quarta-feira, 29 de outubro de 2008

III. Islão e cristianismo

Em terceiro lugar, a Incarnação. As implicações da Incarnação vão muito além das teológicas. Já essas bastariam. Mas as restantes são bem mais ignoradas e por isso têm de ser salientadas agora.

Para simplificar, são quatro: a sacralidade da história, Deus como Amor, a ciência experimental, o paradigma da inércia.

Todos os povos têm histórias sagradas. A questão é que estas em geral se recolhem em certos momentos históricos, em que o profeta, o deus Saturno ou outra entidade de fundo mais ou menos religioso viveu na Terra. Mas a Incarnação é algo mais que um avatar como Krishna. Deus fez-se carne e ascende em carne aos céus. O espaço divino é habitado por um homem-Deus. E o espaço terreno não é profano, porque a condição de homem foi plenamente partilhada por Deus enquanto se fez homem. Não há uma distância infinita entre Deus e o homem não transposta. O Deus dos cristãos é um Deus que transpôs esse espaço.

Que Deus seja Amor é algo que não faz muito sentido para um muçulmano. Pode mesmo ser blasfémia para um islamita, porque é pretensão de limitar Deus. Aliás a santíssima trindade é igualmente uma das manifestações desse facto. As três pessoas divinas que se amam eternamente de um amor absoluto e sem fim são a garantia (algo estranha numa perspectiva de bom senso) de que Deus é amor. A Incarnação é a prova do amor infinito de Deus pelo homem. O homem cristão sabe-se infinitamente amado por Deus até ao sacrifício último, o Deus sem associados do Islão manda profetas. Já não é mau, mas dá uma muito menor dignidade ao homem. O cristão é o que se sabe amado, ou aprende a sabê-lo. Amado infinitamente. As consequências psicológicas são múltiplas. E nesse aspecto os ortodoxos orientais têm-nas mais conscientes que os outros ao salientarem a divinização do homem. Tudo ideias improváveis, improbabilidade que é sempre a marca do génio, senão de algo maior.

Que vem fazer a ciência experimental quando se fala de Incarnação? Muito simplesmente. Para um grego era inconcebível uma ciência do perecível. Ou mais justamente, porque havia ciência sobre o perecível (a geração e corrupção, o movimento em geral), uma ciência que se instalasse no perecível. Não é por acaso que só os cristãos criaram ciência experimental. O espaço do perecível é espaço que faz parte da economia da salvação. Cristo fez parte desse espaço. O argumento pode parecer algo exagerado. Seja. Mas a criação científica depende de obstáculos psicológicos que levam séculos a perceber. A dificuldade de aceitar o zero, e os números imaginários ou alternativas ao postulado das paralelas mostram como a ciência é feita por cientistas, ou seja, seres humanos integrados numa cultura.

Se o grego não criou ciência experimental, embora tenha feito experimentos, se o muçulmano não criou essa ciência, se foram padres franciscanos de Paris, ou um Bacon a lançar esse movimento, também não é por acaso. A ordem mais carnal de todas, em que o santo fundador teve comunhão carnal com Cristo pelos estigmas, era a mais habilitada a começar esse impulso. Mas em geral o cristão vê mais facilmente o mundo carnal como signo da eternidade, porque Cristo comungou plenamente desse mundo. E poude fazê-lo reconhecendo aquilo que Leibniz chamava da certeza moral da ciência. Ou seja, sabendo que a ciência não daria nunca certezas necessárias. Foi preciso o movimento de descristianização para que surgissem determinismos, e são hoje em dia os filhos dessas descristianização que lutam em edipiano extremo contra esse determinismo. Mas uns e outros apenas se afligem com ou contra a certeza porque uns e outros sofrem de um mal que o cientista cristão nunca conheceu: o de procurar que a ciência nos dê certezas existenciais. Hoje em dia, em que por várias vias se tenta usar a ciência para legitimar religiões, e nisso o budismo e a Islão são peritos, a maioria das pessoas esquece um facto muito simples: a grande ciência – foi criação da Europa cristã. Não há realmente coincidência.

O paradigma da inércia resulta do fim do “falsus circulus”, que tanto atacava Santo Agostinho. É um Hapax. Há um antes e um depois da Incarnação. Os nossos computadores quando indicam a data em todo o mundo indicam esse facto, por mais convencional que seja esse número. Um grego, e por maior de razão um muçulmano, que foi sempre menos criativo que os helenos, não seria capaz de conceber o movimento rectilíneo como o “natural”. Se o princípio da inércia surge na Europa sobre a forma rectilínea (geometricamente a coisa tem posteriormente outros desenvolvimentos, que não interessa aqui desenvolver) é por causa do cristianismo. Lembro que o cristianismo não é uma teoria da História, e por isso ainda menos uma teoria do progresso. A ideia de progresso é uma caricatura do Hapax cristão. Mas a verdade é que a capacidade de afirmar que existe um antes e um depois substantivamente diferentes, que existe um novelo que se pode desfiar (desenvolver, literalmente) é cristã.

