quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O regresso de Hipácia II

Cientista, mais uma vez ninguém duvida. Mas cientista e filósofa. Nada há de mal nisso. Um cientista intranscendente sob o ponto de vista filosófico nunca foi criativo. A questão é que a filosofia da época era totalitária. Mais uma vez, para o bem e para o mal. Uma escola filosófica não era apenas um quadro mental, era um modo de vida.

Teologia e ciência não se separam para um cientista da época e nada prova que Hipácia fosse excepção. Mais um exemplo de modernidade?

Muita da ciência da época foi destruída pelos cristãos e perdemos séculos de desenvolvimento graças a essa destruição. Hipácia é mais um exemplo disto. Tirada algo temerária, temo bem. Em primeiro lugar, porque faz actuar o célebre “se” histórico. E nesse aspecto os historiadores foram os primeiros cientistas a ter consciência (embora não os primeiros a formalizar a teoria) dos sistemas complexos. Não se pode afirmar nunca com certeza sobre o “se” variante.

Mas podemos pensar alguma coisa sobre isso. Quando vemos o que fez evoluir a ciência europeia a partir sobretudo dos finais da Idade Média e na Idade Moderna, vemos que é impulsionada por três factores que o pensamento antigo nunca foi capaz de integrar. O movimento rectilíneo como natural, a dignidade da matéria como objecto de pensamento científico e a valorização positiva do infinito. Esses três elementos essenciais para ciência moderna são conquistas do cristianismo. Lembro mais uma vez a tese do “falsus circulus" de Santo Agostinho” e a dignidade da matéria no cristianismo (Cristo tinha um corpo, e o corpo glorifica-se) e sem infinito não existe análise nem teoria dos conjuntos. Se a ciência antiga se pudesse desenvolver independentemente do cristianismo teria de ir buscar ao cristianismo e integrar no seu centro estas suas premissas vitais. Ou seja, tinha de se tornar cristã de alma, mesmo que não de fé.

Uma grande cientista. Sem dúvida. A melhor matemática da época parece. O problema é o ponto de comparação. A época não se comparava a Eudoxo, Euclides ou Arquimedes. Em parte nenhuma do mundo nessa época surgiram matemáticos realmente originais e criativos. Talvez eu seja o melhor matemático do meu prédio, quem sabe? Mas suspeito que a minha glória por essa via é diminuta. Grande erudita em matemática? Tudo indica que sim. Grande criadora? Tudo vai no sentido oposto.

E finalmente a cereja no bolo, o que se torna mais erótico para a propaganda moderna: vítima do cristianismo. A tese é velha, Gibbon já a tinha aventado.

Mais uma vez no entanto, raciocínio apressado. As versões são algo diversas, mas é preciso colocar a coisa no seu contexto.

Em primeiro lugar, o Egipto era famoso na Antiguidade pelo seu fanatismo. Juvenal na Sátira XV, se bem me lembro, relata o facto. Juvenal aliás mereceria melhor estudo pela nossa época porque melhor relata os sentimentos da classe média actual que os doutoramentos em sociologia. Essa maravilhosa sociedade pagã, que supostamente vive de tolerância, tem afinal fenómenos seculares de fanatismo, em que os adeptos de deuses diferentes se matam entre si por considerarem o deus do vizinho falso. Não foi o cristianismo a inventar o fanatismo humano. O episódio do assassínio de Hipácia passa-se em terra especialista no fanatismo. O cristianismo nada trouxe de novo na matéria.

Em segundo lugar, tudo indica que o seu homicídio ocorreu no contexto de oposições entre os judeus e os cristãos. Uma História que se encontra por contar, porque não bem pensante, é a dos ódios e perseguições dos judeus em relação aos cristãos em expansão, de que há sinais sobretudo entre os séculos II a IV d. C. Os cristãos não eram ainda suficientemente poderosos para impedir a perseguição, mas já o eram para ser temidos e sentidos como concorrência. Muitos judeus na época não teriam ficado agradados por o cristianismo crescer exactamente por ter abdicado do vínculo étnico. Não queriam eliminar a causa, mas detestavam os efeitos.

Seja como for, tudo indica que o ódio original não seria contra o paganismo, mas contra os judeus. Entenda-se; não estou a fazer juízos morais ou a querer justificar seja o que for. Apenas mostro que a História tem bem mais complexidade do que parece.

A ironia da História é que o paganismo tardio hoje em dia quase não tem detractores. É simples: são ignorados. Quando ressurgem há sempre uma recuperação abusiva dos Juliano o Apóstata e das Hipácia, e há-de chegar o dia dos Símaco e Libânio. Não faz mal. Quem os conhece realmente admira-os na sua devida medida e por isso não os usa.

E o vitorioso cristianismo, por outro lado, esse sim é atacado mais uma vez por todos os lados. Por pessoas que o ignoram profundamente, mas ainda ninguém os informou do facto. Julgam que o cristianismo é uma religião do povo, dos desprovidos intelectuais, e por isso julgam que lhes está acessível. Esquecem-se por isso que, quando o fazem, não demonstram que conhecem o cristianismo, mas que só por serem desprovidos o podem criticar.

Não vi o filme e quero ir ver. Não sei se será bom ou não. Mas parece-me bom ao menos tentar vê-lo. Vi no entanto o que sobre ele se disse, e os livros e comentários que se fazem sobre Hipácia, e aconselho vivamente a deixá-los no esquecimento na sua maioria. Hipácia seria a primeira a achá-los indigentes.







Alexandre Brandão da Veiga

1 comentários:

Livre Pensador disse...

Nãda me diverte mais do que observar como o crente em um determinado credo tenta defender o indefensável! Sabes quanto de outras religiões ditas pagãs vosso cristianismo bebeu? Devias ler Mencken, Ingerssol, Volteire, enfim, pessoas que aprenderam a pensar desde cedo. O cristianismo é mais uma dentre tantas outras religiões absurdas que seguem a máxima o home prefere crer em algo a nada crer! Como todas as outras anteriores, o Cristianismo também passará. Amém!