quarta-feira, 18 de maio de 2011

São os alemães culpados? I

A propósito desta discussão sobre a dívida pública tenho apenas três conjuntos de reflexões a oferecer. O primeiro de coerência, o segundo de política europeia e o terceiro de política interna. O pano de fundo é que os malandros dos alemães são culpados, não têm solidariedade, devem muito à Europa. E mais os maldosos finlandeses e quejandos.

Comecemos pelo primeiro. De coerência. Na política é importante por vezes ir aos fundamentos mais simples da coisa. A política é feita por seres humanos. Vejamos que humanos são estes que se queixam.

Portugal entrou no euro porque quis. Ninguém o forçou a tal. Lembremo-nos mais ainda que, quando aos alemães, mas também os holandeses, e já agora os ingleses (não entraram na brincadeira mas gostaram de pontificar mais que os outros sobre ela), disseram que Portugal não estava pronto, muito português se sentiu ofendido por estar a ser desconsiderado. Estávamos prontos e seria uma ofensa entender o contrário. Ou seja, quisemos e quisemos muito.

Em segundo lugar, sabíamos bem o que era o euro. A Alemanha deixou claro que não deixaria nunca o marco e que o euro, para existir, seria um marco europeu. Convenhamos: se alguém tem algo de muito valioso atira-o ao lixo? Fizeram eles senão bem em impor o marco. Os outros quiseram ter a melhor moeda, a Alemanha deu a sua quota. Mas impôs que o produto não piorasse a qualidade. Quem os critica é apenas quem está habituado à fancaria. Eu prefiro produtos de melhor qualidade aos de pior. Por isso parece razoável a exigência alemã. Os países tiveram de fazer profundas mudanças no seu enquadramento institucional do mercado monetário, nomeadamente aceitando a independência dos bancos centrais, sabiam o que estavam a comprar e quiseram. Sabiam bem, o aviso foi feito.

Em terceiro lugar este marco despejado sobre todos implica uma política. O vulgo chama-a de monetarista, mas depende do que se pretende dizer com isso. Só nos meados doa anos 70 Milton Friedemann se torna conhecido e já há trinta anos antes a Alemanha praticava a mesma política. Não creio que se possa chamar de monetarista. Os alemães são um povo inteligente e com capacidade para criar soluções por si mesmos. A política alemã é no fundo muito simples. Numa economia baseada numa moeda fiduciária o único bem potencialmente infinito é a moeda. E isso não é bom. É o pior que pode acontecer. A memória da hiperinflação está bem presente nos alemães, mas os países latinos bem se deviam lembrar do imposto escondido, ínvio e desigualitário, esse bem mais desigualitário que qualquer outro, chamado inflacção.

A política alemã não deveria ser chamada de monetarista, mas de realista. Não se podendo brincar com a moeda, uma economia vale pelo que vale a economia real, não manipulações monetárias. Ou seja, o mais importante numa economia é a sua estrutura, não políticas ocasionais de conjuntura, por mais úteis que sejam. Sabíamos isto, todos sabíamos isto, que era a estrutura da economia que tinha de ser adaptada e nada ou pouco fizemos.

Em quarto lugar, não tenho ideia de que alguém tenha posto uma pistola ao pescoço dos portugueses para pedir empréstimos no estrangeiro, nem me lembro de ter visto ministros das finanças ou primeiros-ministros sequestrados para os obrigarem a pedir empréstimos ao exterior. Memória curta a minha, talvez, mas confesso que perdi esse episódio. Tenho a vaga memória que se pedimos empréstimos foi de nossa palavra, e por nossa exclusiva vontade.

Em quinto lugar, o que significa pedir um empréstimo? Significa dizer a outros senhores que querermos o dinheiro deles, mas que depois o devolvemos, e em acréscimo pagamos o serviço que nos estão a fazer. Foi o que fizemos. Dissemos a esse mundo fora que lhes íamos pagar o que devíamos. Se não nos acreditassem não nos tinham emprestado dinheiro. Acreditaram em nós. Podemos agora dizer que esses senhores foram ingénuos e que não deveriam ter acreditado em nós. Estaríamos assim a dizer que somos gente que não merece confiança. Nesse caso, estão eles já começando a acreditar nessa faceta. Não nos façamos ofendidos por isso.

Em sexto lugar, deixemos o jargão técnico e falemos como gente. Que nome se dá a quem não paga as dívidas? Caloteiro. A simples hipótese de se dizer que os outros são malandros porque nos exigem o que prometemos é sinal de baixeza de carácter. Um homem vale pela sua palavra, criaturas sem palavra não valem nada. Por isso os que criticam os finlandeses e alemães por estarem a ser pouco solidários mostram assim a baixeza da sua extracção e a falha educação que tiveram. Não lhes ensinaram que quem deve voluntariamente paga, cumpre o seu dever e engole, não se queixa do cobrador. O cobrador está a ser coerente com o que fez. Somos nós quem não o está a ser.

Em suma goste-se ou não do euro, goste-se ou não da dívida, existem ambos. E ambos existem por vontade nossa. Adultos são responsáveis e não fazem birras.

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