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei bastante do conjunto de artigos e, metendo mais uma colherada numérica, lembro Nicolau de Cusa, que explicou matematicamente a Trindade, com base na recta como unidade menor e na sua evolução para o triângulo, o círculo e a circunferência, e das figuras finitas para a sua projecção infinita, chegando quase a Pascal e ao seu círculo com o centro em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma. O que a recta tem de interessante - e é sem dúvida por isso que Cusa não escolhe o ponto - é que ela é já em si mesma tripla, a união entre dois pontos. O ponto enquanto tal, isolado, o que é apenas um, não consegue sair de si criativamente, ficando na sua eterna e improdutiva igualdade.
Mas finda a divagação, queria perguntar-lhe qual é, em seu entender, a parte "judeo" da influência cristã, nomeadamente quanto aos quatro aspectos que foca nos artigos.
Marta Costa Reis

Alexandre Brandão da Veiga disse...

Obrigado pelo seu interesse. Respondi em parte a essa questão num artigo que publciquei no Jornald e nergóicos e que já não se encontra on line e por isos transcrevo
HAPAX

Alexandre Brandão da Veiga

Civilização judaico-cristã

Cada um tem as suas perversões. No meu caso, a caça de tontices. Uma tontice é sempre significativa. Da ignorância do seu autor, se é individual, da sua presunção. Mas quando é colectiva, ou seja, repetida no tempo, por vários autores, insistente, desvela um plano de fundo bem mais grave.

A tontice é como um farol que nos indica onde se encontram os escolhos e os rochedos. Daí que nos ajude a levar a bom porto.

A tontice de que agora trato é a tão propalada civilização judaico-cristã. Parece que o somos.

O que caracterizaria esta civilização judaico-cristã? Sob o ponto de vista moral, uma moral de culpa, por oposição a uma moral do prazer que supostamente os antigos teriam. Sob o ponto de vista da concepção histórica a noção de ascensão, de progresso, por oposição a uma noção cíclica da História pelos antigos.

Vejamos em primeiro lugar o que pode caracterizar uma civilização. O que a define, o que a marca, é antes do mais o poder. Para eu saber o que define uma civilização tenho de procurar quem está no poder. No poder cultural, político, económico, quem estabelece a marca, a sua tessitura. A civilização romana era romana, não por os romanos serem a maioria populacional, mas por dominarem os romanos, as suas estruturas políticas, e mesmo a sua cultura. É evidente que isto é mais verdade para o lado ocidental do império, dado que no oriental imperou a língua grega. Mas os próprios bizantinos se chamavam a si mesmos de “Romaioi”, viam-se como romanos, mesmo que no século XII apenas restassem algumas palavras de origem latina no seu vocabulário. O mesmo se diga dos ditos reinos bárbaros, em que os povos assim chamados eram uma minoria dominante, mas minoria.

Ora na Europa quem manda? Judeus? Muçulmanos? Sempre que um país se considera parte da rede de relações da Europa quem o governa é um senhor cristão. As elites, a nobreza, são cristãs. O judeu é o que está fora do sistema, o homem sem terra, o homem do dinheiro, a classe média numa época sem classe média. A Europa é uma cultura judaico-cristã? Na perspectiva do poder, não.

Mas a Europa tem influências judaicas? Sim. Por via do cristianismo. Mas se o afã historicista é assim tão grande, e dado que o judaísmo é influenciado pela cultura egípcia e babilónica, porque não dizer que somos uma civilização egipcíaco-babilónico-judaico-cristã?

Continuemos. Outras influências mais poderosas que o judaísmo existem na Europa: a romana e a grega. Encontramos mais referências a Vénus que a Ester na literatura e na pintura europeias, por exemplo. As nossas instituições são mais romanas que judaicas, as nossas categorias de pensamento e gosto mais gregas que judaicas. O afã historicista, se o for, obrigar-nos-ia a dizer que somos uma civilização heleno-romano-egipcíaco-babilónico-judaico-cristã.

