terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Referendo? Não, obrigado.

Correndo os riscos inerentes a qualquer simplificação pode dizer-se que o ideal populista renasce na história moderna, pela mão de Jean Jacques Rousseau para quem ninguém era inteiramente livre a menos que participasse directa e continuamente na construção da comunidade em que se encontra inserido. Rousseau escreveu no seu Contrato Social que «No instante em que uma pessoa aceita ser representada perde toda a sua liberdade». Era de resto precisamente isso que criticava no sistema parlamentar inglês. Dos ingleses dizia aliás com desprezo que viviam na ilusão da liberdade. «São livres apenas durante o acto do voto para os representantes do Parlamento. Uma vez estes eleitos tornam-se escravos, não são nada».
Numa versão eventualmente menos radical o ideal populista aparece também, naquele que foi o grande momento de refundação do ideal democrático, a Revolução Americana, pela mão de homens como Thomas Jefferson ou Thomas Paine. Este último proclama, no seu «Common Sense» que «no primeiro parlamento cada homem terá o seu assento por direito natural» e que portanto «uma assembleia representativa deve ser uma miniatura fiel do povo em geral».
Já Jefferson, no longo debate que o opôs aos federalistas, nunca escondeu a ambição de trazer para o Novo Mundo uma forma de democracia participativa que recuperasse os ideais da democracia directa de tipo ateniense. Imaginava a América, à semelhança da antiga Grécia, como um conjunto de pequenas comunidades de lavradores que constituiriam outras tantas unidades políticas que se auto-governariam a si próprias, deliberando e decidindo de forma directa sobre todas as matérias. Sonhava com um sistema de governo inclusivo que centrasse a sua actuação no interesse da gente comum e temia que o governo federal acabasse por excluir a maioria dos cidadãos do controle político directo sobre os assuntos que lhes diziam respeito.

No pólo rigorosamente oposto ao do ideal populista sempre estiveram as concepções elitistas de raiz platónica.
Platão, que baseia o seu projecto político numa visão normativa do bem, na presunção de que existe uma verdade única e absoluta, tem uma visão radicalmente diminuidora do indivíduo e das massas populares. Ao contrário de Rousseau, e de resto dos liberais, imagina-as incapazes de descobrir por si sós o caminho para a verdade absoluta, para o bem absoluto que deve, segundo ele, nortear a construção da sociedade política. É aliás alicerçado nessa desconfiança profunda que nutre em relação às massas populares, que projecta aquele que é o primeiro grande ideal utópico da história do pensamento político. A sua cidade ideal é, como se sabe, dirigida por uma classe de magistrados, que têm à cabeça o célebre rei filósofo. São cidadãos expressamente escolhidos, seleccionados e, o que é mais importante, educados pelo Estado. São os únicos capazes de discernir racionalmente o bem do mal e de perceber o que é, em cada momento, o melhor para as massas. São, em suma, os guardiões de uma verdadeira sofiocracia.

