segunda-feira, 15 de julho de 2013

Temos de ser abertos e flexíveis?

Ouçamos com ouvido atento, mesmo que ferido por tão dissonantes melopeias, o que diz o transeunte. Como os homens públicos são hoje em dia os filhos das compoteiras, transeuntes relapsos, ouçamos o que nos dizem mais uma vez. “Temos de ser abertos, temos de ser flexíveis”. São duas versões de uma mesma cantiga, a primeira mais de uso na cultura, a segunda mais na gestão pública e privada, ambas na política.
 
A primeira pergunta que se nos oferece é a seguinte: quem disse isso? Quem se atreveu a impor tal imperativo moral? Quem lançou tal boato?
 
A segunda questão que se nos deve colocar é a do paradigma que subjaz a estas ideias. A ideia de abertura, por mais que custe a quem me ouve, tem o seu assento na metafísica, a da flexibilidade na biologia. Mais uma prova de que o homem público recolhe vindo não sabe de onde conceitos que na sua boca mais não são que rumores, porque rumor é tudo de onde não se sabe a origem.
 
Existe um ditame que afirma que perante uma garrafa uns dizem que está meio cheia, outros meio vazia. Imagem impressiva, mas em última análise grosseira, porque se esquece que a melhor visão é a de que vê que metade terá dado prazer e a outra metade ainda poderá dar satisfação. São os cultores da abertura quem mais o cita, o que mostra a rigidez da sua visão.
 
A abertura ganha relevância intelectual sobretudo com Heidegger. Antes dele ninguém se atreveria a dizer com ar solene que temos de ser abertos, sob pena de os interlocutores acharem que o autor de tais palavras pretendia ser objecto de cirurgia ou teria desejos mais ou menos inconfessáveis. Não querendo comparar os medíocres imitadores com o genial persuasor, a verdade é que no pensamento actual a abertura recolhe todas as pudicícias do pensamento de Heidegger. Ao ver a existência como abertura, na mesma esteira em que dizia que nunca poderemos atingir o centro da clareira (pois não, é uma inevitabilidade estarmos nele), o católico Heidegger, católico arrependido, pudibundo em relação à sua matriz, lançou uma semente de infantilismo que o mundo seguiu com alegria.
 
Aberto por excelência é o recém-nascido. Mais nenhuma idade da vida tem tantas possibilidades abertas. Porque a abertura é flutuar nas possibilidades, e não persistir nas realizações. Um recém-nascido pode ser das coisas mais ternurentas do mundo, mas é um incapaz, tenhamos a coragem de o reconhecer. Não se pode contar com ele para nos proteger, para nos sustentar, para ser um esteio da nossa vida. É evidente que seria demais exigir tal coisa de um recém-nascido. Mas quando adultos vivem só na abertura, abertos para o mundo, atiram-se a possibilidades apenas como forma de não terem de responder pelas suas realizações. Basta-lhes dizer que são abertos para se sentirem imediatamente no direito de serem absolvidos pela falta de qualquer obra.
 
Em termos militares é o que se chama uma diversão. Desvia-se a atenção dos outros para a nossa nulidade presente e passada mostrando o infinito de possibilidades que está à nossa frente.
 
A prova da imensa má fé deste tipo de atitude é que realmente acabam por ser abertos. Mas, destituídos, ainda e sempre de critério, acabam por estar abertos para o que de mais medíocre, indigno, trivial, tem a existência humana. Como o excelente carece de escolha dura, é-lhe mais fácil manter uma atitude de abertura. Sem mais. Mas quem está nesta atitude está parado, não deixa lastro, é mero destinatário da sua própria inércia.
 
Abertos sempre a outras culturas para as quais esperam que ninguém tenha competência para os julgar, abertos para outros modos de vida que não se dão ao trabalho de estudar. O homem pura e simplesmente aberto é o herdeiro tonto do cristianismo. Não recebe os publicanos e as prostitutas porque recusa uma pureza meramente ritual, ou como acto de amor. Recebe geralmente só publicanos e prostitutas porque em boa parte sabe que eles não o podem julgar, porque isso lhe dá um sentimento de superioridade.
 
Porque o adulto é sempre alguém que fechou possibilidades. Escolheu uma profissão e não outra, um parceiro e não outro, uma aprendizagem e não outra. Se for equilibrado, e sobretudo se for completo, manterá sempre o maior grau de abertura compatível com a realização de obra. Mas quem faz uma casa não pode ao mesmo tempo estar a jogar xadrez.
 
A flexibilidade tem o seu paradigma na biologia. No entanto, os animais superiores são-no exactamente porque têm zonas de flexibilidade e outras de dureza. Se os ossos fossem apenas flexíveis não nos moveríamos: arrastávamo-nos, ou melhor, esparramávamo-nos.
 
Não deixa de ser curioso que as pessoas que mais invocam este argumento sejam pessoas sem grande coluna, sem grande postura moral. Invocam como imperativo categórico o que nelas é uma inevitabilidade, o que mais não podem ser. Dão-se o mérito de uma naturalidade de invertebrados, quando essa naturalidade é apenas sinal de impossibilidade de escolha de melhor.
 
Desçamos um pouco à terra, ou melhor, falemos agora na linguagem chã do homem público para que ele perceba alguma coisa.
 