Mas o fundo sobre o qual agem todas estas influências é celta, germânico, italiota, eslavo, em suma, indo-europeu. Isto para além de fundos não indo-europeus que o constituem, como os iberos, etruscos, fino-ungáricos. Ou seja, a nossa civilização seria celto-germânico-italiota-eslavo-etrusco-fino-ungárico-basco-heleno-romano-egipcíaco-babilónico-judaico-cristã.

Esta simples enunciação mostra o disparate da expressão judaico-cristã. A escolha não é neutra, não é inocente. De todas as enunciações escolhe-se a judaica, não a directamente mais importante, uma designação de filiação. A escolha é política, não científica. É ideológica, não justa. Para se dizer mal, para se dizer bem, o que seja, escolhe-se a filiação judaica como determinante, quando ela já está contida no cristianismo.

Vejamos agora o conteúdo, o que caracterizaria esta civilização. A moral de culpa, por oposição à moral de prazer. É curioso como a divulgação, a massificação é sempre atrasada, um fenómeno de retardamento. Tilgher e Brochard no início do século XX já tinham feito esta oposição... para serem rapidamente atacados por toda a erudição clássica logo nos anos 1920 pelo menos. Mondolfo, Jaeger, Dodds, Cornford ou Heidegger nunca disseram estes disparates. Moral de prazer a moral clássica? Como explicar então o pouco prestígio do epicurismo, dos sibaritas, dos cirenaicos durante a época antiga? Lucrécia é violada por Tarquínio, conta Tito Lívio. Que faz ela? Conta ao marido a sua desonra e depois suicida-se. Se a moral antiga era de prazer a explicação seria a de Tarquínio ter péssimas prestações sexuais. Penélope espera o marido para manter a sua fidelidade. Se a moral fosse de prazer Ulisses deveria ser um campeão do sexo.

Mas inversamente, a ideia de que “culpa” é uma criação cristã é no mínimo simplista. Aparece em Séneca sem referência ao judaísmo ou ao cristianismo. Não é por acaso que Séneca é chamado por Tertuliano, de “Seneca, saepe noster” (“Séneca quase nosso, quase cristão”). É que a moral antiga foi capaz de elaborar autonomamente uma ética de culpa.

Mas vejamos outra vertente deste dislate: o desprezo do corpo, tão “cristão”. A verdade é que o cristianismo é a única religião que tem como dogma de fé a ressurreição dos corpos. Por outro lado, o neoplatonismo (e Deus sabe como se opuseram aos cristãos) redundou num desprezo do corpo, num ódio do corpo contra o qual sempre se insurgiram os cristãos. Acrescentemos que a época mais repressiva sob o ponto de vista sexual foi a segunda metade do século XIX, época de afastamento do cristianismo, do seu apagamento público.

Ataquemos agora a ideia de progresso, de ascensão, como tipicamente judaico-cristã. Mais uma incoerência. Ao mesmo tempo que se fala em ascensão condena-se o cristianismo por falar na Queda (de Adão) como motor da História. Por outro lado, é temerário reduzir todo o pensamento antigo à ideia de ciclos. A mitologia fala também ela de Queda (da passagem da Idade de Ouro à do Ferro), outras vezes a filosofia fala da eternidade do mundo (Aristóteles), outras ainda da conflagração final em que o mundo morrerá (estóicos). Como critério de distinção mais uma vez é simplista. Baseia-se numa passagem de Nietzsche que assume um papel na sua filosofia muito menor que a que se lhe atribuiu.

Estamos desarmados. “Judaico-cristã” representa uma escolha arbitrária de filiações, ideológica e não científica. Os conteúdos que se lhe atribuem são incorrectos.

Já poucos eruditos se lembram do marcionismo, uma heresia condenada por todas as ortodoxias, segundo a qual haveria dois Deuses diferentes, o do Antigo e o do Novo Testamento. Falar em cristianismo é sempre assim falar na sua filiação judaica, e torna a referência ao judaísmo redundante e tendenciosa. É certo por outro lado que certo protestantismo foi mais judaizante. É verdade de outro modo que só no século XIX vemos (ditos) judeus atingirem os mais altos postos (Disraeli em Inglaterra) mas em certos países só no XX (Blum em França, Trotsky na Rússia). Como pode ser judaico-cristã uma cultura que só dá lugar aos judeus quando se torna menos cristã?

Não ignoro algumas reacções que possa provocar. Serei acusado de racismo, é bom de se ver. Mas serei racista se disser que o presidente da república portuguesa tem nulo direito ao trono de Espanha? Se ele a tal pretendesse apenas seria pretensioso. E o que releva é que a designação faz esquecer o essencial. Que a Europa é cristã e pagã indo-europeia. Mas essa é uma outra demonstração.