O humor tem ideologia?
O Yes, Minister/Prime Minister era a série favorita de Margaret Thatcher. E também de Friedrich Hayek. Não é difícil compreender porquê. Para além de ser uma série engraçada, o Yes, Minister tem também uma acentuada consonância ideológica com as posições de Hayek ou Thatcher. A série apresenta uma forte influência da teoria da escolha pública; a concepção da intervenção estatal como geradora de custos e ineficiências, ou a noção de uma motivação egoísta no comportamento de políticos e burocratas – os primeiros motivados pelo desejo de ganhar eleições e exercer o poder, os segundos pela maximização orçamental dos seus serviços, da qual derivam prestígio e poder – são temas recorrentes da série. Como referem John Blundell e Colin Robinson, do Institute of Economic Affairs (“the UK's original free-market think-tank”): “To anyone versed in economics these programmes are not only entertaining but also pure public choice”. Um dos criadores da série, Antony Jay (ou melhor, Sir Antony Jay – foi nomeado cavaleiro em 1988, por sugestão do governo… Thatcher) descreveu a teoria da escolha pública como estando na base de praticamente todos os episódios do Yes, Minister/Prime Minister (para além de se auto-descrever como um “radical right-winger”). A sua perspectiva é corroborada ainda hoje: um artigo de 2006 na revista do Institute of Economic Affairs, a Economic Affairs, caracteriza a série como um instrumento ideal para leccionar a teoria da escolha pública.
Isto leva-me a uma questão: o humor é ideológico? A ligação entre o Yes, Minister/Prime Minister e a teoria da escolha pública sugerem que não: afinal, há muita gente que rejeita a escolha pública ou é de esquerda mas aprova o Yes, Minister/Prime Minister. O melhor exemplo é Tony Benn: doyen e símbolo da esquerda britânica, mas também fã da série. Contudo, creio que a resposta não é tão simples: o YM/YPM foi co-escrito por um anti-Thatcherista, Jonathan Lynn (depois de Thatcher ter participado num sketch do Yes, Minister, Lynn disse que ela tinha tomado “her rightful place in the field of situation comedy”); e a série tem um lado que apela à esquerda também. Sir Humphrey representa não apenas o burocrata que defende os seus interesses, ele é também o símbolo do privilégio, da tradição, das classes sociais educadas em escolas privadas (e que enviam os seus filhos a escolas privadas), das “old boy networks” de Oxbridge. Seria a série tão popular sem este lado? Suspeito que não.
O teste mais contemporâneo à relação entre humor e ideologia é-nos dado por programas como o Colbert Report ou o Daily Show. Suspeito que há muitas pessoas de direita em Portugal que gostam do Colbert e do Jon Stewart (aliás, há algum tempo atrás, João César das Neves caracterizou o Daily Show como “genial” num artigo de opinião – embora o seu “compliment” se tornasse crescentemente “backhanded” ao longo do texto). Mas esse não me parece um indicador fiável: é muito mais fácil rirmos do humor político quando ele é sobre outros países, sobre políticos em quem não podemos votar, e cujas decisões nos favorecem ou prejudicam de forma muito mais indirecta. Nos EUA, há uma boa parte da direita que não acha nenhuma piada ao Jon Stewart (como disse o Bill O’Reilly, “You're Jon Stewart. If you go to Alabama you're going to be killed. You can't go where these center-right people are because they'll stone you to death”). E, igualmente, há uma boa parte da esquerda que não acha piada p.ex. ao P.J. O’Rourke (ver este artigo do New Republic. Frase-tipo: “Can [O'Rourke]’s stuff really being getting worse every time, we wonder? Of course the answer never ceases to be in the affirmative.”) Em Portugal, temos muito pouco humor político (aliás, temos muito pouco humor tout court, mas essa é outra história…) que seja ideologicamente alinhado: o humor político que temos aponta em geral para os alvos fáceis e óbvios, e raramente se aventura por questões controversas. Uma excepção em termos de humor politicamente alinhado (& nothing else of what I said above…) é o sketch dos Gato Fedorento sobre o aborto. A reacção muito distinta que suscitou da parte de figuras ‘pró-vida’ e de ‘pró-escolha’ leva-me a pensar que o humor é (também) mediado pela posição ideológica.
8 comentários:
Se calhar até é mas em cada piada cada um pode ler o que quiser. Daí talvez os paradoxos que apontas.
Belo post. Sem grande reflexão, arriscava-me a dizer duas coisas. A primeira é que o humor tem seguramente ideologia, na medida em que necessariamente participa, ou toma parte nela. As ideologias, com efeito, perpassam todas as formas de comunicação humana, sendo o humor, nesse sentido, um poderoso instrumento ao seu serviço, na medida em que se constitui como uma forma muito específica de comunicação: subtil, dissimulada, não argumentativa, apelativa, forte, intuitiva, etc.
