Grothendieck La Clef des Songes IV
Referências a autores cristãos e clássicos
«Maître Eckehart”
(é assim que escreve, em vez de Eckhart, mas há muitas grafias admissíveis) aparece
5 vezes (pp. N21, N26, N97, N158, N286). Santa Teresa de Ávila 12 vezes (pp. N18,
N21, N26, N29, N28 – estou a respeitar a sequência efectiva das páginas, ao
contrário do que parece -, N96, N151, N171, N286), São João da Cruz 3 vezes
(pp. N21, N57, N286). Também aparece Santo Agostinho (pp. 143, N21), não aparece
uma única referência a São Tomás de Aquino, a Santo Anselmo, e nem sequer o enfant
terrible da escolástica, Abelardo, é referido. Não encontro referências a Padres
gregos, nem sequer, o que seria de esperar, ao Pseudo-Dionísio. Aristóteles,
Homero, Ésquilo, Eurípides, Píndaro, Hesíodo, Aristófanes, não são nunca
referidos, Platão é referido três vezes, uma por referência a Santo Agostinho
(p. 143), outra por referência ao problema do erótico e a Freud (p. N669), e
uma num sentido figurado de «platónico» (p. N684). Sófocles é citado por
referência a Freud : «Dans la tragédie grecque (de
Sophocle), Œdipe tue son père et épouse sa Mère, quasiment par mégarde (n'ayant
pas eu le plaisir de connaitre sa mère ni son père).Sans doute Freud devait-il
penser que dans le sens sous-entendu, "inconscient" de la tragédie, Œdipe
n'était pas si ignorant que ça de ce qu'il faisait. Toujours est-il que Freud
s'est inspiré de la légende d’Œdipe pour appeler "complexe d'Œdipe"
la conjonction, sous forme permanente, de deux désirs-force ou pulsion, le plus
souvent inconscients l'un et l'autre | 1°) Désir charnel pour le parent de sexe
opposé. | 2º) Pulsion antagoniste de rivalité vis-à-vis du parent de même sexe,
et (à la limite et pour faire bon poids) désir de le tuer. | C'est ce complexe,
selon Freud, qui serait à l'origine de la plupart (voire de toutes ?) les
névroses psychiques, dont les symptômes représenteraient une satisfaction
symbolique très détournée, et toujours inconsciente, des désirs refoulés (de
possession sexuelle d'un des parents, de trépas violent de l'autre).» (p. N686).
Entre os romanos Virgílio nunca é citado, o mesmo se passa com Horácio, Juvenal,
Marcial, Lucrécio, Séneca, Cícero.
Estes
traços permitem-nos tirar o retrato de Grothendieck nesta área. O facto de haver
autores a serem omitidos não significa que alguém os ignore. O estilo de confissão
pessoal que atravessa a CDS é perfeitamente compatível com a omissão, ou a referência
descontraída. A verdade é que, pelos seus conceitos, percebe-se que Grothendieck
tem grandes falhas de cultura humanística. Desconhece a cultura clássica, a patrística,
a escolástica. Que prefira os místicos revela a sua tendência New Age
para uma religião não institucional, não percebendo que os místicos que refere
estavam muito alegremente integrados na Instituição por excelência, a Igreja
Católica. Que não refira um místico grego, ou em geral ortodoxo, prova que a
sua visão do mundo estava limitada pelo Ocidente da sua época. Como se revela
em páginas antes citadas, tentou por si mesmo ganhar uma cultura teológica que
não tinha. E fez o melhor que sabia com ela. Mas os perigos para um cientista
da falta de cultura humanística, já Poincaré tinha avisado para eles, e muito
bem. Grothendieck é apenas mais um exemplo disso.
Visão teológica
Numa
perspectiva teológica Grothendieck mostra não perceber que Jesus e a
reencarnação são incompatíveis (pp. 57, N68, N182, N201, N536, N539, N547, N548;
por exemplo «Je suis persuadé que d'ici quelques siècles ou quelques
millénaires, beaucoup d'hommes seront arrivés à un état de conscience
assez élevé pour avoir accès (ne serait-ce que partiellement) à la mémoire de
leurs incarnations passées, comme c’était d'ailleurs le cas (selon la
tradition) de Bouddha.» (p.
