terça-feira, 24 de março de 2009

II Em nome da matemática

A matemática é objectiva

Nesta acepção popular não me parece que seja verdadeiro. Não que eu embarque na fraude pós-moderna que afirma que a ciência é um ritual como outro qualquer. Se assim for, não se percebe porque razão quem defende esta tese vai a um especialista ser operado ao cérebro e não a uma lavadeira. Esta última lá terá os seus rituais para a operação, nem que seja por via do martelo.

O que se quer realmente dizer com isto é que a matemática é inumana, o que é absolutamente falso. Os matemáticos são seres humanos. Seria preciso lembrá-lo? Mas mais importante que isto, muitos bloqueios psicológicos, humanos, tiveram um papel essencial na História da matemática. Os números imaginários são conhecidos há muitos séculos. Apareciam nas equações quadráticas e os matemáticos benziam-se quando os resultados eram reais. Eram vistos como um passo desagradável que com sorte se poderia esquecer.


Da mesma forma, geometrias não euclidianas já se faziam desde há muito tempo. Muito matemático para demonstrar que a violação do postulado das paralelas gerava contradicção fizeram matemáticas não euclidianas. E sabiam que o estavam a fazer. Faziam-no intencionalmente. Mas a aceitação psicológica da legitimidade (conceito de valor se o há) da geometria não euclidiana (ou das geometrias) estava por fazer. Foi necessário dar esse passo.

A matemática é neutra.

Neutra em relação às civilizações, às religiões, às filosofias? Não me parece. Mais uma vez o que se quer dizer é antes do mais que a matemática está fora de cultura, que é inerte em relação a ela. Nada mais falso. A matemática é feita por matemáticos. E estes vivem numa cultura e só a superam na medida em que bebem dela. É sempre nos seus quadros que trabalham, nem que seja para os negar, completar, superar ou criticar. Nada de mais básico que este fenómeno na cultura.

Arquimedes e os indianos teorizaram sobre números monstruosos. Arquimedes e Eudoxo (dizem que Anaxágoras reconheceu os infinitesimais, mas parece-me algo abusivo) conheceram o método da exaustão. Mas a verdade é que a análise infinitesimal nasce em espaço cristão.

Não que os gregos desconhecessem o que fosse o infinito. A questão parece-me ultrapassada desde Mondolfo. Mas sob a capa de “apeiron” estava coberto o indistinto, o infinito, o ilimitado, o confuso. Mesmo o Nirvandna poderia aqui caber.

O infinito como objecto diferenciado, autónomo, de pensamento, e positivamente valorado, é criação cristã e sobretudo da ortodoxia ocidental. Para que houvesse a possibilidade civilizacional da sua criação foram necessários quase dezasseis séculos de teologia cristã.

É evidente que a matemática, como em geral a ciência e por maioria de razão a tecnologia, tem uma forte inércia de movimento. Depois de criada, os seus desenvolvimentos são relativamente neutros. Mas a sua criação, o ponto fulcral da sua inovação e renovação, tem sempre pressupostos ideológicos.

Mais uma vez esta premissa pretende afastar a matemática do campo da cultura. O problema é que este é o único lugar comum de que padecem os próprios matemáticos ao invocarem a natureza universal da sua ciência. Algo pode ser universal quanto aos resultados e ser local quanto à criação.

Um outro exemplo dessa dependência da cultura existente é a vocação matemática. Porque existe uma crise de vocações em todo o mundo ocidental? Porque a matemática exige demonstração, noção de hierarquia e cumulação de conhecimentos. Sem demonstração, apenas há contas de mercearia. Sem noção de hierarquia, como distinguir o que é um problema profundo de matemática de um outro que pode ser até difícil mas é trivial? Sem cumulação de conhecimentos, entra em ruína toda a possibilidade de relação matemática.

Ora na nossa época o modelo vigente obedece a três princípios totalmente opostos a estes: a afirmação arbitrária e não sustentada, a igualdade planar, e um processo substitutivo no conhecimento. A afirmação arbitrária e infundada passa por liberdade. Quem a sindica passa por ditatorial, que pretende impor limites à liberdade de expressão. A igualdade planar não admite que haja hierarquia, que uns sejam melhores que outros, e por isso que quem acabou de aprender a fazer uma soma é tão valorizado (ou mais, desde que jogue futebol) quanto o que descobriu uma verdade profunda na matemática. O regime substitutivo no conhecimento leva a que o que determina o discurso seja a ultima notícia no jornal, mesmo que o discurso de hoje seja contraditório com o de amanhã e tenha sido contrário ao de ontem.

A isto juntamos a fraca valorização económica da matemática pela sociedade, que paga a administradores de empresas imensamente mais que a grandes matemáticos, e ao desejo de sucesso económico, é a sociedade a determinar em grande medida, não os conteúdos, mas o nível, a motivação e a quantidade dos produtores de matemática.

Que a matemática seja neutra é igualmente infirmado por problemas aparentemente apenas matemáticos. Pensemos na hipótese do contínuo. Vagamente suspeita de indecidível, até agora ninguém a conseguiu demonstrar nem o seu contrário.

E no entanto é tão simples de demonstrar. Basta ter um axioma que diga que Aleph apenas admite, como índices, inteiros positivos e o zero. Com este axioma fica facilmente demonstrada. Porque razão os matemáticos não ficariam satisfeitos com esta demonstração (singeleza da dita esquecida) e não se anuncia ao mundo que alguém acabou de demonstrar a hipótese do contínuo?

Porque o grande desafio não é tanto do demonstrar a hipótese do contínuo, mas integrar esta demonstração na imensa sinfonia que é a do corpo dos reais. Se os matemáticos não ficam satisfeitos e com razão, é por razões matemáticas, mas que têm assento estético e metafísico, assentes sobre a noção de todo. É verdade que um matemático pode retorquir que são razões puramente matemáticas. E ele tem direito de as ver como matemáticas, porque se incorporaram na sua ciência. Mas as necessidades e finalidades de demonstração mudaram com as épocas históricas. Um grego não tinha apenas diferentes instrumentos de demonstração. Via-a com finalidades pensadas de modo algo diverso. Dele recebemos a herança, mas fizemo-la frutificar.

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