quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Para que serve a tradição?

Como de costume apanho no espaço público frases que dizem muito mais que algum dia o seu locutor poderia imaginar. Uma adorável criatura com perfil de maçaneta, deputada nas suas horas, afirma: «Não gosto de tradições». Do que ela não gosta serve-lhe de critério para a vida, mas julga – temerário da sua parte – que tem de ser critério para a dos outros.
 
No que me respeita, nunca respeitei uma tradição apenas por o ser. Há tradições repugnantes, selváticas, medíocres. Nada na vida humana é destituído de grandeza, nada de degradação.
 
O que a pobre criatura, que em tempos defendeu que os chouriços pendurados eram uma tradição, tal como os crucifixos (o que ela associa a pendurezas diz algo das suas carências), não percebeu é que a tradição é algo de inelutável e, mesmo, para nosso contragosto, de positivo.
 
Vejamos.
 
«Fgtghhdjlan gdfdf ghhts nmmf». Ficou confortado o leitor com tal frase? Porque não? Talvez não a perceba? Pensemos porquê... Exactamente. Porque não se encontra na nossa tradição comum. Criei uma linguagem só minha e por isso nada do que digo é percebido pelo meu interlocutor. Sem tradição comum não é possível comunicação. Afinal, um infante português que fosse atirado para a China seria um fluente falante de chinês e nada saberia de português. Que mudou? Foi imerso numa tradição diversa.
 
Primeira conclusão, portanto: sem tradição não é possível comunicação.
 
Mas vamos mais longe. A pobre coitada usa telemóvel, computadores, vai à televisão (bem sei, o nível de acessos não é muito exigente). Não gosta de tradições? Então que não use nenhum destes meios técnicos, porque estes resultam de uma tradição milenar europeia de matemática, física, engenharia... Use o seu corpinho sempre que quiser transmitir uma mensagem e gargareje. Ande a pé, não use transportes, abdique de todos os meios técnicos, deixe de viver numa casa, e passe a viver nua (longe de nós para não sofremos do horror).
 
Segunda conclusão: a deputada em causa tem de usar as suas pernas e andar em pelota – para nosso horror.
 
Mas a verdade que que os conceitos que usa, mesmo que em modo menor, resultam de milhares de anos de pensamento, filosofia e teologia europeus. A ideia de contradição, de antecedentes, de causa e efeito, de congruência, de conceito, de conclusão... Nenhuma das ideias é tão óbvia quanto nos aparece. Muitas delas levaram milénios a estabelecer-se. Quando vemos a forma de pensar de Homero (e bem sabemos que o senhor – ou senhores – estava bem longe de ser burro) bem vemos como, mais que os seus valores, a sua forma de discursar sobre o mundo é muito distante da nossa. A sua tradução existe desdobramentos e contorções do discurso para que pelo menos algo do que ele disse nos seja perceptível.
 
Terceira conclusão. A nossa deputada que não gosta de tradições nada quer a ver com um discurso coerente e estruturado transmitindo um significado.
 
Lembro mais uma vez. Se há pessoa que se agasta com tradições só porque o são sou eu. Talvez por as conhecer melhor que a senhora deputada, bem sei dos seus podres (dos das tradições e dos da deputada, feliz anfibologia). Mas por isso mesmo sei como são inevitáveis indispensáveis e o que lhes devo.
 
A senhora deputada mostra em suma – sejamos conclusivos – que não quer comunicar, que apenas usa as suas pernas e se nos apresenta em pelota e que nada do que diz tem significado. Nova Eva primordial, teria sido destino bem diverso o da humanidade fora ela a original. Adão não a teria tocado, e teríamos um futuro sem pecado original, mas também sem humanidade.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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