quinta-feira, 22 de abril de 2010

Orgulho e preconceito




Na mesma semana, Mário Soares diz que a Descolonização do Ultramar português foi «a melhor possível» e Irene Pimentel anuncia que afinal descobriu uma «relação tensa» entre Salazar e o Cardeal Cerejeira.
Ambos se atravessam na história assinando a memória futura.
Soares, sabe-se, tem coragem física. Mais do que isso, tem um discernimento político invulgar que lhe abriu caminho para a corrida a Belém, em 1985, com 8% das intenções de voto e que me deu algum descanso enquanto foi Presidente da República durante a hegemonia cavaquista. Foi um dos homens que enfrentou tenazmente a ambição comunista, em 1975. Mas cedo aceitou, sem contestar, o isolamento desse protagonismo político. Ora quem tenha a memória limpa de vaidades, sabe, por exemplo, que foi José Manuel Casqueiro quem travou a Reforma Agrária, de pé, na estrada, junto a Rio Maior. Sabe que foi o Bispo de Aveiro quem tocou os sinos, semanas a fio, desencadeando a resistência do Norte. Sabe que também Sá Carneiro estava na Fonte Luminosa e que boa parte da multidão na Alameda o seguia, e não a Soares. Sabe que, com todos os equívocos, foi Freitas do Amaral quem integrou na democracia uma direita prejudicada e revoltada. Sabe que foram os católicos, e não os laicos, que defenderam o Patriarcado, no Campo de Santana, do cerco da vanguarda de esquerda. Sabe que os «Nove» militares que assinaram o documento no Verão Quente arriscaram a pele, como devem, e que Eanes conduziu com coragem e mestria o contragolpe do 25 de Novembro que nos restituiu a democracia. E sabe que foi Mário Soares quem conduziu uma descolonização muito difícil e miserável. Os próprios líderes africanos estranharam a facilidade da entrega que sacrificou milhares de colonos e de autóctones e que favoreceu inequívocamente a vantagem soviética no xadrez da Guerra Fria. Não é preciso passar à história sem mácula. É preciso passar com verdade.
A mesma verdade que Irene Pimentel agora resgata, tardiamente, depois de ter publicado, sobre o século XX português, um número de obras suficiente para lhe garantir o Prémio Pessoa. Como é possível só agora ter ficado surpreendida com as divergências entre o Presidente do Conselho e o Cardeal-Patriarca de Lisboa? Não conheceria a correspondência entre ambos? Não teria avaliado os dados, para além da história ideológica do Estado Novo e da esquerda pós-Abril?
Irene Pimentel espanta-se com o «casamento difícil» e a «relação muitas vezes tensa (de Cerejeira) com o amigo de Coimbra». E louva a forma destemida como o prelado se opôs à presença da Juventude hitleriana num evento em Portugal ou como, em 1938, falou de uma forma moderna sobre os totalitarismos. O seu livro mais recente, nas palavras de José Manuel Fernandes, «revela um Cardeal bem diferente do que a historiadora imaginava antes de iniciar a investigação». Antes tarde.

14 comentários:

Irene Flunser Pimentel disse...

Só dois reparos:
- Em primeiro lugar, eu não louvei «a forma destemida como o prelado se opôs à presença da Juventude hitleriana num evento em Portugal ou como, em 1938, falou de uma forma moderna sobre os totalitarismos». Mão é esse o trabalho de uma historiadora.
- Em segundo lugar, chamo-lhe a atenção apr ao facto de o seu texto estar repleto de ideologia.

Inez Dentinho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
joão m. m. wemans disse...

Diz-se que a verdade, tarde ou cedo, se dá a revelar; apesar dos esforços feitos para ocultá-la.
Muitas coisas que presenciei, ao longo de 50 anos de vida, foram "interpretadas" por historiadores afectos a ideologias, dando dos factos uma versão afastada do realmente sucedido. Estudiosos e historiadores recentes, têm afirmado coisas que correspondem à minha percepção original das vicissitudes de Portugal no mundo - será falta de ideologia?
Quanto aos políticos; é preciso que morram, para lhes fazermos nós o retrato...

Inez Dentinho disse...

Cara Irene Pimentel
Agradeço o seu comentário. Repare que não coloco entre aspas a expressão «forma destemida». É a leitura que faço do artigo do Público sobre a sua nova obra.
A ideologia que me atribui é própria de um texto de opinião de um blogue. Este, por sinal, está replecto de factos.
Há um outro reparo justo que me pode fazer: porque não assinalei devidamente a coragem que é preciso ter para desfazer estereótipos sobre a História recente? Faço-lhe justiça de forma indirecta e crítica. O que é enviesado.

miguel vaz serra....... disse...

Tem razão a Inez quando diz que Mário Soares espantou os próprios africanos. Foi tudo feito de uma forma anormal e impensável. Até o escudo que deveria ter sido sempre o mesmo, não o era em África o que depois significou a miséria para tantos milhares de Portugueses. Essa página da nossa história está para Portugal como a Inquisição está para o Vaticano e o inquisidor é Mário Soares. Ninguém nunca vai esquecer isso, como nunca vamos esquecer tudo o que os políticos têm feito de e para mal de Portugal, por mais que eles se esforcem em provocar amnésias profundas.
Ainda hoje li uns comentários de uns políticos que como mínimo fazem corar as pedras da calçada de tanta "lata".
Em relação a "...e que Eanes conduziu com coragem e mestria o contragolpe do 25 de Novembro que nos restituiu a democracia..." a Inez esqueceu-se de dizer que o contragolpe foi contra o Partido Comunista Português, o mesmo que está nas bancadas da nossa AR vomitando diariamente moral democrática aos colegas do parlamento e que numa quase guerra civil, queria instaurar uma ditadura ainda pior, mais feroz e brutal que a que tínhamos antes de 1974. Nunca pediram desculpa formalmente por essa aberração, diga-se de passagem.
É bom que se chame às coisas pelos nomes pois muita gente nova não viveu essa parte da nossa história como eu vivi.
Cunhal que tanto veneram, era o cabeça do golpe infame e brutal mandado pela antiga URSS. Estaremos em plena democracia quando estiver escrito tudo isso nos livros das escolas!

