Dogma e liberdade I
Assim como sou um fervoroso
admirador de Jung, não acho particularmente comestível a maioria dos seus seguidores.
O próprio Jung dizia que não era junguiano. E tirando talvez o caso de Marie-Louise
von Franz, que teve obra original e simultaneamente profundamente entendida no pensamento
de Jung, os esbirros de Jung parecem-me muitas vezes tão confrangedoramente destituídos
de bom senso, quando o seu patrono era dele dotado.
Uma das lengalengas da
nossa época é a de que o dogma limita a liberdade. Renasceu este meu agastamento
ao ler um livro de um tal Pollikoff sobre a obra de Rilke. Ora é significativo
que este tal de Polikoff, rapaz bem comportado formado em academias longínquas,
em vez de citar Jung, cita um seguidor de segundo nível chamado Hillman, que
parece ser um rapaz inteligente, mas sem mais, talvez algures na sua cidade
glória local, muito merecida, deduzo, mas constrangedoramente trivial e bem comportado
nas suas ideias.
Explico em que sentido.
Como é usual, a obra
dos poetas, pensadores, artísticas, científicas da Idade Contemporânea ou não é
confrontada com o cristianismo, ou, quando tal é inevitável, desesperadamente inevitável,
compara-se com o cristianismo.
Quando é tal
inevitável? Quando o próprio autor declara, expressa, proclama a sua ligação ao
cristianismo. Nos outros casos, omite-se pura e simplesmente a problemática
cristã das suas obras. O que é pena. Muito haveria a dizer sobre a marca cristã
em Poincaré e Maxwell, por exemplo.
Critério curioso. Seria
a mesma coisa que só falar de organitos caso a célula nos falasse deles, ou só referir
o electromagnetismo se o próprio campo electromagnético se declarasse com essa
qualidade. A falta de profundidade, de perspicácia, dos críticos literários e historiadores
na nossa época é em geral muito confrangedora. Vivem apenas do valor facial
quando este lhes interessa, e procuram desesperadamente o reverso quando o
facial os assusta.
Mas quando se compara
com o cristianismo, com que cristianismo se confronta o autor? É evidente: com
o cristianismo em versão popular, de preferência caricaturado e em veste
burguesa.
É o que faz o bom do Polikoff.
Impressionado com a repressão católica dos costumes do século XIX, constrói a
obra e o pensamento de Rilke com base numa ideia de afastamento dos dogmas
católicos.
Qual é o problema? É
que não se trata de dogmática católica, mas de um catolicismo austríaco do
século XIX, um dos séculos mais pobres para a criação católica, malgrado ser
uma época de fecundação de movimentos que vieram mais tarde a produzir os seus frutos,
como o do estudo da patrística. Mais pobres, mas atenção: Bruckner,
Chateaubriand e Duhem não são medíocres. O mundo circundante, antes de ser dominado
por hábitos católicos, era-o por costumes burgueses, herdeiros da revolução industrial
e da revolução francesa.
A claustrofobia que o
burguês tem em relação a essa época é antes do mais a claustrofobia que o
burguês tem em relação ao mundo que ele
próprio criou. O burguês, mal instalou o mundo, o seu, vive o horror da sua
construção. A crítica dos artistas, dos revolucionários e dos pensadores, a
maioria de origem burguesa, diz tudo sobre a honestidade e a inépcia desta
classe. Todos os movimentos de revolta até à nossa época são, não uma revolta conta
o cristianismo enquanto tal, e a sociedade aristocrática que o deixou
florescer, mas revoltas edipianas contra as suas origens burguesas.
O pós-modernismo no
fundo ataca bem mais o positivismo que é seu pai que o cristianismo que
insulta. As correntes de pintura desde a segunda metade do século XIX não é
tanto contra Da Vinci que se assanham, mas contra a pintura burguesa, industrial
do século XIX. Heidegger ataca a teoria dos valores, que é uma pequena
reclamação, mas no fundo submissão, ao positivismo.
0 comentários:
Enviar um comentário