quinta-feira, 27 de setembro de 2007

II. Serge Berstein, Léon Blum, Paris, Fayard, 2006

No entanto, visto à distância, vemos que é mais um produto que um produtor, mais um efeito que uma causa, mais um exemplar que um paradigma.

Pertence ao grupo muito vasto de pessoas que em ingenuidade e ignorância histórica acreditaram que vivemos num mundo moderno em que o fascismo não seria perigoso (!), que a religião era uma inexistência política (!), que era racional e científico (!). Rodeado por uma cultura literária que se degradou cada vez mais ao nível da cultura jornalística.

Na perspectiva da História longa, o pico que representou no anos 30 fica esbatido quando visto na perspectiva do século, a relevância para a França fica esmorecida quando vista pelos olhos do mundo, e numa perspectiva da realmente longa duração é apenas mais um ponto entre centenas e milhares de primeiros-ministros que o mundo já viu.

A explicação é simples. A razão do seu sucesso é a mesma da sua irrelevância. Homem integrado no século, produto dele mais que seu produtor, fica como mais uma ilustração de vida típica dos anos de entre guerras.

Crente da República laica, e ao mesmo tempo adorador formal de um marxismo que nunca estudou teoricamente e em que nunca acreditou realmente, mas cujo apelo doutrinal achava essencial para a sua liturgia, vivia na ilusão de que existia uma modernidade que aclimataria os seres humanos de uma forma rompida com o passado, como se houvesse mais um nascimento virginal, mais um Hapax, mais uma Incarnação. Não almejava pelos amanhãs que cantam, pelo novo homem do futuro, porque no fundo já acreditava que ele tinha vindo, sobre a forma do progresso, da laicização, da “racionalidade” política, económica, pessoal.

Tornou-se por isso em mais um dos crentes desta religião postiça, sucedânea, invertebrada e sem carne nem linfa que é a da modernidade. Crente na História, mas curta, foi aplaudido por uma História com a mesma duração. A pessoa merece respeito. A grandeza não merece menção.





http://www.alapage.com/-/Fiche/Livres/2213630429/?donnee_appel=GOOGL
http://www.palgrave-journals.com/fp/journal/v4/n1/pdf/8200090a.pdf


Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 26 de setembro de 2007

I. Serge Berstein, Léon Blum, Paris, Fayard, 2006



Nem todas as personagens históricas nos têm de agradar ou desagradar, elas não existiram para suscitar os nossos sentimentos. Não são seres funcionais só porque morreram. No entanto, não me posso escusar de ver umas com mais, outras com menos simpatia.

Blum tem alguns aspectos que me são profundamente simpáticos. Um apurado sentido de justiça e de moderação, uma preocupação efectiva com o sofrimento alheio e uma real postura de honestidade política. E estava longe de ser estúpido ou inculto. Nada mau tendo em conta muita da classe política actual.

Do lado positivo na minha perspectiva o facto de ter impulsionado a participação de mulheres na política, colocando três sub-secretárias de Estado numa altura em que as mulheres nem podiam votar nem ser eleitas, de ter respeitado a legalidade e o seu compromisso de respeitar a república, de ter uma efectiva preocupação com o ser humano, sobretudo o desprotegido pela economia capitalista.

Do lado negativo, o facto de afirmar a irrelevância da origem étnica em França quando se lembra de se afirmar judeu quando fala com judeus americanos (o que mostra que o sonho da integração plena permite manipulações e oportunismos), de se deixar dominar por um quadro teórico mais afectivo que ponderado e o querer impor à realidade e de no fim de contas ter cedido à pressão dos funcionários públicos, esquecendo-se dos velhos e dos reais desprotegidos da sociedade. Blum inaugura uma tradição que se tornará secular que leva os partidos socialistas a serem reféns do funcionalismo público.

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terça-feira, 25 de setembro de 2007

O cinema cura


Há um novo e miraculoso livro no mercado. O título, “Guia Terapêutico de Cinema” é atraente e directo quanto basta. Aparentemente pouco dado a elipses, o autor, Pedro Marta Santos, não resistiu e acrescentou-lhe um subtítulo que retira dúvidas e esclarece angústias: “Como curar insónias, fobias, depressões e desastres amorosos”. O resultado é uma lição de que o Serviço Nacional de Saúde sai corrido, como popularmente se diz, aos gritos de “toma e vai-te tratar”. O Pedro receita filmes e basta ler o que ele diz para perceber que, se os virmos, recuperaremos o bem-estar, a sanidade mental, ou mesmo um vigor igual ao de qualquer um daqueles armários da selecção nacional de rugby. Cada capítulo tem o seu folheto médico que inclui contra-indicações, efeitos secundários e interacções medicamentosas, sem esquecer os terríveis efeitos da interrupção dos tratamentos. Também há, para os mais sovinas, dispensários e os genéricos de lei.
É verdade, os filmes ganham aqui uma força salvífica e regeneradora única. Cortem nos ansiolíticos, reduzam as consultas e evitem as TAC: decididamente os portugueses têm agora uma alternativa científica à toda poderosa classe médica. Não é, de resto, a única classe profissional a ver diminuído o seu monopólio: o livro exercita algumas técnicas de relaxamento que vão diminuir, quer as viagens dos portugueses à Tailândia, quer a nossa escravização ao jugo dos monitores dos health clubs.
Admito que as minhas qualificações denunciem a presença parcial de fármacos pouco aconselháveis para avaliar este livro que Pedro Marta Santos acaba de publicar (e escusam de me pedir para dizer o nome da editora). Confesso alguma duvidosa cumplicidade com o autor, forjada nos subterrâneos laboratórios da SIC Filmes e, agora, da VC Filmes. Antecipo-me e confesso já um incurável conflito de interesses: estou à espera de que as “farmácias” que o têm à venda, por esta e futuras recomendações, mandem de volta o amável cheque para a viagem a um congresso no Hawaii. Mas só vou se me deixarem levar o “Guia Terapêutico de Cinema” na bagagem.