Quando se fala de uma Europa aberta, de uma Europa que deve ser aberta, sou o primeiro a concordar. Mas na medida em que seja aberta mas concentrada nas suas realizações, ou seja, fechada igualmente. Adulta, portanto. Uma Europa aberta não significa abrir-se ao ponto de receber os países deserdados da História só porque o são, só porque conseguiram o ódio ou o desprezo dos vizinhos como único legado histórico e quando muito a piedade da Europa. Quando se diz que temos de receber toda a miséria do mundo quando os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá escolhem criteriosamente quem para eles emigra. Quando temos de estar abertos a qualquer indignidade desde que coberta por tradições mais ou menos vetustas, que o são apenas por falta de imaginação dos povos que as consagraram. Quando ao mesmo tempo estes que se dizem abertos, abrem-se ao sofrimento dos animais e a outras culturas que lhes provocam o sofrimento e vivem assim nessa abstrusa contradicção. Quando se diz que temos de ser flexíveis e aceitar entorses às leis, desvios em relação a planos equitativos e bem planeados, apenas porque nos temos de adaptar à realidade. Como se a realidade não fosse também qualquer coisa que tivéssemos o poder de adaptar às nossas exigências.
 
Quando se diz tudo isto em nome da abertura e da flexibilidade, e no espaço público vemos invocar tamanhos dislates, podemos perceber qual a alma e a anatomia dos defensores de tais despautérios. Infantilizados mimando recém-nascidos, merecendo-nos a mesma confiança que temos nos bebés, e menor ternura, esparramados na sua própria inércia, os flexíveis e abertos são apenas criaturas que fogem às suas responsabilidades, que traficam com influências porque para eles a vida é apenas tráfico. Entre os grandes não vemos nem essa abertura nem essa flexibilidade. Vemos antes teimosos, obstinados. Carlos Magno, Alexandre, César, Henrique IV, De Gaulle, Churchill negociaram com a realidade, adaptaram-se a ela, mas antes do mais forçaram-na, recusaram ser abertos ou flexíveis. Perante inércias ou iniquidades, jogos de interesses instalados e livres expressões de outras culturas, impuseram um paradigma, porque o julgaram, porque o sabiam melhor. Serôdios herdeiros de um cristianismo mal digerido, instalado em almas pouco preparadas para criticar a sua má aplicação, os abertos e flexíveis apenas sabem construir obra à sua imagem: mole, irrelevante, fugaz. O seu paradigma é Pasqualis que se opôs a Carlos Magno. Quem se lembra dele? Apenas os mesmos que se lembrarão de Carlos Magno em estudo minucioso. Por comparação entre o grande que exista ou venha a surgir, o mero contraponto da mediocridade sorridente.
 
Alexandre Brandão da Veiga

5 comentários:

miguel vaz serra....... disse...

"Abertos e flexíveis"...
Pois venho por este meio dizer-vos que vou deixar de ler,eu e o meu grupo de trabalho,a Geração de 60.
Razão? A forma como do tudo passaram ao nada.
Desde que este espaço foi invadido por um senhor de idade moribundo e mal educado,arrogante e prepotente que fez o Geração de 60 mudar o sistema de publicação que alguêm, escondido no anonimato, simplesmente não publica todos os comentários,mesmo que livres de insultos. Pela lista de gente que faz parte da Geração de 60, posso imaginar quem.
Fica aqui portanto mais um comentário que não vai ser publicado,este meu, para me despedir e deixar expresso a minha indignação. Pensei que fossem distintos, não o são!!!

Mafalda Rocha Vieira disse...

Inteligente frase de "mais um comentário que não vai ser publicado,este meu,....." para os obrigar a publicar mesmo.
E fizeram-no.
Parabéns pois estou de acordo com a mudança extremamente negativa que este blog deu e penso que por Inês Dentinho andar afastada dele.
Há pessoas que nem deviam ter o nome na lista de membros do mesmo.....
Tenho pena que o "desbocado" Vaz Serra se vá pois dizia muitas verdades. É a vida............

Inez Dentinho disse...

Caro Miguel
Por pura inépcia, só ontem aprendi a ver os comentários retidos no filtro que foi introduzido no Geração de 60 e a libertá-los. Se não continuar connosco, tenho pena.
Bj Inez Dentinho

Amélia Bragança disse...

Estimada Dra.Inês
Tentarei por uma amiga avisar o Dr.Miguel Vaz Serra de que a Dra.Inês escreveu a explicar que tinha problemas no blog,pois eu não o conheço pessoalmente mas tenho amigas que o conhecem.
Acho um piadão a forma como ele escreve e tambêm tenho pena se ele se fôr embora.

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Faço minhas as palavras da Inês. No que me toca ainda nem sei como desbloquear os ditos comentários, por inépcia informática minha.

Apenas saliento que não entro em polémicas e que foi sempre a nossa política dar a liberdade à crítica. No que me respeita fui objecto de críticas muito violentas que tive o cuidado de nunca as apagar. Não profiro as frases dos outros e penso que é quem faz a crítica que tem o mérito e demérito dela.

Não sou confuciano, mas com ligação familiar à China bastante para me lembrar de uma frase de Confúcio: «A invetiva só desonra o seu autor». Por isso sempre achei saudáveis as críticas e apenas as posso agradecer. Infelizmente na net por vezes há pessoas que criam fixações que me parecem inúteis por certos autores e deixam de ver o texto para preferirem criticar uma quimera.

Lamento que as pessoas se sintam incomodadas com as críticas que recebemos. Também eu preferia que houvesse outra elevação por vezes. Mas quando se anda na rua não se escolhem os transeuntes.

Esperemos que no futuro se olhe mais para o texto dos posts e menos para a ficção dos seus autores.

Muito boas férias para os que vão de férias e obrigado pela paciência de nos lerem.