sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A necessidade de demonstração

Desde há muitos anos que tenho de dar formação profissional, seja informal, seja formal. Passaram-me pelas mãos pessoas de todos os níveis do ensino, e sobretudo algumas das melhores notas de faculdade. Incluindo mestres e por vezes doutorandos. De todas as idades. O que pretendo enunciar nada tem a ver com a suposta decadência recente de um sistema de ensino, mas com uma postura geral de civilização.


A verdade é que ao longo destes anos o que se me tornou mais difícil foi o de inculcar nas pessoas ideia de que têm de demonstrar o que defendem. Nos serviços, que correspondem à grande maioria das actividades em sociedades como as nossas, vive-se de comunicação, e tem de se viver de comunicação consistente. Ora, uma comunicação só é consistente se obedecer às três regras clássicas da correcção, da propriedade e da adequação.

Correcção gramatical, para começar. Não temos todos de ser artistas da língua, mas devemos pelo menos tentar não ser cubistas no que exprimimos, sobretudo na nossa profissão. A propriedade é uma qualidade semântica. Corresponde ao uso das palavras com o seu correcto sentido, das estruturas gramaticais com a maior eficácia comunicativa. E adequação, porque tendo um destinatário qualquer comunicação é em função dele que se tem de construir o discurso.


Tudo isto pode ser exigido socialmente por regras de cortesia, e já seria bastante. Mas quando exercemos uma função, seja qual ela for, maior força têm estes deveres.


Mas existe um dever adicional para quem exerce uma função. O de demonstrar. Um canalizador que vai a nossa casa não pode apenas montar as torneiras. Se houver mais de uma solução possível tem de nos comunicar as várias soluções possíveis e porque umas serão melhores que outras e em quê. O mesmo se diga do médico que faz o diagnóstico ou propõe uma terapêutica. Tem de explicar porque chegou a essa conclusão. De igual forma o jurista tem de fundamentar as conclusões a que chega.


Demonstrar implica dividir as questões, organizá-las e obedecer a uma sequência. Não é a mesma coisa dizer A, B, C ou C, A, B. Não tem o mesmo significado. Dá-se o caso de me dizerem com frequência: “sim, mas eu tinha cá tudo era só uma questão de sequência”. Só? Só?


Fermat partiu da enunciação do seu célebre último teorema. As pessoas tinham fé em que aquilo fizesse sentido. Chamaram-lhe teorema por respeito, ou talvez porque muitos acreditaram que ele o tinha demonstrado. Hoje em dia há quem o ponha em causa, ignoro se com ou sem razão. Mas afirmações conclusivas aceitam-se de quem já demonstrou muito por já ter dado bastamente à demonstração. É por confiança que se aceita a importância, mas não pode por confiança aceitar-se a verdade. É quando muito um desafio relevante, mas não de uma resposta que curamos.


Como disse, pessoas de todas as idades descuram a necessidade de demonstração. É uma quebra civilizacional, uma quebra de cortesia, uma quebra moral, mas também de uma quebra intelectual que se trata. Não é uma opção, o que já seria condenável em quase todos os contextos, mas mais uma vez uma falta de alternativa. As pessoas tornam-se pura e simplesmente cada vez mais incapazes de demonstrar. E com a arrogância que só um ignorante encartado pode ter, quando são confrontadas com este defeito... desvalorizam-no.


Mais uma vez parece que, tendo prometido falar do espaço público, vou ao simplesmente (!) intelectual, ou ao mero (?) quotidiano. Mas a vida pública, e nomeadamente a vida política não se sustenta em si mesma. Sustenta-se sempre num pano de fundo. E é esse pano de fundo, tão presente que nem o vemos, que é o principal objecto da minha preocupação. É maior desafio que andar a falar de personagens historicamente irrelevantes de que todos conhecem agora os nomes, para em poucos anos os esquecer.


No espaço público vemos sintomas bem graves desta falha de comunicação. Já nem falo de pessoas que, longe de serem artistas da língua, a torturam furiosamente a cada palavra que dizem. Uma prosódia passeando-se turisticamente entre o campestre e o suburbano, sem os méritos do primeiro nem a miséria justificada do segundo, uma paleta gramatical pobre, a embater permanentemente contra o escolho, a tremenda maçada, da regra gramatical que nunca se incarnou, uma impropriedade galopante e uma inadequação geral que mais não é que uma exposição da própria falência. Estes os traços que vemos ganhar terreno no espaço público.