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Small is not beautiful

Um zapping a meio a tarde, num intervalo de escrita, dá-me o contraste entre as agendas mediáticas portuguesa e francesa. No canal nacional, a crise do PSD. No France 24 os discursos dos líderes mundiais reunidos nas Nações Unidas, a conferência de imprensa de Nicolas Sarkosy e o subsequente debate com especialistas em geopolítica.
De um lado, a antena aberta para o público sobre as minudências intestinas da fórmula de pagamento das quotas do PSD. O cartão multibanco, o papel da secção, o estatuto dos não pagadores, o significado do voto da Dra Manuela Ferreira Leite sobre esta matéria, os desabafos vespertinos do dr Gomes da Silva e a promessa de revolta do dr Menezes Lopes, logo mais, às 20h, a postos para a principal notícia dos jornais televisivos.
Do outro, a premência de uma nova ordem internacional que inclua a Índia, o Brasil e África na reforma representativa da ONU; a última chamada para respostas que atendam às alterações climáticas; a atenção ao perigo nuclear iraniano; a hora das soluções no Médio Oriente; a recusa da especulação sobre os preços do petróleo. Numa palavra: a falência das palavras e dos diagnósticos perante o anúncio de medidas concretas, imediatas.
É fácil - e quase demagógico - comparar estes dois temas, a escalas tão diferentes, e daí extrair a conclusão sobre o nosso mundo infinitamente pequeno. Não é disso que aqui trato até porque é sempre mais difícil lidar com os problemas próximos do que perorar sobre as grandes questões do Planeta.
Mas como é possível ignorar o que os líderes mundiais têm a dizer sobre o nosso tempo? Como não ver em directo a reacção do Presidente Iraniano às palavras de Sarkosy sobre a intolerância à escalada do armamento nuclear? Como não observar, nos discursos, a troca de um capitalismo financeiro para um capitalismo de investimento? Como passar ao lado do encontro de líderes mundiais do Conselho de Segurança da ONU (o que acontece pela terceira vez na história das Nações Unidas) sobre a África, para onde deverão partir forças da ONU e da UE? Como não compreender as alterações do discurso Bush? Como ignorar o debate sobre futuro do Kosovo, dentro da nossa casa europeia (salvando a face da Rússia e da Sérvia)? Como deter a Presidência da União Europeia, por escassos seis meses, sem nela prestar a maior atenção?
A democracia das nossas células políticas domésticas será importante, tal como o método que se usa para as manter vivas. Mas no mesmo dia, à distância de um toque no comando da televisão, Sarkosy recupera o protagonismo da França na cena internacional e dele faz eco. Enquanto Portugal não sabe, nem faz saber, quais as propostas ou as respostas que a Presidência da UE leva às Nações Unidas pela mão do seu Primeiro-Ministro.

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sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Outras diplomacias em Timor

Sigo o post do Pedro Norton, em sintonia.
Quanto à justiça das causas na questão de Timor-Leste, aquela que não se rege apenas pela vantagem material, lembro que ela passou em plena Guerra Fria pela solidão, firme e solidária, do Duque de Brangança. E, na transição política da Indonésia, pela coragem e diplomacia de António Guterres ao insistir, implacavelmente, no apoio internacional ao Referendo. Xanana repetiu a ascese de Mandela no Oriente sendo peça fundamental para a atenção mundial e para a liderança interna. E lembro ainda, antes e depois do Referendo, o papel da Igreja que, internamente, levou esperança às resistências domésticas e cá fora atingiu o Nobel e a persistência da diplomacia pontifícia, que muito pode. Também no terreno, no «day after», foi a Igreja quem cerziu interesses e ódios, como pôde. E houve o empurrão de obras concretas como a de João Soares que recuperou o edifício de traça colonial do antigo Liceu de Dili para ali instalar a Universidade, semente do futuro independente e esclarecido. O seu sucessor faria a reconstrução integral do antigo Palácio do Governador (também de traça portuguesa), hoje Residência do Presidente.
21 de Setembro de 2007 11:40
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Da Visão: Ana Gomes vs. Metternich

Se há coisa de que Portugal se pode orgulhar na sua história diplomática recente é a de não ter embarcado numa estratégia de pragmatismo cínico na questão da autodeterminação do povo timorense. E é bom lembrar que, à época, eram muitas as cabeças pensantes que davam o diferendo por perdido e que, a bem dos superiores interesses do país, defendiam que a diplomacia portuguesa devia deixar cair uma causa que era manifestamente incómoda para uma grande potência regional e para muitos dos nossos (e seus) aliados tradicionais. Era a isso que aconselhavam todos os manuais da «realpolitik» e era esse o único curso de acção considerado minimamente «realista». Do outro lado da barreira, convém não esquecer, resistiram como puderam meia dúzia de então apelidados «idealistas ingénuos». Entre estes sempre esteve a diplomata Ana Gomes. Que está agora na linha da frente da contestação às opções que tomaram Presidente e Governo portugueses no quadro da visita do Dalai Lama. No seu estilo muito pouco diplomático acusa-os de se vergarem aos «interesses chineses» e relembra que «um Estado que não se dá ao respeito não pode ser respeitado».
Como se provou na questão timorense, e como se provará no episódio do Dalai Lama, é Ana Gomes quem vê mais longe. E não se trata aqui de saber quem é mais nobre de sentimentos. Mas tão só de perceber quem entende melhor o Mundo em que vive. Senão vejamos: de um lado desta contenda está uma visão cínica e «realista» da diplomacia, forjada no século XIX, que sobrevaloriza o papel das chancelarias e ignora por completo o papel da opinião pública global. Do outro está uma visão de um mundo globalizado e mediatizado em que não é possível ignorar o poder muito real de uma opinião pública planetária cada vez mais actuante e interventiva. Repare-se portanto que estamos aqui longe da dicotomia clássica idealistas/realistas. Ao invés, estamos sempre a falar de «power politics». Mas enquanto os burocratas do MNE continuam a imaginar o Mundo à imagem do que conheceu Metternich, Ana Gomes é capaz de entender o século XXI em toda a sua complexidade e com toda a sua multiplicidade de actores.
Na questão Timorense Portugal teve a clarividência de perceber que um pequeno país armado de grandes princípios pode, num mundo mediatizado e globalizado, mobilizar a opinião pública internacional e, por essa via, ganhar um estatuto moral capaz de rivalizar com o poder de grandes potências militares e económicas como era a Indonésia. E o que é um facto é que o país saiu do conflito com um prestígio (e portanto um poder) até então desconhecido.
Na questão da visita do Dalai Lama, Portugal portou-se como um vulgar protectorado chinês. Deixou-se pressionar ou, mais ridículo, imaginou pressões que ninguém se deu ao trabalho de fazer e sai da história desprestigiado e enfraquecido aos olhos do Mundo, sem que ninguém lhe agradeça o sermão.
Mas isto, já se vê, é algo que os nossos diplomatas novecentistas jamais conseguirão perceber.

