quinta-feira, 30 de agosto de 2007

III. Heidegger. Platon: Le Sophiste. Paris, Gallimard, 2001

Bochenski, na sua “História da Lógica formal” queixava-se da tendência que tinha a lógica actual de se limitar à simples manipulação algébrica. Repare-se que falamos de alguém que era tudo menos ignorante da riqueza da lógica matemática actual. No entanto, não posso deixar de lhe dar razão. Embora ficasse satisfeito que o homem público conhecesse regras de lógica elementares, a verdade é que não posso deixar de deplorar um fenómeno bem mais minoritário, mas não menos preocupante, que é o seu paralelo, o da especialização meramente algebrizante na lógica matemática. A passagem por Heidegger obriga-nos a repensar estruturas como a negação e a afirmação, género, espécies. Pensamento que mesmo sob o ponto de vista da lógica matemática não será inócuo e pode levar a desentranhar de uma só negação muitas realidades que se confundem, o mesmo valendo para as afirmações.

É que Heidegger obriga a reflectir sobre dados fundamentais da lógica. A base do dizível é indizível (63). A especulação, o teorético exige uma dupla imagem, o espelho (67). O “porque” é uma estatuição (78). A direcção do olhar é a fonte de hierarquia (78). A opinião é o oposto da investigação (148). "Eidos" é "apeiron" (525).

Reflecte igualmente sobre dados básicos da matemática e da física. O lugar tem uma força; a teoria do bootstrap na física é um retorno a esta ideia aristotélica (108). O problema do contínuo e a teoria da vizinhança já é problematizado por Aristóteles (110, 116). O números pitagóricos nada têm a ver com uma visão matemática da realidade em sentido estrito (398). O ser como ser oferecendo uma resistência, preparação da teoria da inércia (437). O dogmatismo dos materialistas (441).

É certo que Heidegger faz de Aristóteles e Platão um pouco mais fenomenologistas do que eles seriam (pp. 140, 390). Em quase anedota, seria curioso que o estrangeiro fosse Platão em jovem e a obra fosse auto-irónica (pp. 240, 451).

Heidegger dá-nos algumas surpresas, sobretudo para quem gosta de ver no fundador do existencialismo (seja lá o que isso for) um pensador anti-histórico: "apropriar-se do seu passado significa saber que se está em dívida em relação a esse passado" (20). “Este Dasein nós mesmos, somos História" (182). “Só a liberdade de se ater às coisas nos oferecerá a possibilidade de sermos, num sentido autêntico, históricos” (246) (ver 391).

Muitos lugares comuns são deitados borda fora, pela simples leitura desta obra:
1) em 1947 traduziam-se em França furiosamente autores alemães (351) logo após a guerra. não se viu a mesma coisa em relação a turcos. Fazer parte de uma mesma civilização é isto. Mesmo a morte não impede a comunicação, a troca.
2) a verdade é aquilo sobre que respeita a filosofia (86); quem diria, numa época supostamente relativista, de que Heidegger seria um dos percursores;
3) a melhor forma de conhecimento é a menos urgente (130); numa época em que a aceleração é vista como mérito, curioso que a grande cultura do Século XX ainda lembre o contrário;
4) o "hypo" é usado nos conceitos fundamentais (150); o que está em baixo, a fundação, a raiz, é afinal relevante para o pensamento. Bela lição para os que dizem que a Europa é uma construção sem raízes, anti-histórica;
5) a critica bíblica como antepassado da critica filológica em geral (298); curiosa observação para quem vê sempre os estudos bíblicos como obscurantistas;
6) "A novidade, de uma maneira geral, é fútil”. (306); machadada certeira no experimentalismo de feira e no gozo por uma cultura em perpétuo movimento (para ir onde?);
7) a natureza absorvente do ser (433); o que nos vai levar a outras conversas quando falar um pouco mais de filosofia tardo-antiga;
8) a imagem da alma como tábua de cera desde o gregos (489); o que mostra a falta de imaginação dos empiristas sob o ponto de vista imagético

É evidente que várias teses são aqui possíveis:
a) Heidegger não é capaz de deixar de pensar como um cristão quando analisa a cultura grega. E por isso apenas projecta nela critérios cristãos;
b) Pelo contrário, descreve o que efectivamente era a cultura grega, e apenas mostra mais uma vez que o cristianismo, para se verbalizar teve de recorrer ao instrumentário grego
c) Ou ainda, que cultura grega e cristianismo se entrelaçam tão bem porque desvelam as mesmas estruturas profundas da realidade de uma forma que não é casual (pelo discurso de Ratisbona, suspeito que esta seria a tese do teólogo Ratzinger).

Defender uma ou outra teses não é irrelevante. E em certo sentido todas podem ter a sua valia. O mais importante é que mais uma vez se verifica aqui que a Europa não pode ser profundamente pensada ou estruturada sem as suas duas veias do paganismo indo-europeu e cristianismo. Mais uma vez não faço demonstração completa. Mas como o bom do Arquimedes sigo o método da exaustão. Até cansar, não o intelecto (seria fácil demais), mas a verborreia dos adversários (tarefa esta sim hercúlea).



http://dogma.free.fr/txt/MG-cr-HeideggerPlaton.htm
http://www.humanite.fr/2001-09-10_Cultures_-Heidegger-et-Platon
http://www.evene.fr/livres/livre/martin-heidegger-platon-le-sophiste--6109.php
http://fr.wikipedia.org/wiki/Martin_Heidegger
http://heidegger.over-blog.com/

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