N138)). Não há Jesus sem incarnação e sem ressurreição dos corpos. O que quer
dizer que este corpo concreto que temos é o único que temos prometido, e que o
ser humano não é apenas uma alma, em que o corpo seria um mero revestimento
descartável. Reduzir o evento crístico a uma fase nos estados de
consciência é também muito prova de que segue modas da sua época. Há, além
disso, comparações que o traem «J'avoue que je suis
loin d'y voir clair ! Si ce n'est que Jésus, lui (et avant lui Bouddha), a été
grand par l'un et par l'autre par l'amour, et par la liberté.» (p. N153). Amor
e liberdade não são conceitos budistas. É desconhecer profundamente o budismo
usar estes conceitos. Por isso, se Buda é enaltecido, é por ser… um cristão. De
forma menos intensa quanto fala da teoria salvadora do budismo, não é
igualmente muito correcto (p. N191). Há teorias de salvação não cristãs, e
muitas vezes as referi. Mas o budismo está longe de ser uma teoria salvadora,
porque isso seria pressupor que há algo a salvar. Se aqui não será exclusivamente
cristão, Grothendieck não sai do quadro mediterrânico que herdou… do
cristianismo. Também mostra que sob o ponto de vista escatológico padece de
alguma ingenuidade. «Les dispositions de Fujii Guruji
à l'égard du "Monde" se recouvrent avec celles de Nichiren. Celui-ci
se distançait des attitudes dominantes de son temps, o les gens avaient
tendance à projeter dans un "au-delà" idyllique leur nostalgie, au
sein d'une société violente et agitée, d'une vie paisible et heureuse. Il
insistait que le rôle de la religion n’est nullement d’inciter les
hommes à porter leurs espoirs vers un autre monde mythique, mais bien d'instaurer
un état d'harmonie entre les hommes au sein de la nation, et (ultimement) entre
les différentes nations elles-mêmes. Il s’agit en somme d'instaurer le
"Royaume de Dieu" sur terre pour reprendre l'expression évangélique),
au lieu de le rejeter au ciel. C'est surement là aussi la vision de Jésus,
comme celle de Bouddha, mais avec chez l'un et l'autre un accent plus grand sur
l'aspect individuel, le "Royaume de Dieu dans l'homme", plutôt que
collectif (le Royaume de Dieu dans la nation). C'est l'aspect collectif de l'avènement
du Royaume de Dieu qui est aussi surtout souligné dans trois parmi les quatre rêves
prophétiques qui me sont venus l'hiver dernier.» (p. N194). No
plano da História o cristão é duplamente enraizado, e por isso a ideia de um paraíso
na Terra no tempo histórico comum é sonho de bem intencionados, mas ignorantes
de História e de teologia. Também: «On y sent l'élan du
désir exalté de glorifier par tout son être Dieu (ou le Bouddha, ou le Créateur,
ou quelque autre nom qu'on Lui donne...), par de tels actes de dépassement de
soi-même et de ce que d'ordinaire on se sent humainement capable d'accomplir en
faisant don total de ce dépassement à Celui qu'on glorifie ainsi en
silence. Surement, ce qui rend possible un tel acte et qui lui donne tout son sens,
c'est la connaissance, chemin faisant, qu'on n'est pas seul à l'accomplir ; que
de quelque mystérieuse façon, Celui-là même que nous glorifions de toute
notre cœur et de tout notre être S'associe et participe à cet acte de
louange et d'amour.» (pp. N196-N197). Nenhum destes conceitos é budista,
pelo menos na sua versão original (Grothendieck, que tanto se queixa de a versão
original do budismo ter sido distorcida pelos seus discípulos). É budismo com
sabor cristão, adaptado ao palato cristão. E o sonho profético é um conceito de
Jung, que Freud nunca admitiria. «C’est l'amour
surement comme il émane d'êtres comme le Bouddha ou Jésus, et qui agit sur tous
ceux autour d'eux qui ne s'y ferment.» (p. N323).
No
fundo. é mais um dos casos da modernidade, de homens bem intencionados (Tolstoï
é um bom exemplo), que acabam num arianismo prático sem perceberem como isso contradiz
a mensagem de Jesus. Se Jesus é apenas um homem perfeito, é um mentiroso. É o
único silogismo válido. Porque teria de mentir sempre que se referia à Sua
relação com o Pai, e à Sua própria natureza. Um homem perfeito mentiroso é de
uma contradicção gritante. Mas Grothendieck não percebe o que Tolstoï não percebeu.
Que a sua fome de absoluto não pode ser saciada com ervinhas apanhadas nos
campos. Não há receitas, mas há métodos.
Já
vi mais de uma conferência (há poucas obras que estudem Grothendieck
propriamente dito) onde é comparado a Pascal. Seria um grande matemático, e um
grande escritor e pensador. Com o maior respeito que tenho por Grothendieck (se
não o tivesse, não o diria por mero pro forma) não é verdade. Grothendieck
tem verve. Pascal tem estilo. Uma mostra do estilo de Grothendieck: «Mais à la caserne c'est foutu, tout comme à l'église et au temple ou c'est
aussi foutu. Chez nous comme chez les autres, Occident ou Orient c'est tout
comme : le moral martial tout comme la religion, c'est foutu, foutu, foutu !
Gnôle du soldat, ou opium du fidèle tout s'use, s’évente, faisande, se
décompose, les belles ferveurs patriotardes comme les pieuses euphories à l'eau
de rose.»