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quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Disposição testamentária



Se não estou equivocado, no Panteão Nacional estão sepultados os ex-Presidentes Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, Oscar Carmona e Sidónio Pais, os escritores Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro e (desde ontem) Aquilino Ribeiro, para além de Humberto Delgado e Amália Rodrigues. No Panteão encontram-se ainda os cenotáfios de Nuno Álvares Cabral, Vasco da Gama, D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões.

Não é portanto preciso dizer mais para que se conclua que chamar Panteão Nacional a esta colecção disparatada e sem qualquer critério de ossos avulsos da História de Portugal é uma força de Expressão. Pelo que a polémica em torno da trasladação de Aquilino é pouco mais do que estéril.
Pelo meu lado deixo já esclarecido que escusam de me guardar um talhão. Balda por balda prefiro repousar ao lado da família.

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Interesse Público e interesse do público: rugby e Aquilino II

É evidente que não comparo Aquilino com a selecção de Rugby. Refiro-me aos desencontros do nosso tempo mediático e político.
1) Aquilino escritor devia estar nos programas escolares;
2) Aquilino atentador contra a vida de um Chefe de Estado português não deveria estar no Panteão Nacional;
3) O Governo que o promove nestas cerimónias não o acha recomendável na exacta condição da honra concedida.
4)Quanto ao Rugby, estamos perante uma proeza nunca dantes conseguida do ponto de vista da internacionalização do nosso desporto. Se as audiências são argumento - único - para não a transmitir questiono porque razão esse argumento não presidiu, dias depois, à transmissão da cerimónia de Aquilino. A resposta, sabêmo-la: a televisão é mais pública para o Governo do para o País.
Finalmente, não compreendo o primeiro comentário que me atribui uma leitura histórica fora do contexto. Aquilino conspirou na violência terrorista da Carbonária que levaria ao assassinato do Rei e do Príncipe Real. São factos assumidos pelo próprio. Dir-me-á que a luta dos republicanos por um novo Regime era legítima e que, nessa época, houve uma dúzia de assassinatos, a este nível, na Europa, provocados pela onda revolucionária. Todos sabemos isso. Também defendemos valores da Revolução Francesa sem promover o Terror. Muitos portugueses se indignaram com a entrada de Aquilino no Panteão. Nem por isso são delirantes.

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quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Interesse Público e interesse do público: rugby e Aquilino

Acatei com dificuldade a explicação de Luís Marinho (RTP) justificando a não transmissão dos jogos de Rugby no canal estatal. O Director de informação e programação disse na passada semana que não havia audiência suficiente para tal opção. Ficámos assim com as imagens impressionantes do hino cantado pela equipe de amadores que ali se batia contra os melhores do mundo, durante alguns segundos do telejornal. Pouco mais.
Esta manhã dou de caras com a transmissão em directo do Panteão Nacional da tranladação dos restos mortais de Aquilino Ribeiro.
- Qual terá sido o nível das audiências?
- Será o exemplo de um bombista incompetente, íntimo de quem matou o Chefe de Estado no Terreiro do Paço, mais importante para a transmissão televisiva do que o dos rapazes que se batem contra os «All Blacks» da Nova Zelândia?
- Ou será maneira de honrar um escritor de excepção transladá-lo para o Panteão Nacional enquanto se mantém o seu nome na lista dos autores de «livros não lidos» dos programas escolares?
- O que terá pesado hoje na decisão de Marinho? E do Governo?
Parece estar tudo ao contrário: A RTP cega perante o apoio que o País deve aos aventureiros do Rugby que representam com valentia, boa cara e ossos partidos a bandeira de Portugal; e o Governo bipolar que dá honras de Panteão ao activista da Carbonária esquecendo o escritor do lugar de onde nunca devia ter saído: o ensino literário das novas gerações.
Como disse António Valdemar durante a cerimónia: «todo o escritor morre quando deixa de ser lido e todo o que é lido é descoberto». Só por esta frase valeu a transmissão, Marinho.

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terça-feira, 18 de setembro de 2007

Um ser capriano

Marques Mendes e Luis Filipe Menezes estavam agora na SIC Notícias a dirimir argumentos. Pelo que ouço (e estou cada vez mais surdo) estão também a dar corda às angústias que a Sofia Galvão exprimia aqui, na Geração de 60, dois posts atrás, a saber, a falta de um líder para o PSD. Meto-me na conversa? Arrisco? Não arrisco? Eu não, mas o cinema tem solução e happy-end.

Presumível solução cinéfila para o dilema de liderança da Sofia: um ser capriano, entre o Jimmy Stewart do “It’s a Wonderful Life” e o Gary Cooper de “Meet John Doe”.

