sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Pós e pobreza II

O que dizem os cultores do pós-cristianismo? Que a Europa deixou de ser cristã. E passou a ser o quê? Nesta matéria têm mais dificuldade em afirmar seja o que for. Por isso, convocam a abertura de possibilidades, mas acabam na ideologia do supermercado de religiões, em que se vai buscar um pedaço a cada uma em função a nossa vontade. A necessidade de coerência, em suma, de responsabilidade do discurso, desaparece totalmente. O passado é caricaturado, mostrando-se que antigamente era uniforme. Era cristão. Coitados, eram o que podiam ser... Será assim?

A Europa nunca foi cristã. Nunca o foi puramente. Sem as outras camadas, sobretudo sem o paganismo indo-europeu, não se percebe. Os nossos citérios de gostos, a nossa estruturação social, o modo como moldámos desde sempre as nossas vivências estiveram sempre longe de ser puramente cristãos. Não há memória que Cristo ou os apóstolos tenham feito a apologia da aristocracia em quanto tal, e no entanto durante quase dois mil anos foi essa a classe que governou a Europa. Não há memória que Cristo se tivesse preocupado com os modos à mesa ou o gosto vestimentário e no entanto gastámos energias imensas nessas áreas. Não há memória que tivesse patrocinado guerras e no entanto houve, e muitas. Por outro lado, basta atravessar as páginas da filosofia dita medieval para verificar a raras vezes que a palavra Cristo aparece nelas. E as múltiplas vezes que se assentou a distinção entre verdade de razão e verdade de revelação. A caricatura do passado é dupla: é acusado de não ter sido cristão, sob o ponto de vista moral. O de apenas o ter sido, sob o ponto de vista intelectual. Ambas falsidades. A ideologia “pós” vive aqui mais uma vez da falsificação.

O pós-modernismo, o que diz? Tenta dar mais um passo. Os modernistas criticaram o mundo que diziam ser cristão. Os pós-modernos no fim de contas sofrem de um complexo edipiano em que atacam os próprios pais que os viram nascer. A obsessão de um Hapax renovado leva-os a sacrificar os progenitores que lhes deram direito ao nascimento. A mecânica quântica faz surgir um movimento popular que se revolta contra uma ciência dogmática, que nunca foi criação de cristãos, mas que se queria profundamente anti-cristã. O positivismo, nas suas múltiplas vertentes, afirma certezas religiosas na ciência que nunca se encontraram nas filosofias anteriores. Os totalitarismos modernos são criticados por não terem contrapesos, quando a ideia de contrapeso ineria a toda teoria política cristã. Insurgem-se contra uma moral burguesa, a dos seus pais, que é profundamente anti-cristã em muitos dos seus aspectos.

Em tempos ouvi um pensador brasileiro que lembrava, e com alguma razão que Naphta, o judeu convertido na Montanha Mágica de Thomas Mann, não era o reaccionário empedernido, contra o moderno Settembrini. Também Naphta é um filho da modernidade, enquanto jesuíta. A modernidade tem muitas faces, muitas faces contraditórias entre si. Ser pós-moderno é no fundo ser filho do moderno, na sua diversidade, mas também nas suas contradições. Mas ser moderno é por definição ser incompleto, e o pós-moderno é em certo sentido apenas a compleição do modernismo. Seja, mas o que é este modernismo a que se põem os pós-modernos? Filhos de uma potência fragmentadora, arvoram a fragmentação, que era defeito, em qualidade. Essa é a sua novidade. Felizes por terem sido fragmentados, nada querem remendar. O problema deixa de ser problema, para ser local de instalação de vida, ou seja, mero factor de comodismo. Os pós-modernos vivem assim do sistema instalado, que não pretendem mudar em profundidade. São conformistas por natureza.

E o pós-industrialismo? Que coisa será? É apenas mais um dos desenvolvimentos, mais um entre muitos, desta obsessão do “pós”. Assentámos a nossas riquezas na indústria? Que se dane a indústria! Que se destrua. Faremos uma sociedade desmaterializada, que não produz coisas, mas apenas serviços. Abandonámos a agricultura, as pescas, mas também a mineração. De um equilíbrio dos sectores devemos passar para uma visão unilateral da economia, oposta às coisas, baseadas em serviços.

Mas o pós-industrialismo mostra os seus pontos fracos. Profundamente anti-empírico, esquece que os países que mais enriquecem não são pós-industriais, mas assentes na indústria ou no sector primário. Por outro lado, mostra o seu profundo horror à matéria. A sociedade, o mundo deve ser desmaterializado. O valor está na desmaterialização. Mas, como o valor das coisas imateriais depende de uma teoria, estabelece teorias sobre o valor. Este assenta na marca, na boa vontade, na criação de valores partilhados. O discurso gestionário aproxima-se da terapêutica, dos misticismos, da teologia. Baseados em cada vez mais inefáveis assentos, elevam-se até às nuvens da motivação, da satisfação, do sonho. Era bom de se ver: num mundo sem coisas, todas as coisas podem fazer um mundo.

Condenar sem mais quaisquer destes movimentos não tem sentido. Se eles existem, algo nos dizem sobre as falhas dos sistemas anteriores, não forçosamente falhas intrínsecas, mas na forma como foram vividos. São válidos como sintomas, embora não como terapêuticas. Não quero desmerecê-los. Todo o existente terá a sua razão de ser e mesmo que o existente não tenha mérito, ao menos que tenha o de nos fazer pensar na sua origem.

Ouvimos falar muito de cada um deles, mas talvez sejam audíveis apenas porque berram. É o grito a sua forma de expansão, a repetição a sua forma de permanência. Que seja, mais uma vez. Ficamos ao menos a saber que tomam por força o que mais não é que um estertor.





Alexandre Brandão da Veiga





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