(p. N522). Pascal dizia coisas bem mais percutantes sem perder o domínio soberano
da língua. Podia passear-se descontraidamente na paisagem sem precisar de
deixar um cheiro de grosseria. E Pascal tinha um profundo conhecimento de teologia
e filosofia. Ora, é precisamente o que falta a Grothendieck, um homem com uma fome
de absoluto, irritado à mínima manifestação de tartuferia, venha ela do
cristianismo ou dos orientais. Não teve a tempo a cultura humanística que lhe permitisse
enfrentar as questões com que se debate. Não sabia nem latim, em grego, não
tinha cultura clássica nem teológica. E, apesar de tudo, para falar de Deus, é
preciso conhecer o discurso sobre Deus. A teologia. O que tem de limitado tem
de comovente. Eu sou o primeiro a perceber o desespero de alguém que tenta ultrapassar
barreiras. Mas também os seus limites.
O
problema de Grothendieck não é o da sua sede de absoluto. É o de a sua sede ser
moral e desembocar na moral, sem sequer vislumbrar a possibilidade de ser um
problema ontológico com uma solução ontológica. É mais uma variante da nossa
época, da procura de assentar o mundo na moral para depois viver na frustração
de que assenta em pouca coisa. Em Grothendieck não há um único momento de
saciedade, nem uma luz que a ela se dirija, vive numa perpétua irritação, por
boas razões, a de ter exigência, e por más, por não conhecer nenhum caminho por
onde chegar a algum lado. Por isso, bem mais que ser um Pascal, é o seu
inverso. Pascal tinha sólida cultura clássica e cristã, actuava com facilidade
e profundeza num mundo a que pertencia. Grothendieck é mais um sintoma que um
autor. Sintoma de uma cultura amputada, separando as humanidades e as ciências,
de um mundo com mais possibilidades de vida que as europeias, cristãs, mas sem
instrumentos para as compreender. Um mundo coxo e fragmentado, em que mesmo os
maiores génios actuam tropegamente, porque no fundo lidam de forma infantil com
os problemas, quando a vida lhes exige perante eles o olhar de criança, mas o
estômago de um adulto.
Se
a religião é pessoal e intransmissível não se percebe porque escreve sobre ela,
ou porque lê sobre as experiências dos outros. Não percebeu que os textos
sagrados que leu, pode fazê-lo porque estes textos foram transmitidos por uma tradição,
através de instituições. Se tudo mais não fosse que experiências
pessoais incomunicáveis, ou apenas comunicáveis pessoalmente, não poderia saber
de experiências mais antigas que um século, porque o que sobra de forma
consistente, que não se deva a mero acaso, mantém-se graças a instituições. Se
estas não existissem, estaria dependente de se ter cruzado com um dos raros, ou
mesmo o único sótão, em que sobrariam os Evangelhos, e para sua sorte estariam
em grego, uma língua que ele não sabia ler. Grothendieck não pensou nisso, porque,
muito 68, não pensou que os instrumentos que lhe permitem contestar a tradição,
vêm eles mesmos de uma tradição, salvo se ele se entendesse o criador da língua
francesa e de todos os seus conceitos. A sua teologia é irrealista, porque os
instrumentos com que vê o mundo o são. A teologia mais uma vez revela o homem, sobretudo
o que não se quer revelar a si mesmo.
O
que é triste é ver um génio que o é banhar em tanta trivialidade. Membro banal
da geração de 60, não gosta, ou ao menos não se sente em casa no que é, sem
saber o que é, e não percebendo que a origem de todos os seus desconfortos
reside precisamente no facto de não saber o que é. Inelutavelmente cristão, e
tão inelutavelmente quanto se julga dele ser autónomo, julga-se capaz de ser
equidistante, quando não sabe medir as distâncias, porque não sabe onde está, e
não sabe onde os outros estão. Como a geração de 60, que levou ao extremo o
discurso de ódio à pequena burguesia, ódio de si, porque não eram aristocratas
mas precisamente pequenos burgueses, tem muitos julgamentos a fazer que são
reflexivos. E que só são certeiros com o preço de ele ser deles vítima.
É
conhecida a observação de Grothendieck perante Serres. Serres demostraria um teorema
como quem dá um muro numa noz e lhe parte a casca, revelando-lhe o núcleo,
Grothendieck demonstra envolvendo a questão num mar de abstracções até dissolver
o problema. Eis que Grothendieck recebe o próprio remédio. Grothendieck dá murros
no cristianismo e falha no alvo, assim como dá murros nas tradições orientais e
de novo falha. Em vez de o atacar directamente (não tenho nenhuma razão para
isso, a minha admiração é grande) fui envolvendo Grothendieck num mar de abstracções
onde é ele quem acaba por ser dissolvido.
ABV