Dogma e liberdade II
Os movimentos contemporâneos,
não é contra o mundo medieval, ou antigo, que se dirigem, mas ao próprio mundo
burguês que os fez nascer. São revoltas edipianas contra a sua paternidade e a
sua origem. O ímpeto revolucionário destruidor dos seus pais virou-se agora
contra eles, o que é simultaneamente poético e justo, e feito de uma ironia
rotineira da História.
O resultado no caso
concreto é que o bom do Polikoff, para compreender a mística de Rilke vai
procurar a sua fonte no sufismo, esquecendo que o sufismo é herdeiro do cristianismo
e do platonismo e não o inverso (lembro que São Gregório de Nissa viveu mais de
dois séculos antes de Maomé, e Santo António do Deserto quase três séculos antes,
para os mais exigentes). E que Rilke notória, gritante, expressamente
influenciado pela mística russa, que, como toda a mística ortodoxa, é bem mais
publicitada e visível entre os ortodoxos que a ocidental o é entre os ocidentais,
seria bem mais compreensível pela mística ortodoxa que por uma putativa e nunca
demonstrada influência da mística maometana.
Tique curioso e significativo:
esvazia-se o passado da Europa e por isso tem de se ir ao exótico procurar
referências. Quem o faz esquece-se que não é o vazio alheio que explica essa necessidade,
mas o próprio. Polikoff não é médico, mas sintoma.
Depois de ver a
situação na perspectiva negativa, que sobra então desta ideia de que Rilke se opunha
ao catolicismo e construiu uma religião pessoal? O dogma impede a liberdade? É
a pergunta a fazer, em suma.
Quando vemos os abismos
que separam São Francisco de Santa Teresa de Ávila, Santo Agostinho de São
Tomás de Aquino, Mozart de Joachim des Prés, Rubens de Giotto, Cervantes e
Dante temos de nos perguntar se de alguma forma o cristianismo, e mais especificamente
a ortodoxia dogmatizada, impediu a liberdade e a criação. Quando permitiu uma Alienor
de Aquitânia e um Carlos Magno, bem como um Fernando Magno ou um Ivan o Terrível,
não se pode dizer que as personalidades tenham ficado estereotipadas por causa
do dogma. Verdade simples e difícil de compreender para a pouca oxigenação da
época: todo o cristianismo é pessoal,
e pressupõe uma relação pessoal com Deus.
O dogma é como um ponto
de fuga num quadro que usa a perspectiva. É um ponto ideal sem o qual o resto
do quadro cai em colapso. Não é apenas um desiderato, algo de residual,
saliento. É o ponto de fuga para onde deve tender a nossa vida. O dogma neste
sentido é sempre escatológico. Mas que toda a nossa vida seja determinada pelo
dogma, ou que este tenha essa pretensão, já me parece temerário afirmar.
Vamos então ao bom do Jung,
o verdadeiro, e não o digerido por molesta pança. Ele salientou bastante que a
psicologia não pode falar de Deus mas apenas da «imago Dei». É verdade o que
diz Tertuliano, em certo sentido: «anima naturaliter christiana», a alma é
naturalmente cristã. Admita-se. Mas talvez se devesse dizer que «anima
naturaliter haeretica» ou mesmo «gnostica». Por isso, o dogma tem essa função
de ponto de fuga no quadro. Em suma, de ligação ao Espirito.
Santo Agostinho dizia
que «graças a Deus não sou responsável pelos meus sonhos». Agostinho concubino
e maniqueísta, geralmente pensa-se, em sonhos provocados pelo primeiro estatuto
e não pelo segundo. Os sonhos de que fala Agostinho talvez sejam mais heréticos
que eróticos. Os nossos sonhos não obedecem ao dogma. Nenhuma vida é absolutamente
ortodoxa. Fora assim não haveria nenhuma luta.
A ideia de um tempo em
que o dogma tudo uniformizava, tempo esse de que nos teríamos libertado, é
apenas mais uma fantasia do servo da gleba que precisa de inventar uma gleba
para não se sentir mais servo. A sua liberdade nasce de uma libertação de
prisões imaginárias, para não sentir o peso das grilhetas reais que o afligem e
que foram feitas por si. Nascido de migração, estranho no seu próprio mundo,
não peregrino, mas transeunte, calcorreia os passeios da vida sem saber para
onde ir e acabando por não querer que mais ninguém vá para alguma parte.
(mais)