quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Crise? Qual crise?



Eu não sou economista – apesar de saber inglês! No entanto, não me parece muito difícil explicar a actual crise económica mundial.
Há pelo menos 30 anos o mundo decidiu viver a crédito. Este movimento começou no chamado mundo ocidental com a ideia de que, desta forma, era possível transformar os proletários de ontem nos burgueses de amanhã, sem pôr em causa os poderes instituídos.
As ideologias, porém, poderiam deitar tudo a perder. Mas socialistas e liberais têm mais em comum do que se pensa (nomeadamente a mesma ideia de que a economia é a base da vida humana em sociedade e de que a ciência e a técnica são os instrumentos que permitem dominá-la), pelo que conjuntamente se empenharam nesta mesma tarefa, deste modo diferindo os problemas do presente para o futuro.
Ora, neste moderno mundo da comunicação, que dizem ser o nosso, uma boa ideia não consegue ficar muito tempo escondida, pelo que logo se resolveu aplicá-la a todo o mundo. Claro que, aqui, passadas as fronteiras do confortável canto ocidental, o presente põe problemas bem maiores – as guerras, as doenças, a pobreza, a fome, o isolamento, a ignorância… – e, nesse sentido, mais difíceis de iludir.
Nada, porém, que a poderosa aliança entre políticos e capitalistas, operando de modo global, não consiga fazer, entretendo os povos num contínuo teatro mediático, no qual os indivíduos, espectadores e consumidores passivos da produção desta realidade, têm a noção de participar activamente.
É claro que tudo isto funciona com um equilíbrio muito instável, de onde resulta um terrível e constante medo das crises. Socialistas e liberais, aliás, também aqui sempre estiveram de acordo, pelo que, nos dois extremos, prometendo o fim da história, prometeram sempre o fim das crises. Em conjunto, portanto, continuaram a trabalhar.
O problema, como eu dizia, parece-me, assim, muito simples. Todos sabemos que, ao comprarmos qualquer coisa com um cartão de crédito, temos algo no presente pelo que só iremos pagar no futuro. Isto implica, obviamente, que alguém nos emprestou esse dinheiro, o qual haveremos de pagar com juros.
Ora, foi esta última premissa que, na verdade, desapareceu. Porque aplicando este sistema à economia global, temos que viver a crédito significa ter agora um conjunto de coisas pagas com dinheiro que resulta da produção de coisas que ainda não aconteceu, isto é, o dinheiro que nos emprestam ainda não existe.
É claro que nada disto tem importância se o tal equilíbrio se mantiver: os pobres e os proletários participam hoje mesmo nas delícias dos ricos e capitalistas e estes garantem que no futuro continuarão a ser ricos e capitalistas. O problema está nas crises. Porque elas obrigam a que o dinheiro, que só existe no futuro, seja pago agora. E aí é que são elas. Os pobres ficam sem as coisas, os ricos sem o seu dinheiro, e os governos são obrigados a tomar uma decisão (é, aliás, o que significa a palavra crise).
E todos temos visto os Bancos estatais a tentarem controlar a inflação e a injectarem dinheiro nas economias. Todos temos visto os governos a intervirem na gestão das instituições financeiras e a comprarem empresas em risco de falência. Mas ninguém quer mudar o discurso, porque ninguém quer mudar o estado das coisas. Se tudo correr bem, a tempestade vai passar e tudo ficará como dantes. Sem crises, sem história, sem ideologias.
Mas é difícil não reparar numa cada vez maior intervenção dos Estados nas economias, com a imediata conotação ideológica que isso tem. Com a agravante de que, perante a actual diminuição dos poderes dos Estados, essa maior intervenção caberá cada vez mais a entidades mais distantes dos cidadãos e dos seus representantes directos, que, deste modo, menos as controlarão e mais serão controlados por elas.
A estratégia, no entanto, para já, continua a ser pôr uma almofada sobre a cabeça e esperar que a tempestade passe, pelo que ninguém parece muito interessado em meditar no facto do governo dos Estados Unidos da América ter hoje nacionalizado uma Companhia de Seguros! Mas já ninguém deve ter ilusões: o século XXI será de novo um século de crises, de história e de ideologias. Para o bem e para o mal. Ora, o mal já aí está (nomeadamente a associação totalitária entre políticos e capitalistas). Cabe-nos agora preparar o bem.

3 comentários:

Vasco M. Grilo disse...

Preparemos o bem mas tenhamos atencao ao facto de o mal poder ter apenas comecado o seu trabalho. De alguma forma foi o proteccionismo economico generalizado que se implementou na Europa, que acabou com a rapida globalizacao do final do seculo XIX abrindo de seguida as portas para a(s) guerra(s) de 1914/1945.

Sofia Rocha disse...

Só um pequeno apontamento. Tenho na família alguns comunistas encartados, são poucos, mas empedernidos. Era vê-los ontem a enviar-me mails eivados de gozo porque, enfim, estiveram sempre certos e agora sim era o fim do capitalismo tal como o conhecemos!O imperialismo americano etecetera e tal e coisa. Temo que no almoço de Natal, por altura da sobremesa, nos esqueçamos da quadra e estale a discussão do costume.

Manuel Rocha disse...

Bom texto, Gonçalo!
Vejo que temos leituras muito semelhantes desta questão. Deviamos era acrescentar-lhes uns algoritmos e, claro, um pouco de inglés, para sermos levados a sério pela ortodoxia económica.
Assim, até ou ouço a sussurrar : " perdoai-lhes, Pai, que não sabem do que falam..."