Parece-me fundamental que se entenda que a democracia representativa tal como hoje a conhecemos e que adoptámos, surge em grande medida, como uma terceira via entre este ideal platónico ou elitista não democrático e o populismo basista de tipo rousseauniano ou Jeffersoniano.
De facto, a corrente federalista que haveria de ver as suas ideias consagradas na Constituição e no modelo político americano, sempre defendeu uma engenhosa solução política que abraça o ideal revolucionário da soberania popular mas ao mesmo tempo isola a República do perigo das paixões súbitas das massas populares. É um modelo que consegue casar os valores da igualdade política com as virtudes da reflexão, da ponderação, da deliberação, e da construção de consensos. Um modelo que tem o propósito declarado de evitar que as opiniões públicas se transformem obrigatoriamente em políticas públicas.
O sistema político americano, que é neste sentido mais tributário de Hamilton do que de Jefferson, é assim erigido com múltiplos dispositivos e barreiras destinados a controlar as paixões das maiorias populares. Ao contrário do que acontecia na antiga Atenas, na democracia representativa americana do século dezoito, tal como hoje na moderna democracia representativa, o papel do povo não era o de governar-se a si próprio mas o de escolher quem, em seu nome, de forma mais competente governaria: «the people will decide who shall decide». A ideia de que todos os homens eram aptos a governar-se não era de forma alguma negada (Hamilton defendia que o povo tinha uma capacidade intrínseca para se auto-governar) mas era interpretada inteligentemente para que essa capacidade não fosse utilizada por todos os cidadãos, a todo o tempo e a propósito de todas as decisões, mas antes fosse utilizada para escolher e controlar um grupo de representantes periodicamente eleitos.
Como escrevia há tempos Pacheco Pereira, «A democracia representativa é suposto libertar os políticos da pressão da demagogia, dando-lhe uma reserva temporal ou poderes próprios em que o controlo popular é indirecto, permitindo-lhe tomar medidas impopulares mas necessárias sem terem imediatamente a sanção do voto»
Edmund Burke ia ainda mais longe. Num célebre discurso aos eleitores de Bristol afirmou categoricamente que «o vosso representante deve-vos o seu juízo, e trai-vos se o sacrificar à vossa opinião. Se o governo fosse uma matéria de simples vontade, a vossa, sem dúvida alguma, seria a mais importante. Mas o governo e a legislação são matéria de razão e de juízo e não de inclinação».

Tenho para mim muito claro que no discurso político se perdeu a noção de que existe um verdadeiro abismo entre as concepções democráticas de pendor directista ou populista, e as concepções democráticas representativas. No afã de combater as tentações totalitárias talvez tenhamos menosprezado o debate que há dois séculos opôs Hamilton a Jefferson. O que é certo é que o discurso politicamente correcto se confunde hoje com a vulgata populista e tornou-se difícil afirmar, nos dias que correm, a importância da ponderação, da reflexão e dos mecanismos moderadores próprios dos sistemas representativos.
Os sinais vêm de todos os lados. Da esquerda mais folclórica que tem no Bloco o símbolo máximo da promoção deste ethos politicamente correcto, à direita absolutamente falha de ideias do CDS/PP (pós plástica?). De Santana Lopes (talvez o político que melhor entendeu este ar dos tempos) a Alberto João Jardim, passando pelo inefável Paulo Portas. De todos os lados se cede à tentação fácil de exigir maiores doses de directismo, de democracia directa, de referendos. Estão na moda as propostas «anti-sistema»; as críticas às «elites políticas». Em todo o lado – dos partidos aos jornais - se confunde, por falta de coragem política para afirmar a diferença, os conceitos da titularidade do poder com o do exercício do poder. Em todo o lado e a propósito de tudo se apela à legitimação popular das decisões políticas. Em todo o lado se invocam sondagens, se convidam os media a invadir o palco da política e os cidadãos a interferir directamente na arte do problem solving.
Ora entendamo-nos: nos nossos regimes políticos a titularidade do poder é, inequivocamente, dos cidadãos eleitores. Mas o exercício do poder não pode nem deve ser, no quadro – repito - de uma democracia representativa, uma prerrogativa sua. E é porque estamos a perder a noção desta distinção basilar – que está no cerne do debate entre as virtudes de um sistema populista e de um sistema representativo – que as sociedades contemporâneas caem na ratoeira de eleger os referendos como um «device» hiper-democrático impassível de ser criticado. Tornou-se mesmo politicamente incorrecto afirmar que a «vox populi» não tem nenhuma legitimidade particular no período entre eleições. Ou pelo menos em nada belisca a legitimidade dos poderes democraticamente eleitos. Mais grave, tornou-se politicamente insustentável reintroduzir no discurso político a noção de que existem excessos democráticos e que é para os evitar que optámos por um sistema de governo representativo.
Em suma, longe de serem o «nec plus ultra» da democracia, os referendos são uma cedência facilitista a uma concepção populista da democracia e uma perversão do sistema democrático representativo. Está na altura de alguém assumir isso de uma vez por todas.

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