segunda-feira, 30 de julho de 2012

Razão e paixão

Até ao fim do século XVIII quase unanimemente os pensadores europeus defenderam a razão contra a paixão, ou melhor, as paixões. Desde o romantismo que isso não acontece. E como em boa verdade ainda bebemos, para o bem e para o mal, do romantismo, hoje em dia não se pergunta pela defesa da razão sequer. Onde está a razão então? E porquê tanto afã em defendê-la contra as paixões? Que receios provocava a paixão?


Vejamos a última questão em primeiro lugar. Porquê tanto afã? O lugar comum é o de se dizer que existia uma cultura racionalista, como se isso fosse uma limitação, como se não tivessem percebido – os pobres coitados! - que havia outras coisas para além da razão. Este é evidentemente um modo de ver as coisas muito pobre. Se temiam as paixões é porque tinham muitas, porque estavam em contacto com elas de forma mais directa, mais intensa, que nós. Não nos podemos esquecer que falamos de pessoas que viram a morte ao seu lado, por duelos, por execuções judiciárias, por doença, por guerras. Raros foram os pensadores até ao século XIX que não assistiram a nenhuma guerra, que não viram o que era um corpo humano ser dilacerado pela tortura, os maus-tratos, a fome, ou simplesmente a desconsideração social. A miséria e o sofrimento humano para essa gente era uma lei natural, que existia em toda a parte do mundo, em todas as culturas, em todas as épocas. Não tinham exemplo dessa construção maravilhosa e pesada que é o Estado-Providência. Providência para eles era apenas a divina, que se instilava sobre a forma natural das desigualdades e sofrimentos humanos universais.


Escolher a razão era para eles escolher o contrário do sofrimento, sobretudo do sofrimento infligido pelo homem ao próprio homem.


Com o romantismo estamos perante uma sociedade mais segura dela mesma, talvez a mais segura dela mesma que já existiu na História humana, só tendo paralelo na época dos Antoninos em Roma e de Péricles em Atenas, que seja de nossa memória (esquecemos tonteiras presunçosas que ocorreram em vários impérios asiáticos, mas mais por falta de exigência, como na Turquia, entre os assírios ou na China). Segura exactamente porque viu triunfar mecanismos desenhados pela razão. O direito internacional, as garantias mínimas de liberdade, a possibilidade de promoção social, o início da segurança social. Ao longo do século XIX toda a armadura que hoje constitui a almofada da nossa existência foi formada. Foi a razão que pacificou o homem, que lhe diminuiu o sofrimento, pela ciência, pelas tecnologias, pelo consenso racional.


Mas como todos os garantidos, os enfardados, os europeus ficaram meninos estragados com mimos. O espaço criado pela razão torna-se “natureza”, é natural” termos a almofada de existência que temos, e isso enfada. Começámos por isso a brincar com o fogo, pudemos dar-nos a esse luxo. O inconsciente, o mito, a irrazão, a experiência sem limites, tudo poude ser experimentado, vivido. Se o poude, apenas o poude ser porque a razão tinha construído um espaço em que não era perigoso experimentar. Atear um fogo em ambiente controlado, que é o que em suma fazem os cultores da irrazão, não releva afinal de uma grande coragem. Exigem bombeiros de toda a espécie que podem apagá-lo – julgamos nós.


Mas para onde foi habitar esta razão que maltratamos tanto na nossa cultura? Onde se abriga ela?


Mais uma vez, no Direito para começar. Cultivamos, incensamos a irracionalidade, mas exigimos que o espaço das relações internacionais, da conformação social interna, sejam regidos pelo Direito, ou seja, pela razão que se auto-controla. Queremos tribunais para julgar os homens, os políticos, a História igualmente. O que antes recebia condenação por razões religiosas é agora assepticamente relegado para os tribunais que aplicam um Direito supostamente universal. O problema é que nos esquecemos que levámos séculos a estabelecer consensos que são europeus, só europeus, que exportámos para as culturas neo-europeias como as Américas, a Oceânia, alguns países africanos. E queremos converter o mundo inteiro a consensos que para ele não fazem sentido, por ignorância, limitação, mas também por falta de identificação histórica.