Jesus Cristo também é uma boa sugestão. Não estou a ser original ou a fazer-me interessante, limito-me a tirar da boca de Barbara Stanwick as palavras que Frank Capra lhe pediu que dissesse, num momento quase tão dramático como o que o PSD vive burocraticamente agora:
Oh, darling!... We can start clean now. Just you and I. It'll grow John, and it'll grow big because it'll be honest this time. Oh, John, if it's worth dying for, it's worth living for. Oh please, John... You wanna be honest, don't ya? Well, you don't have to die to keep the John Doe ideal alive. Someone already died for that once. The first John Doe. And he's kept that ideal alive for nearly 2,000 years.

Ou, como noutro momento e no mesmo filme, diz o Gary Cooper, “Why can't that spirit, that warm Christmas spirit, last all year long?


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A propósito da decisão do Conselho Superior da Magistratura


O que acontece neste país quando um jovem juiz de instrução revela lucidez e visão? O Conselho Superior da Magistratura assegura o seu silêncio.
Perante o ruído imenso que envolve este ‘caso Maddie’, Paulo Frias percebeu que seria importante esclarecer o sentido do actual momento processual e serenar o registo em que tudo se discute. Percebeu bem. Pena foi que tenha ficado sozinho.
Com a sua decisão, o CSM evidenciou um autismo formalista que só pode chocar. Está em causa a imagem da justiça, a percepção do que a justiça é e deve ser.
Para muitos, em Portugal e no estrangeiro, passa a ideia de que o casal McCann já foi acusado. E, não o tendo sido, importava que alguém esclarecesse o estatuto de arguido, lembrasse o teor garantístico do nosso processo penal, explicasse a lógica própria das diferentes etapas processuais e desdramatizasse a investigação. Afinal, quando tudo é ainda incerto, também para defender a actuação da nossa Polícia Judiciária e do Ministério Público… Paulo Frias quis fazê-lo. Mas o CSM não deixou.
A imagem da nossa justiça está sob fogo cerrado. Internamente, sendo a cultura tão resistente àquela consciência jurídica arreigada que marca as velhas democracias, tal é sempre um risco. Mas verdadeiramente perigosa é a ameaça que paira sobre a imagem internacional de Portugal. Aqui, tudo se joga. Muito mais decisivamente do que em qualquer campanha promocional ou de que em qualquer presidência europeia.
A vida é o que é. E a comunicação, os tablóides, os advogados famosos ou os porta-vozes de luxo estão no terreno. A criança desaparecida, essa, aliás, está cada vez mais distante das preocupações essenciais.
O CSM não percebeu nada disto. Como não percebeu que, quando assim é, as torres de marfim são redutos intoleráveis.
Infelizmente, e em paralelo, o Governo também nada percebeu. Ao reduzir o caso à sua dimensão de investigação penal, faz um erro fatal e denuncia uma trágica miopia política. Com uma enorme falta de coragem e de sentido das circunstâncias, o Governo deixa assim completamente abandonada a dimensão – crítica – da gestão da imagem externa do País…

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VII. Hodiernos cristãos: conclusões

O pano de fundo destas consequências é o que igualmente antes indicámos. O cristão aceita como natural não confrontar a vida com o absoluto, o eterno e o infinito. O cristianismo para ele torna-se idiossincrasia, quase folclore. Interiorizou que a vida é amputação e que apenas no seu caso concreto existe uma necessidade quase afectiva de Cristo. Esquece a dimensão objectiva do Cristo.

Bento XVI, mais que qualquer outro papa é o papa do ecumenismo, mais ainda que do diálogo das religiões (tema vasto e bem mal tratado que mereceria muito a dizer). Por isso é um papa do dogma, da teologia, do recentramento. Por isso é um papa europeu por excelência; embora a sua mensagem seja universal percebe que ainda hoje em dia o coração da intelectualidade cristã está na Europa e só por via do ecumenismo pode ser íntima (e não apenas funcionalmente) sarado[1].

Com cristãos que se julgam modernos, mas vivendo uma espiritualidade dos anos sessenta, precisamente por não viverem no seu século, não conseguem com ele comunicar. Com cristãos que acham que o cristianismo é derrota e estreitamento sob a capa da doçura e do cordeiro que é levado ao abate temos criaturas simpáticas, mas não expansivas. Esquecem-se que o cristianismo é expansão e não retraimento, e que se não se fez o cristianismo pela espada é igualmente religião de guerreiros.



Alexandre Brandão da Veiga


[1] Os apressados dizem que o papa se tornou favorável à adesão da Turquia, mas o leitor mais atento perceberá que foi Erdogan, o primeiro-ministro turco quem disse isso e não o papa nem nenhum seu porta-voz. A pobreza e a desonestidade intelectuais são tão grandes hoje em dia que até um Recepp qualquer se torna porta-voz oficial do papa para os olhares menos ilustres.

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segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Desabafos de Verão (III)



