristãos e nunca um budista usaria senão para demonstrar a sua falta de pertinência. Para colocar «bonzo» teria de procurar também «padre», «bispo». E quando surgisse «monge» ou «mestre» teria de distinguir o monge cristão do budista e o católico Mestre Erckhart teria de ser distinguido do mestre «zen». «Christ (sem Jésus)» dá 72-22-4=46. Das 72 vezes em que aparece «Christ», retirei «Jesus le Christ» (2 vezes,) Jésus-Christ (2 vezes) e as 22 vezes em que aparece «christianisme». Abraham aparece apenas na «Lettre à Karl Abraham» na p. N534.

Alguns resultados são curiosos. Um autor que morre em 2014, com uma França já largamente islamizada, em que os jornalistas (mesmo que se arroguem outros títulos) referem a fundamental importância do islão para cultura europeia e francesa, dá uma importância ao islão que corresponde apenas a menos de 1% da sua atenção. Quem procura ideias pela sua qualidade e não está fascinado com o poder puro e simples, afinal não dá importância nenhuma ao islão. Um autor filho de pai judeu, embora descrente, dá ao judaísmo um papel inferior a 5% da sua atenção. Um homem tão fascinado pelo budismo, dá afinal um papel 3,7 vezes inferior na sua atenção ao budismo que o que dá ao cristianismo. Quase três quartos das suas referências são feitas ao cristianismo.

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