Para a ciência, igualmente. Queremos inutilmente que a ciência cure já e desde logo todas as ciências, que os nossos percursos pela irracionalidade nos deixem incólumes. Queremos brincar com o fogo, mas não aceitamos que nos possamos queimar, sobretudo de forma incontrolável.


Para a política e a economia, finalmente. Queremos que as políticas sejam eficazes, que nos inventem emprego, riqueza, novas formas de vida. Que a política se faça de paradigmas bem polidos e lógicos, sem contradições. Nunca época houve em que as contradições nos políticos fossem objecto de tanto escárnio e no entanto, poucas houve que deram tão poucas alternativas a essa incongruência.


A razão deixou de ser motivo de amor, de cuidado. Compreende-se. Por um lado, porque estamos instalados nela. Os gregos podam amá-la porque ela era fresca, novidade, alargamento da consciência. Onde estavam instalados, como Dodds bem demonstrou, era um espaço de irracionalidade. Na nossa Idade Média (todos os países europeus a tiveram, quem não a teve não é europeu, digo-o sem medo de ser temerário nas minhas afirmações) homens cobertos de paixões eram-no também de sentido religioso e amavam a razão por isso mesmo. E aqui vemos a outra causa da perda do amor à razão: a falta de religiosidade. A razão é planta que carece de cuidados, ao contrário da irrazão que cresce como planta selvagem. Gente descuidada é por definição irreligiosa. E tem em horror a razão.


O problema dos amantes da razão é sempre o da incompletude do discurso, mas porque a outra metade de que falam é-lhes suficientemente vívida. Têm vidas mais completas que o seu discurso. Os cultores da irrazão têm com frequência o problema contrário: o seu discurso é mais rico que a sua vida. Vão beber à razão para a contestar, assentam confortavelmente nela para a maltratar. Os cultores da razão, pelo contrário, sabem que assentam em terreno mais movediço, a vida na verdade, e por isso cultivam um jardim que carece de cuidados para não morrer. São provedores, não fruidores.


É evidente que os cultores da razão podem ter taras. Têm-nas quando perdem a religião. O laicismo francês, e o utilitarismo inglês, o materialismo alemão e russo, formas de gloriosa mas em geral triste obscenidade na cultura europeia pecaram por julgarem que a razão em que assentavam não tinha História, não era movediça, e que correspondia ao mundo todo. Nesse caso o discurso podia ser erudito, mas era tão pobre quanto a sua vida.

Dois episódios são significativos deste fenómeno. Estaline não queria a física quântica porque lhe retirava a certeza absoluta positivista do marxismo-leninismo (muitas contradições nesta expressão de que não posso curar agora). E o teorema de Goedel mostra que a razão se rebela quando dela queremos extrair mais do que ela algum dia nos prometeu. O problema não está nos limites da razão, mas no facto de nós lhe querermos (irracionalmente) impor que não tenha limites.


Convenhamos portanto, que é difícil estar presente no espaço público hoje em dia. Tem de se fazer uma política racional, uma economia que se anuncia como tal, aceitar reger-se por um Direito cada vez mais tentacular como espaço de crescimento teratológico da razão. Mas convenhamos igualmente que quem ocupa esse espaço público é produto adaptado a ela. Não se trata de cultores da razão sofrendo com o seu mau uso. São na sua maioria incapazes da razão, usando-a apenas no Direito, na economia, na política, ou julgando-a usar, porque vivem da ilusão de que esses são os espaços privilegiados da sua actuação.