Não consigo olhar para o actual PSD sem uma profunda tristeza. Onde está a chama? O rasgo? A capacidade de prometer e de exaltar? Onde está o projecto? Onde estão os valores, os princípios, as causas? Onde estão as pessoas?!
Ao abrir o jornal, ao ligar a televisão ou a rádio, não gosto do que vejo e oiço. É muito pouco e muito pequeno. Carne assada e questiúnculas de paróquia. Tudo me deprime…
Falta alma! Falta nível. Falta substância. Falta estatuto. Falta liderança…
Como eu queria acreditar na possibilidade de um líder afirmativo e forte. Alguém capaz de fazer a diferença.
Uma pessoa normal, que encarnasse plenamente esse sentido de normalidade. Alguém com vida e com história. Com qualidades e talentos. Mas também com defeitos e limites. Alguém com gostos assumidos, escolhas feitas, caminhos seguidos. Alguém com família, amigos, colegas, conhecidos. Alguém querido e, naturalmente, alguém criticado. Alguém capaz de amar e de repudiar. Alguém com sonhos e medos, ora firme, ora frágil, mas sempre gente. Afinal, alguém consistentemente humano.
Alguém cuja atitude pessoal fosse marcada por um profundo respeito pela ideia de liberdade. Alguém que sentisse nas entranhas a menor afronta ao exercício dessa liberdade. E alguém profundamente comprometido com o respeito pela liberdade de cada um.
Alguém que sentisse a política como imperativo. Alguém para quem a intervenção na vida pública se assumisse como dever indeclinável em nome de um projecto concreto de transformação da sociedade. Alguém em quem a estafada proclamação do sentido de serviço soasse a verdade original. Alguém que não precisasse de palco ou de emprego.
Alguém capaz de um discurso assertivo, directo, corajoso, sem papas na língua. Alguém com a garra dos que acreditam. Alguém com o efeito dos que são genuínos.
Alguém que integrasse, mobilizasse e irmanasse, convocando esse imenso, latente e esquecido universo de gente de recta intenção. Gente bem mais atenta e disponível do que os poderes instalados sempre gostam de fazer crer.
Mas, sobretudo, alguém capaz de criar esperança. Uma esperança credível. Alguém que, ao propor caminhos, tocasse os Portugueses. Alguém que revelasse conhecer o País e fosse capaz de pensar um projecto político a partir da emulação dos casos virtuosos. Gostava de sentir esse entusiasmo criador que tudo desafia e supera. Gostava de ver coesão à volta dessa esperança. Sem discursos fátuos, sem exortações ocas, mas como manifestação de verdade e de aposta partilhadas. Por detrás da pobreza e do desencanto de muitos, há gente que triunfa e há histórias de trabalho que premeiam. Temos empresários, marcas e sectores capazes de liderança e neles bem poderíamos, com visão política, assentar um desígnio ganhador.
Eu queria alguém que assumisse muito claramente a prioridade do crescimento do País – alguém que não surgisse com ideias avulsas e desgarradas, disparando em todas as direcções, incapaz de ligar temas e de sustentar neles um discurso de fundo com coerência e sentido. Eu queria um líder capaz de densificar um objectivo de crescimento e de lhe dar lastro político. Gostava de ver alguém explicar aos Portugueses, de modo simples e directo, o que mudaria na sua vida e na vida do País se conseguissem crescer, por exemplo, a 4%, a 5% ou a 6% ao ano. Como gostava de ver explicados os custos reais da divergência face à Europa. Gostava de ver uma proposta concreta de calendário para a convergência e gostava de acreditar na possibilidade de lá chegar.
Gostava de um líder capaz de ganhar o PSD, de fora para dentro, a olhar para o País, a ouvir o País, a falar para o País. Longíssimo das lógicas aparelhísticas e das suas aritméticas feitas à medida de pertenças, influências, obediências e favores – passados, presentes ou futuros.
Alguém que fizesse a diferença – no PSD e, decisivamente, no confronto com o estilo e a substância do actual Primeiro-Ministro. Alguém que começasse por mudar o PSD e depois mudasse o País.
Mas o futuro próximo não me permite ilusões... E o menos próximo, a ver vamos. Quando todos se engalfinharem, achando que chegou a hora, talvez o espectáculo seja, no essencial, apenas degradante. Pobre País!

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VI. Hodiernos cristãos: consequências para os cristãos

Para os cristãos em geral surgem igualmente quatro consequências.

Em primeiro ligar pulula a figura do cristianinho. Esta personagem caracteriza-se por dizer que “lá essas coisas da igreja (entenda-se, dogmática, pastoral etc.) eu não sigo, mas guardei do cristianismo o conteúdo moral”. Belo: apenas o “sede perfeitos como o Pai é perfeito”. Nada mais. Nada como ficar apenas com o impossível e deitar de lado as condições da sua possibilidade.

Em segundo lugar o cristão do Estado de Direito Democrático. Este vai além de aceitar o Estado de Direito Democrático. Vê-o como a realização concreta do cristianismo, no que tem razão sob o ponto de vista histórico (este não apareceu fora do espaço cristão). Mas vê-o igualmente como a única forma legítima de realização do cristianismo. Como se dezanove séculos de vida cristã fossem menos legítimos. O problema deste tipo de cristão é que incorporou a separação do Estado e da Igreja como parte da sua religião, em vez de ser apenas uma parte da sua posição política. O perigo desta posição é acabar a possibilidade de Antígonas na área cristã, que se deixam embalar pela sereia da legitimidade do Estado de Direito Democrático, não por este se basear numa substância que o ultrapassa, mas pura e simplesmente ser o que é.

A terceira consequência é a do estreitamento da santidade. Ou seja, das possibilidades de vida. Santo para a nossa época, santo plenamente, é apenas São Francisco. Apresenta várias vantagens: não é Cristo, o que é simpático para os não cristãos, tem ar de pobre e bonzinho e em suma de inofensivo. Enganosa visão de São Francisco, mas muito cómoda. A verdade que é muitos cristãos aceitam esta versão mais ao menos delicodoce. Ora as vias da santidade são muito variadas. Uma das grandes vantagens da santidade, tão benquista pelas ortodoxias ocidental e oriental, é a de se estabelecerem em cada santo tipos diversos de acesso à felicidade plena. Cada santo é um tipo, pelo menos os que não são anónimos e tipificados, como acontece com a maioria dos mártires. São Bento quase desapareceu, o organizador. São Tomás de Aquino, o intelectual, é relegado para fora da santidade e para dentro dos cursos de filosofia e teologia. São Bernardo é malquisto. Logo exactamente o grande herdeiro dos profetas do Antigo Testamento, o que fustiga a sociedade, que não a deixa estar na sua inércia mole, nas suas lutas intestinas. O que não se acomoda com rotinas. A caridade, ou melhor a sua versão liofilizada do humanitarismo, esmaga as possibilidades de plenitude de vida pelo profetismo, a organização, o envolvimento intelectual. Ser santo é ser bonzinho, o que mais uma vez transforma a santidade em depósito da nossa boa consciência e algo aparentemente inofensivo. A possibilidade de felicidade plena estreita-se e em suma não tem grande importância.

