terça-feira, 8 de março de 2022

Dois erros sobre Nietzsche I

 


 

Entre a população imperam acima de tudo dois erros sobre o pensamento de Nietzsche. São simples de enunciar:

a)     Nietzsche fala dos gregos;

b)    Nietzsche é anticristão.

Estão mais intimamente ligados do que parece. Por isso, carecem de análise comum.

Nietzsche não fala dos gregos. É evidente que nas proposições que ele enuncia, nos temas que apresenta, os gregos estão permanentemente presentes. Quando Nietzsche passa a ter prestígio como grande filósofo, até os filólogos helenistas começaram a citar a sua obra, a usar as suas categorias, a salientar a importância das suas análises, para a compreensão da Grécia.

Mas Nietzsche não fala dos gregos. O grande equívoco passa-se ainda durante a sua vida. Quando von Wilamowitz-Moellendorf, o que virá a ser chamado de príncipe dos filólogos, lê a sua «Origem da Tragédia», fica de tal forma horrorizado que faz uma diatribe contra a obra de Nietzsche. Este não tinha percebido nada sobre a origem da tragédia. Faz entretanto um pequeno livro sobre o que é a tragédia ática. O adjectivo «ática» não é inocente, querendo salientar que a tragédia é feita nesta parte da Grécia, não é um fenómeno grego geral na sua origem.

Passados uns anos, quando Nietzsche já estava morto e já tem grande prestígio, von Wilamowitz repensa a questão e redime Nietzsche. Diz: realmente, as críticas que fiz foram injustas, Nietzsche não está a falar dos gregos, mas de Wagner. E teve a arte de, homem inteligente e culto que era, de falhar no alvo. Mais uma vez.

Nietzsche não fala dos gregos. E não fala de Wagner. Nietzsche fala dele mesmo. É esse o seu génio e a sua originalidade.

Se bem virmos, o que é vista como a grande originalidade de Nietzsche está bem longe de o ser. Este apenas traz para o público em geral o que já era movimento comum na erudição clássica, desde pelo menos a Renascença, para muitos filólogos, tanto os primitivistas ingleses do século XVII, como no fim do século XVIII e início do XIX com Wolf e Humboldt. O lugar comum era simples: o apogeu da cultura grega está na sua poesia primitiva, é em Homero, Hesíodo, ou Píndaro na melhor das hipóteses, que está o seu auge. A filosofia, a via discursiva, é já um sinal de decadência, de amaneiramento.

Esta a teoria que eventualmente prevaleceria na escola de Pforta, em que Nietzsche estudou. Nenhuma originalidade. Admirar Nietzsche pelo que ele tem de escolar é um paradoxo não pequeno da nossa época. Ou talvez não tão grande assim, porque a nossa época gosta de escolásticas, desde que não se apresentem como tal. Das encobertas, das clandestinas. Porque a nossa época é escolástica, mas não gosta de dizer o seu nome.

A grande originalidade de Nietzsche é ser uma espécie de ritual do Graal, do ciclo do rei Artur. Talvez por isso ele detestasse o «Parsifal» de Wagner, porque o punha nu. O grande ciclo que põe a nu as várias camadas de que somos feitos nós os europeus.

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