Inez Dentinho disse...

A Igreja geriu o cisma pós-Reforma entregando a palavra aos Jesuítas e a força aos Dominicanos.
Nessa época, por toda a Europa, sobretudo em França, na Flandres, na Alemanha e em Inglaterra a carnificina, com base nas divergências religiosas entre facções foi total.
No Sul a Inquisição dominicana também não foi branda mas ficou mais famosa porque mais organizada. A Inquisição é o embrião da Justiça dos nossos tribunais, com processos prevendo a «defesa» e acusações «fundamentadas». Há quem diga que, nesse tempo, foi «a mais caridosa das intolerâncias religiosas». (isto só vale pela rectórica).

Ricardo Alves Gomes disse...

Inez,

Redondo, muito redondo, se me permite uma nota de apoio crítico aos comentários que veio acrescentar ao "post".

Parece ter recuado, quando confrontada com Irene Pimentel, a própria. Mas isso é de somenos e até condiz com o título que lhe dá mote.

Que a História está impregnada de ideologia ou sectarismo - é claro que está - e é difícil que deixe de assim ser.

A dialética, o contraditório e os saltos epistemológicos - que o tempo costuma encarregar-se de fazer emergir - é que vão expurgando os adornos da proximidade com os factos, e os retratos tirados demasiado ao perto.

Ora, ironia das ironias, este seu último comentário, que nos reconduz para aí aos idos de Trento, parece colidir com o a mensagem certeira que perpassa nas linhas do texto matriz.

Mais não posso acrescentar, pois contrariá-la em matéria de História da Igreja, como gostava, seria falar sem conhecimentos bastantes e redondaria num arrazoado de "orgulho e preconceito" desfasado dos fundamentos e da propriedade que a abordagem do assunto exigirá.

A não ser que fosse uma prosa ligeira, do género - "Irene é soares e Inez é fixe!"

Largue a Igreja e aferre-se nos "cavaquinhos", que nestes, o seu orgulho e preconceito fica a matar, fazendo as delícias de quem absorve a brava tinta da sua pena.

joão m. m. wemans disse...

Concordo com M. Vaz Serra na parte que toca ao nosso tempo.
Quanto à Inquisição:
- Julgo que foi no Oliveira Martins que li que a Inquisição foi trazida a Portugal para pôr cobro a excessos cometidos pelo Povo (ou seja, por "espontãneos")... Li noutro lado que, mais tarde, presos de delito comum pediam para ser julgados pelo Tribunal da Inquisição por este ser bem mais cuidadoso por um lado, e brando na aplicação de penas por outro, que os tribunais civis.
As lendas negras são o que são.

Inez Dentinho disse...

Caro Ricardo
Irene Pimentel afronta agora o seu meio intelectual, o que requer coragem. Já esta semana o Cardeal Patriarca de Lisboa louvou este livro e enalteceu o seu antecesor Cerejeira. Também na Igreja as coisas levam tempo a sair. Lembro-me do escândalo que causou uma entrevista que o Cardeal Ribeiro me deu(das 3 únicas em 30anos) elogiando o papel de Cerejeira no seu tempo.
Questiono o tom de descoberta porventura ditado pela gestão comercial de um novo produto editorial e/ou o preconceito geral que terá retardado esta tese.

Ricardo Alves Gomes disse...

Inez,

Bem... agora é que do cotejo do "post" com este seu comentário parece resultar uma cambalhota total!

Não vejo mal nenhum em que tenha arrepiado caminho.
Agora, um pé na lancha e outro no cais costuma dar banhada...

P.S.
Não começo por "Cara Inez" pois, não sei porquê, mas não me soa bem.
Aceito sugestões, alternativas ao estilo inaugurado pelo Eng. Guterres do "Caros Portugueses e Caras Portuguesas" e que parece fazer escola.
Será um detalhe. Por isso mesmo, da maior importância.

Inez Dentinho disse...

Insisto: Trata-se de uma descoberta tardia para quem há muito escreve sobre a realidade do Estado Novo. Mas antes tarde que nunca. E expô-lo pede coragem.

joão m. m. wemans disse...

- E fica sempre bem reconhecer as qualidades dos outros.
Deixo aqui uma máxima de La Rochefoucauld:

"C'est en quelque sorte se donner part aux belles actions que de les louer de bon coeur"

Táxi Pluvioso disse...

É coisa mais além de orgulho, é mesmo dor de corno (aquilo que esse Soares, o descolonizador exemplar, sente). bfds a todos

José Baldomero Pinto Vacondeus disse...

Anaalisei todos os comentários que recebeu.
Já agora convido a ver o meu blgue que tem o seguinte endereço:
jvacondeus.blogspot.com
Se puder comente
J.V.