A quarta consequência é a da confusão entre ecumenismo e diálogo de religiões. O Vaticano II promoveu ambos, mas a sua ênfase estava sem dúvida no ecumenismo. É espantoso ver a quantidade de cristãos bem intencionados que encolhem os ombros de enfado quando se lhes fala das ortodoxias orientais, mas iluminam o olhar quando lhes falam de budistas, ateus, e muçulmanos.

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sexta-feira, 14 de setembro de 2007

V. Hodiernos cristãos: consequências civilizacionais

Quais as consequências dessa situação? Vejo-as em dois planos. No plano civilizational geral e no plano do cristianismo, ou melhor, dos cristãos.

No plano geral podemos voltar às nossas premissas iniciais. As consequências são fáceis de adivinhar.

Em primeiro lugar a mediocridade. Não havendo confronto com os dados fundamentais da civilização a criatividade apenas se opera na rotina, mesmo e sobretudo quando tem a capa da revolução. A poesia concreta retoma a composição numérica de origem medieval, a música vai buscar a caos primevo aparente padrões já mais que vistos. Para quem me acuse de exagero apenas pergunto que Gauss, Bach ou Rafael estamos a criar neste momento.

Em segundo lugar a cegueira. Não apenas o espaço circundante se torna mudo, as pedras, as igrejas, os monumentos, as pinturas, as músicas, mas igualmente a nossa linguagem, de origem indo-europeia mas montada sobre assento cristão, se torna absolutamente muda para o próprio locutor.

Em terceiro lugar a manipulação. A identidade europeia não tem lugar de existir, porque só se compreende com o cristianismo e este não pode ser invocado. Por isso o egípcio tem direito de se rir do alemão que diga que é árabe, mas o europeu perdeu o direito de dizer do turco e azeri que digam que não são europeus.

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quinta-feira, 13 de setembro de 2007

IV. Hodiernos cristãos: causas do meio hostil

As causas desta situação são bem conhecidas. De um lado a mistura de revolução francesa, revolução industrial, utilitarismo inglês e revolução científica mal digeridas por um ensino liceal que não pode ser mais que sumário e que dispensa agora comentários.

Mas há um factor pouco lembrado que inere à própria História da Igreja que para isso contribuiu igualmente. O concílio Vaticano II: « on a toujours les défauts de ses vertus ». Este concílio foi necessário. No século XX a ordem tridentina estava gasta, mas foi fecunda. O barroco está aí para o demonstrar. O mesmo barroco que gerou o fascínio da Europa protestante do século XVII ao XIX sobretudo. O gesto, a visão, o paladar, a indumentária, a pintura, em geral os sentidos europeus foram dominados pela ordem tridentina até ao século XIX.

O Vaticano II foi acima de tudo um Concilio pastoral, no que fez muito bem e teve grande mérito, independentemente do que se possa doutrinar sobre a mudança que operou na Igreja como mistério. Seja como for a verdade é a ênfase do século foi a pastoral. Esquece-se assim que a Igreja é igualmente um pensamento, uma filosofia, uma teologia, uma mística, uma razão. Basta perguntar sobre quantas pessoas reconhecem sequer como problema o filioque, o docetismo, o donatismo, o arianismo, o marcionismo e assim por diante. E basta ver a dificuldade que tem a hierarquia ou os leigos de comunicar a importância da vida contemplativa, não enquadrável no paradigma humanitarista, para se perceber como o Vaticano II não colmatou essa lacuna.

É evidente que quem faz tem sempre maiores ou menores dificuldades. Quem comunica tem sempre dificuldades de comunicação. As dificuldades de comunicação das hierarquias com o Laos não são novas. Sempre existiram. Mas o afundamento da igreja na comunicação da teologia moral e da pastoral constituiu um empobrecimento à luz do século.

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Scolari: o fim

O Miguel Poiares Maduro abriu a caixa de Pandora. Hoje sou eu a falar de futebol:

- Portugal deve muito a Luis Felipe Scolari. Por muito que nos custe pensar que só temos projecção internacional à boleia do futebol, o que é um facto é que, ainda assim, mais vale tê-la por essa via do que não tê-la de todo.
- Scolari é um grande treinador e um líder verdadeiramente ímpar.
- Scolari é um excelente comunicador e é senhor de um enorme carisma.
- Scolari é um homem corajoso e frontal que nunca receou pensar pela sua própria cabeça nem fugiu às consequências das suas atitudes e opções.

São tudo boas razões para que agora saia, com dignidade, pelo seu próprio pé. Para o bem e para o mal, Scolari transformou-se num mito. E tem obrigação de perceber, melhor do que ninguém, que a última coisa que o futebol protuguês precisa é da derrocada de um mito.

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quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Eu e a Ana Gomes

Não me acontece todos os dias mas hoje apetece-me subscrever por inteiro as palavras da eurodeputada Ana Gomes: «um Estado que não se dá ao respeito não pode ser respeitado».
A forma como Presidente, o Governo e a AR estão a lidar com a viagem do Dalai Lama é própria de um protectorado chinês e não de um país europeu e civilizado. Até a «realpolitik» tem de ter os seus limites! E um país como Portugal, que soube lutar contra o cinismo do Mundo inteiro na defesa dos interesses de Timor, tem uma obrigação especial de não esquecê-lo. Digo eu. E a Ana Gomes.

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Whose side are you on?

