quinta-feira, 6 de maio de 2010

O desprestígio dos criadores V

A ênfase na destruição não é causa, mas sintoma deste estado de espírito. O espírito democratizante na cultura em geral precisa de destruir, não para construir, mas pura e simplesmente porque não sofre confronto. Destruir é sempre mais fácil que construir. A lista de obras-primas que eu seria capaz de destruir é sempre infindável, as que eu seria capaz de fazer será forçosamente mais restricta.

O assento na desconstrução não revela por isso espírito crítico, ao contrário do que os seus cultores gostam de afirmar, mas apenas necessidade de criar espaço próprio. O seu parente é o “Lebensraum”. O criador contemporâneo sente-se oprimido, não por limitações legais impostas pela sociedade, mas pela grandeza do que herdou. Precisa de destruir para conquistar espaço vital, não para construir algo de sólido em substituição. A sua política é a da terra queimada, do nazi criando o vazio na terra russa. O parentesco entre a cultura contemporânea e o nazismo é aliás evidente e participa dos mesmos vícios da modernidade. São filhos da mesma fonte. De uma vontade de grandeza generalizada tornando pequenos todos os outros. Paradoxo apenas aparente, porque quando todos querem ser grandes todos são pequenos.

O que se passou com os criadores não é algo de muito diverso do que se passou com os políticos, os jornalistas, os modelos. A glória efémera prevalece e por isso mostra a sua insignificância. O problema é que os criadores têm uma responsabilidade bem mais grave nessa matéria que os outros. São eles que têm de expressar a grandeza, mesmo que não a encarnem. Não consta de Carlos Magno fosse grande poeta. Um político não precisa de expressar em objecto a sua grandeza. Exprime-se nos seus actos.

Os criadores, pelo contrário, apenas evitam a submersão dos séculos mostrando o que está acima deles. Horácio, um dos grandes estetas, mostrou bem isso ao afirmar que tinha criado um monumento mais perene que o bronze. Fez algo para ser admirado nos séculos, porque os séculos sabem que não o podem agarrar na plenitude, apenas o podem passar para a geração seguinte.

O abuso da soberania, a sua comercialização e em sequência a sua trivialização fazem dos criadores plenamente criaturas do seu século, prontas a morrer com ele, ou mesmo antes dele. Criaram para si mesmos esse estatuto, quando seria o seu papel criar estatutos para outros. Os grandes senhores da história sabiam que precisavam de vates para serem imortais. Sem Alcuíno Carlos Magno perderia muito da sua imagem, sem Virgílio Augusto seria um pouco mais pequeno. Sem Marco Polo não perderíamos mais que dois segundos da nossa vida a pensar quem seria Kublai Khan. Estaria guardado para os eruditos, as pessoas cuja paciência ressuscita em luz ténue geralmente mediocridades. Benditos sejam pelo seu trabalho, que me merece o meu maior respeito. Mas não agitam fogueiras, lançam fogos, não queimam o mundo, não lhe dão calor nem o iluminam.

O curioso nesta situação é que são os próprios criadores oficiais que criaram esta situação. E que a população em geral (incluindo os intelectuais menores) que partilham esta visão. Cantam uma ladainha da importância da cultura, mas não fazem peregrinações para ouvir os criadores. Precisam deles na sua corte, à sua volta, apenas para afirmarem que dão importância à cultura. Mas acham-nos tão irrelevantes quanto o comum dos mortais. Sejam eles intelectuais, políticos, empresários, jornalistas, quando procuram os criadores é para a entrevista, para ocupar tempo, não em procura de iluminação.

Talvez os criadores tenham tido o que merecem, mas pergunto-me se uma sociedade merece apenas isto. Talvez tenha chegado o momento de criadores retomarem a soberania, discreta, com noção de serviço, pensando além dos séculos, trabalhando para o perene, reconhecendo o seu lugar. Processo que levará gerações, talvez. Porque o homem é assim feito. Se um monarca não se comporta, fere a própria ideia de monarquia, se um político é acusado de tráfico de favores é a classe política que sofre, se um taxista é malcriado todos lhe ganham a fama. Pádua não passou a ser terra de santidade por ter abrigado um santo.




Alexandre Brandão da Veiga

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