Criaturas meramente adaptadas ao espaço público, segregadas por ele como hormonas meramente reactivas, crescidas para o viver sem crítica nem oposição verdadeira, padecem apenas. Padecem do mal do século: não cultivam a razão, porque ela lhes é fraca, porque acreditam piamente na sua imensa força para aguentar os embates dos seus dislates e trágicos erros e por em última análise serem criaturas sem paixões. Estes aqueles que incarnam o espírito da época: amorfos e amputados.


Alexandre Brandão da Veiga

3 comentários:

maria lisboa....... disse...

Paixão pelo meu País!!!
Tudo isto ficará na História também…………
Tive que saber que Borges iria dizer na Universidade de Verão.
Da RTP não falou, melhor nunca o ter feito, e veio com uma conversa sobre economia que quem ouvisse achava que estaria a falar do Reino Unido ou Alemanha.
Com a arrogância do costume em baixa, com cara de quem fez porcaria e agora tem que engolir os sapos gordos e mal cheirosos ( e mais que vai engolir ), mesmo assim ainda conseguir articular mais umas barbaridades.
Sobre a austeridade a mais disse que era um mito. Leia mais sobre economia senhor meu e olhe para os resultados da mesma na Irlanda, Grécia, Espanha, Itália e Portugal. Veja a derrapagem do amigo Gaspar por ser mais quadrado que o cubo mágico e que agora está sem saber que fazer da vida dos portugueses.
A única austeridade que dá bons resultados é a do Estado!!!!!!! E essa ainda nunca aconteceu.
Roubar ordenados e aumentar até ao limite os impostos empobrece o cidadão e colapsa a economia de qualquer País. Elementar amigo António…elementar.
Disse também o optimista Borges que estamos quase a “dar a volta”.
A quem queriam dar a volta não deram e saiu o tirinho pela culatra. Fizeram o PM ter que dar a cara pela Tutela em vez de o contrário o que é uma vergonha e um atestado de incompetência.
O homem estava tão constrangido em Londres que até me deu pena….Time to go, Mr. Relvas…time to go…
Para terminar fiquei com uma frase de Borges que me deixou de boca aberta. “O cenário de banca rota desapareceu”!!!
Ouça lá?! Quando o FMI e seus muchachos se forem embora e tivermos que endividarmo-nos mais e mais nos mercados, como fizemos durante décadas, e esses mercados, feitos de mafiosos e ladrões, nos cobrarem juros incomportáveis, como vamos viver? Acho mesmo que o cenário de banca rota desapareceu? Olhe que não, dr., olhe que não…….
Já agora não posso ir para a praia sem comentar outra barbaridade.
Pires de Lima do CDS, seguramente à revelia do Dr. Paulo Portas que odeia salpicos mal cheirosos no seu Partido, disse que a Troika devia obrigar os principais partidos portugueses a mudar a Constituição para poder fazer tudo o que lhes saia na real gana….. Ora se eu não estivesse a ouvir nunca acreditaria numa barbaridade dita assim.
Não faltaria mais que a Troika, que já interfere na política económica interna, também fizesse as nossas leis para bom gosto de um punhado de mafiosos internacionais sequiosos dos nossos impostos.
Sabe quem paga as dívidas e roubos dos políticos portugueses que durante décadas foi lei?
Nós! O povo!!
Com os impostos exagerados, os cortes nos nossos ordenados, pagamentos de Natal, de Férias, que fazem parte dum bolo de um ordenado ao ano dividido por 14 e de subsídios não têm nada. Subsídio é ajuda. O meu ordenado é MEU!!! Trabalho para o receber e assinei um contracto com um salário bruto de “X” dividido por 14!!!
Se não podemos roubar mais, então mude-se a única segurança que este paupérrimo povo tem, a Constituição…

Jorge Ramiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jorge Ramiro disse...

Meu pai é da geração dos anos 60. Há muitas diferenças entre as gerações. Ele é um imigrante que aprendeu a ganhar a vida. Ele é dono de uma empresa de ração para caes. Um bom negócio.