O mais extraordinário no tratamento mediático do caso Madeleine é perceber como a necessidade narrativa que hoje domina os jornais no contar (e não apenas já no informar) de uma história os obriga tomar o partido de uma única versão da mesma. Um crime é sempre um mistério e na investigação criminal um mistério é a fonte de várias hipóteses. Mas narrar um crime exige a solução do mistério. Cada jornal construiu uma narrativa sobre o crime mas encontra-se agora prisioneiro da mesma. Isto leva a que, com poucas excepções, a maioria da imprensa pareça estar mais preocupada em demonstrar que não se enganou do que em informar-nos dos mistérios, dúvidas e várias hipóteses que ainda rodeiam o caso. É um jornalismo que parece sobretudo preocupado em provar ao leitor que tinha razão… No meio deste tipo de cobertura é confortante encontrar um artigo notável como este no The Guardian: Madeleine: a grimly compelling story that will end badly for us all. A ler obrigatoriamente.

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III. Hodiernos cristãos: em meio hostil (cont.)


5) Acreditar é sinal de ignorância, de acordo com a religião da época. Quem acredita é sempre pouco inteligente. Desconfiar parece sinal máximo de inteligência. A modernidade mostra assim um dos seus lados de pobreza, instalada na desconfiança e vivendo dela. Mas se bem pensarmos há coisas em que só se acredita porque se tem conhecimento. Que certo medicamento faz bem apenas médicos muitos competentes o podem dizer. Que 7+8 podem ser igual a 3 requere algumas bases de álgebra abstracta. E lembro-me sempre de quando era criança em 1969 o homem foi à Lua. As criadas achavam que era montagem de Hollywood, não acreditavam na coisa. Aí percebi que há certas descrenças que são próprias de criadas.

6) O valor da vida de um cristão está sempre manchado pela menoridade. O facto de os cristãos assírios terem tido de fugir da Turquia ao longo de todo o século XX ou de 10% de palestinianos terem sido cristãos e termos apenas agora 1% porque os restantes tiveram de fugir para a Europa, Estados Unidos, América Latina e África Ocidental, é coisa que não merece atenção e se é referida passa logo por racismo ou desprezo. Um dos exemplos mais significativos é o do Sudão; durante duas décadas cristãos e animistas negros foram mortos pelos muçulmanos. Nem uma lágrima dos sentimentais da praxe. Mas quando no Darfur morrem muçulmanos a imprensa corre a chorar em peso.

7) O anti-cristianismo intelectual pesa igualmente algo neste ambiente hostil. Ao contrário do que se pensa o pensamento anticristão é bem mais fraco intelectualmente do que se julga. A grande maioria dos positivistas foi medíocres filósofos e nulos cientistas. Poincaré era agnóstico, mas não anticristão nem positivista. E o católico Pasteur envergonhava a grande maioria da classe médica parisiense ideológica da III República. Nietzsche está bem longe de ser um pensador anticristão, o que careceria de outros desenvolvimentos. E é inegável que era um pensador profundamente religioso. A única grande figura do anti-cristianismo intelectual temos de ir até ao fim do século III para a encontrar. Refiro-me a Porfírio, o discípulo de Plotino. Mais nenhum feriu tanto o cristianismo, de forma tão sistemática e profunda. Por isso quando vejo um anticristão hoje em dia confronto-o com Porfírio. E os actuais são incompletos, repetem-lhe os argumentos, de forma muito menos profunda e menos sistemática. O grande problema do anti-cristianismo intelectual reside exactamente na sua pobreza intelectual, na repetição dos mesmos lugares comuns e de forma desconexa. Trata-se de uma tribo com rituais, resistindo ainda e sempre ao invasor. Admiráveis, mas no fundo personagens de banda desenhada no que respeita à profundidade da sua argumentação.

8) O cristianismo encontra-se igualmente diluído pelo humanitarismo e apenas legitimado se visto por esse ângulo. É significativo que o modelo moral da “laica” República francês na segunda metade do século XX seja o Abbé Pierre e na secularizada Inglaterra a Madre Teresa de Calcutá seja um dos maiores pontos de consenso. Legitimam-se pela acção, esquecendo-se a sua causa. É como assistentes sociais que são valorizados e não como testemunhos de Cristo. Ou seja, é esquecer o essencial. Que o que dá o sentido à acção, e o que a motivou é o centro, o motor e a energia chamada cristianismo. Perdoa-se-lhes serem cristãos como se de uma fraqueza menor se tratasse tendo em conta o mérito da obra, esquecendo que o mérito da obra encontrou a sua fonte apenas nessa suposta fraqueza.

9) O cristão é o da vida clandestina. Ao contrário do muçulmano, religião guerreira desde a origem e com fraca história enquanto vítima de perseguição, a memória cristã primeva é a da catacumba, da caverna. O muçulmano pode aparecer em público com os traços distintivos da sua religião, o cristão deve apagá-los a todos. A separação entre o espaço público e o privado é entendido pelo cristão e imposto pela sociedade como tal como uma forma de apagamento dos sinais exteriores desse cristianismo. O problema é que isto gera um apagamento simbólico da força dos cristãos e uma distorção do equilíbrio de forças na sociedade. Tomemos o seguinte exemplo: reconhecemos todos que a vida sexual é considerada íntima, reservada ao espaço privado. Mas ninguém fica por isso impedido de mostrar externamente os sinais secundários do seu sexo. Percebe-se publicamente que um homem é um homem e que uma mulher é uma mulher. O cristão é obrigado no entanto a ser um eunuco religioso. Aparecendo no espaço público como se destituído de religião.

