sexta-feira, 30 de abril de 2010

O desprestígio dos criadores II


Comecemos pela primeira causa. A pretensão soberana abusada. Poeta, criador, existem ligações semânticas entre um e outro conceito. Ou porque revela, ou porque põe o que não estava antes, o criador é um exercitante de poder. A grande arte é sempre uma forma de soberania.

O romantismo tem má fama e provavelmente justa em alguns países latinos onde passou apenas pela via do sentimento e sem a elaboração teórica germânica, bem mais racional e estruturada do que se conhece em terras meridionais. Mas tem de se reconhecer que teve um efeito perverso que se mantém até hoje em dia: a presença do autor na obra de arte. A sua marca é inevitável, a sua presença não. Ora quando o discurso e a prática dão ênfase ao autor em demasia, o soberano entra apenas porque entrou como soberano. Não para fazer justiça, não para corrigir o mal, não para servir. Apenas entra, em representação.

Isto já de si criaria risco, mas pode ser necessário. Os senhores da Flandres, da Borgonha e depois da Bélgica, faziam as "Joyeuses Entrées", os reis medievais peregrinavam nos seus reinos. Essa presença do soberano é importante em certas situações. Mas fazer essa peregrinação sem ter consciência dos riscos é apenas temerário.

Mas associada a esta pretensão soberana ocorrem dois fenómenos que vêm aumentar o seu risco: a democratização da soberania e o triunfo do excesso.

Quando um Mozart ou um Beethoven, ou mesmo um Balzac lutam pelo estatuto do criador, fazem obra útil numa sociedade que os valoriza cada vez mais, mas lhes deixa pouco espaço de liberdade e ainda não lhes confere o estatuto que mereciam. Mas ao longo do século XIX o estatuto do artista vai em crescendo até que chegamos à primeira metade do século XX e atinge o seu apogeu.

O artista sente-se no direito de imperar sobre a sociedade, de lhe orientar não apenas os gostos, mas o modo de vida e as decisões políticas. Se o génio antes era injustamente tratado pela sociedade, passa-se rapidamente do reconhecimento pela sociedade ao abuso pelos artistas.

O artista torna-se insaciável, tirânico, quer cada vez mais ser idolatrado. E cada vez expressa mais o seu desprezo pela sociedade, que seria ignorante, incapaz de apreciar o seu valor, indigna para receber as suas migalhas. Não se espante por isso o artista que o feitiço se tenha virado contra si. De tanto desprezar passou a ser desprezado. As pessoas não gostam de ser permanentemente chamadas de ignorantes, de intranscendentes, de filistinas. O povo fartou-se e o soberano é apupado nas ruas. Há alguma justiça poética nisso.

Mas para o desprestígio dos autores conta também a democratização da soberania. Todos quiseram ser artistas, criadores, autores. E, para o poderem ser, desvalorizam a possibilidade de grandeza. O que os fez subir é o que os faz objecto de desprezo. Se qualquer um pode pretender ser artista ser artista, esta é tarefa para qualquer um.

Abusaram pois da soberania duplamente. Abusando do poder que lhes dava, e subindo graças ao seu desvalor. Não se pode pois acusar as populações de desprezarem de modo mais ou menos clandestino ou público os criadores. Não se gera respeito desprezando.

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