O «Ensaio sobre o Riso», de Henri Bergson, é, neste sentido, um livro que vale a pena ler. Lembro, por exemplo, quando ele chama a atenção para a ilha de insensibilidade que é sempre pressuposta pelo riso, a partir da qual se pode falar - e brincar - de coisas que, de outro modo, seriam, em determinadas circunstâncias, pessoal e/ou socialmente proibidas (por ex: enterros, mortes, tragédias, etc.).
A segunda é que muitas vezes a ideologia, ou melhor, os ideólogos é que não têm humor. E nesse sentido caberá sempre perguntar se não se terão tornado, em tal caso, desumanos? Várias vezes, aliás, dei este conselho a pessoas que me perguntavam o que achava do político Francisco Louçã - e, consequentemente, da sua política: «Não devemos confiar num homem que não se ri.»
Tens razão, Pedro. Há de facto uma tendência para "vermos o que queremos", e um artigo recente no no International Journal of Press/Politics explora isso no humor. O artigo é sobre o efeito da ideologia política na avaliação do Colbert Report, e os resultados encaixam no teu comentário:
"there was no significant difference between [ideological] groups in thinking Colbert was funny, but conservatives were more likely to report that Colbert only pretends to be joking and genuinely meant what he said while liberals were more likely to report that Colbert used satire and was not serious when offering political statements." (O artigo - que tem um título fabuloso, "The Irony of Satire" - está disponível gratuitamente aqui: http://hij.sagepub.com/cgi/content/short/14/2/212)
Contudo, esta capacidade de "vermos o que queremos" no humor não é absoluta, e o artigo também argumenta isso: é o "deadpan style" do Colbert Report que o torna mais ambíguo e assim também mais susceptível de leituras diferentes (em comparação, p.ex., com o Jon Stewart).
A inexistência de humor ideologicamente orientado em Portugal prende-se, a meu ver, com uma dificuldade generalizada, principalmente no que toca à televisão, de assumir posições ideológicas. A noção de imparcialidade imposta sobre estas estruturas só agora, com um Jornal Nacional de sexta à noite claramente anti governo, começa a ser quebrada.
Só a opinião escrita, cada vez mais por influência dos bloggers (não só na blogosfera, mas também na imprensa), tem de facto posições ideológicas definidas.
Parece-me mais um problema de estruturas do que uma falta de ideologia por parte dos nossos comediantes, como muito bem se demonstrou com o tal sketch dos Gato Fedorento.
Concordo com o Pedro Lains. Já vi e revi e voltei a ver as séries e sinceramente nunca consegui chegar a nenhuma conclusão. Humphrey é claramente aquilo que aponta:
"símbolo do privilégio, da tradição, das classes sociais educadas em escolas privadas (e que enviam os seus filhos a escolas privadas), das “old boy networks” de Oxbridge." O que o torna por si só um conservador.
Mas outras vezes a série parece dirigida tanto para a "esquerda" como para a "direita". E talvez tivesse sido esse o objectivo.
Gonçalo, desculpa a resposta e agradecimento tardio aos teus comentários. Concordo em geral com a tua análise sobre o humor. A questão que achei estimulante é a da potencial falta de humor dos ideólogos. Não digo isto em relação ao exemplo concreto que dás - não tenho qualquer informação sobre o seu sentido de humor, e não posso opinar - mas é uma questão interessante: os ideólogos não têm humor?
Confesso que não conheço ideólogos suficientes para avaliar com validade isso. Nos poucos casos de "ideólogos" (tanto à direita como à esquerda) que conheço, são (em geral) pessoas com bastante sentido de humor - excepto quando se chega à sua ideologia. Dito isto, ao fazer este exercício mental, tendo a classificar os que conseguem rir-se da "sua" ideologia como "não-ideólogos", o que obviamente acentua esta minha percepção.
De qualquer forma, isto relembra-me uma das minhas anedotas favoritas. Como a li sobre Marx, escrevo-a também nessa versão - mas se substituirem Marx por Friedman, Nozick etc resulta igualmente. A anedota: As últimas palavras de Marx, antes de morrer, foram: "Mas pessoal, isto é só uma teoria!".
A anedota aparecia num manual de ciências sociais, para explicar o risco da reificação de teorias. Uso-a (sem grande sucesso, diga-se passagem...) nas minhas aulas para esse fim. Mas creio que capta bem o fenómeno a que está associado a falta de humor de "ideólogos".
Daniela: sim, concordo. E creio que é a ambiguidade ideológica que daí deriva no Yes, Minister que o torna mais amplamente apelativo.
zBk: é verdade, ams sinto mais a ausência de bom humor político em Portugal que de humor ideológico na televisão. Em Portugal temos pouco bom humor (que seja subtil, arriscado e inesperado) - e ainda menos bom humor político. O que há aponta sobretudo para alvos fáceis, com piadas óbvias. E sem querer parecer exagerado, creio que isso é uma lacuna não só para a nossa tv, como também para a nossa democracia.
Caro Carlos,
Jogando com as palavras do título, o que eu acho pior é quando a ideologia não tem sentido de humor...
E, em Portugal, a política dá frequentemente vontade de rir sem ser capaz de se rir de si mesma!
abraço
miguel
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