Mas, e a cavalo destes fenómenos, e não por acaso, vem a total indiferença perante a demonstração. Temos de ser aliados dos americanos, temos de ser contra a guerra, temos de ser multiculturais ou de fechar ou abrir as fronteiras. Temos de fazer muitas coisas, parece. Uma sociedade cada vez mais normativa, mais sufocada com deveres que nos aparecem de surpresa no meio do caminho, sem codificação, como salteadores que impedem o livre comércio das ideias.


Temos de... Mas poucos referem porque razão temos. Temos porque é generoso, porque olhamos com um sorriso, e a nossa alvar dentadura é argumento bastante, ou então o nosso sobrolho carregado. Como nunca considerei que a exposição da anatomia fosse demonstração de coisa nenhuma, ou quando muito de uma beleza (rara), ou de uma fealdade (mais que provável) o espaço dos indemonstrantes torna-se cada vez mais um palco de nudismo facial ou na melhor das hipóteses de mimo. O mimo deixou de ser espectáculo para as massas porque já integrou a vida do dia a dia. Deixa por isso de ser diversão, ou seja, desvio do caminho, para ser o percurso normal.


Basta fazer um teste. Quantas vezes se ouve um jornalista perguntar: porquê? “Porque diz isso, quais os seus fundamentos? Porque fez aquilo, quais as suas razões?” Quando a pergunta surge, recebe-se uma resposta, qualquer resposta, e passa-se para a pergunta seguinte. Mesmo que a resposta seja desconexa, contraditória, fora do contexto. A sociedade do mimo é uma sociedade do “como”, não do porquê.


Ora dá-se o caso de quem se atreve a pôr o pé na rua, e por maioria de razão a entrar no espaço público, ter de se justificar.


Todos ocupamos espaço, temos por isso de ter a certeza de que, ou ele nos pertence, ou fazemos melhor uso dele que outros. Hoje em dia todos concordam com esta ideia se falamos da propriedade privada, mas ninguém se coíbe de ser ocupador ilegal do espaço público.

Em segundo lugar, porque um Estado civilizado, já nem é preciso que seja democracia, basta que seja civilizado, implica que qualquer espécie de poder encontre alguma justificação. O poder fere sempre alguém, seja que natureza ele tem. Ser humano significa respeitar o espaço dos outros.


Em terceiro lugar porque o nosso espaço custa aos outros, eles não o podem ocupar enquanto nós lá estamos. E sobretudo, se estamos a prestar um serviço, seja na profissão, seja na comunicação, seja na decisão política, temos de explicar porque razão nós e não eles o ocupamos.


O homem que se escusa à demonstração tem no fundo como paradigma o salteador. Aparece-nos na estrada, ocupa-nos o caminho e corremos sempre o risco de ser roubados por ele. Mesmo que tenhamos posto na estrada para nos proteger nada nos garante que é essa a tarefa que desempenhará. Dá-se o caso de as estradas da Europa estarem bem policiadas, sobretudo desde o século XVIII. E nestes últimos séculos temos menos experiência de viajar nos carros e sermos assaltados a meio do percurso, que nos mandem parar para nos assaltarem. Para onde foram eles, os salteadores? Morreram todos? Temo bem que não. As estradas onde actuam são hoje bem diferentes, apenas desviaram o seu negócio. São as da informação e do poder. A sociedade não o policia. E ele sente-se assim mais livre que nunca.



Alexandre Brandão da Veiga

3 comentários:

Cristiane Mello disse...

Nossa como esse Blog é complexo !!!
Falo "num bom sentido" é claro.

Excelente conteúdo.
Parabéns aos autores.

Cristiane Mello
Blog Equilibrium:
ss-equilibrium.blogspot.com

miguel vaz serra....... disse...

Cristiane, não acho que seja complexo. Talvez rebuscado. Mas isso é porque quem escreve talvez goste de o ser.
Uma das pessoas que mais gosto de ler é a Dra. Inês Dentinho, mas pouco por cá passa, infelizmente.
Não é rebuscada, nem pretensiosa, nem tenta fingir que é intelectual. Escreve muito bem, com linguagem cuidada mas é português actual, não arcaico. A ela certamente não acharia nada complexo. A complexidade é a mãe da solidão.
Temos saudades.....

O Autor disse...

Muito interessante.