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terça-feira, 11 de setembro de 2007

O vale tudo

No meio do furacão Maddie, o Público («by the way» um dos poucos jornais diários que tem escrito de forma minimamente responsável sobre o assunto) dedica hoje uma página interior (sem direito a chamada de capa) a um assunto verdadeiramente extraordinário. Refiro-me à «incrível e triste história» (para citar Gabo) da aquisição, por parte do fundo de pensões do BCP, da participação de Berardo na PT. A fazer fé no Público, o BCP (na pessoa do seu administrador Castro Henriques, notório apoiante de Teixeira Pinto) «financiou» assim a posterior entrada de Berardo no capital do banco e, consequentemente, o reforço da lista de apoiantes do seu então Presidente Executivo.
Na minha ingenuidade, eu diria que este é uma daqueles episódios que dificilmente pode ser mais revelador do estado a que chegou a guerra suja no principal banco privado português. Diria mesmo que dificilmente se podia encontrar um exemplo mais revelador da confusão que a administração do BCP foi fazendo entre os seus interesses privados e os interesses do accionistas do banco. Mas curiosamente pareço ser o único escandalizado. É caso para se dizer que ou está a tudo louco ou está tudo à procura da Maddie.

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II. Hodiernos cristãos: em meio hostil

Em que sentido o meio é hostil aos cristãos? Vejamos em quê:

1) Encontra-se em concorrência. Com outras religiões, mal assimiladas quando são de importação, representadas por um sub-proletariado que as vive de forma intelectual e muitas vezes espiritualmente pobre quando o importado são as pessoas que as praticam. Está em concorrência com humanitarismos que mais não são que derivados de segunda linha do cristianismo, que o parasitam de forma inconsequente sob o ponto de vista espiritual. Os direitos do homem, o terceiro-mundismo, os altermundialimos, a assistência social informal. Está em concorrência com um espaço lúdico alargado, como a televisão, a Internet e os centros comerciais. Pobre concorrência cujo sucesso, embora não vitória, mostra mais a pobreza da época e de quem nela se deixa viver que a pobreza do cristianismo.

2) O cristão é herdeiro por excelência de uma História de crimes. As inquisição, a cruzadas e assim por diante. Mas quando perguntamos a qual das cruzadas se refere o desprovido que enuncia a crítica, vê-se que não estudou nenhuma. Como se São Luís, a cruzada das crianças, a conquista de Constantinopla e o império latino de Constantinopla, ou a aventura de Ricardo Coração de Leão se pudessem reduzir às mesmas motivações, meios e confrontações. O mesmo se diga sobre a inquisição. O mais curioso é que quem costuma fazer essa crítica é funcionário público. Mas aí já não se sente herdeiro do Estado do século XVI que não apenas era braço secular da Inquisição, mas igualmente inquisição secular. E se não se sente responsável por esse Estado é que considera que ele é fruto de um novo Hapax, de uma nova Incarnação, que seria a revolução francesa, as revoluções os liberais ou a revolução industrial inglesa, a científica, ou outro expediente de simplista visão histórica.

3) Numa época em que o sexo tem função redentora o cristão é visto como ou não tendo sexo, ou praticando apenas a posição de missionário. O cristão é o incompetente sexual, que significa forçosamente desprestígio social. Pergunta-se de onde se retirou tal fantasia e que estranha tara leva a classificar os outros precisamente pelo que deles não se pode saber.

4) Os cristãos são intranscendentes sob o ponto de vista da mentalidade. Quando se vêm os sacerdotes da pseudo-modernidade (por sinal criaturas que dela apenas fruem, mas para ela nada contribuíram) vemos uma cara de “já fui e já vim”, condescendente em relação aos cristãos, vistos na melhor das hipóteses como uma espécie de Bororós com rituais primitivos. Mas quando olho esses condescendentes que pensam que já foram e já vieram pergunto-me se o ponto de partida e chegada é alguma doca, uma esquina de rua, ou um programa infantil colorido.

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Coisas que me acontecem

Regressei dos EUA em 2001. No ano seguinte concorri ao grau de consultor hospitalar, dado que a minha carreira nos EUA, naturalmente não tinha equivalência em Portugal. O concurso era curricular, pelo que entreguei 5 folhas com titulos, cargos e publicações. Entre a abertura do concurso e a sua realização, demoraram...(quem dá mais, quem dá mais?): 5 anos! O Juri do concurso tratou-me no geral com alguma benevolencia e sentido de humor, mas lá foi dizendo que eu não tinha lido "o decreto", porque o CV não estava de acordo com as normas. Não bastava dizer que tinha feito a post graduação na Columbia, ou que era professor na Cornell. Faltavam cartas de recomendação...Um dos membros deixou-me espantado ao interrogar-se porque razão estavam os meus artigos publicados em revistas americanas e não portuguesas. A interrogação era genuína, a curiosidade intrigada, real. O mais espantoso da história, é que os 5 anos que mediaram entre a abertura do concurso e a sua realização, teriam de ser ignorados no avaliar do candidato. Buraco negro da minha existência, teria de ser avaliado em 2007 como se o tempo tivesse parado em 2002. Pena as rugas, mistério os cabelos brancos.

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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

I. Hodiernos cristãos: premissas

Não deixa de ser curiosa a situação dos cristãos, sobretudo na Europa actual. Maioritários em número, minoritários ideologicamente. Não é uma situação nova. Os escravos e as mulheres, por vezes os metecos, tiveram o mesmo estatuto. O problema é que esse estatuto foi dado por outros. No caso dos cristãos resta saber que outros criaram essa situação.

Temos de partir de duas premissas muitos simples.

Em primeiro lugar, o fundamento de todas as civilizações é religioso. As grandes obras-primas e os grandes avanços de cada cultura fazem-se em diálogo, confronto, luta, conciliação e superação desses mesmos fundamentos. Uma Eneida ou a criação do cálculo infinitesimal não se fazem pensando na notícia do momento. Nem assentam em estruturas meramente técnicas, assépticas.

A segunda é a de que o que caracteriza o ser humano é o confronto com o eterno, o infinito e o absoluto. Negar esse confronto ou abdicar dele é pura amputação. O ateu tem apenas uma deficiência lógica. É alguém que disse “vi toda a realidade e não encontrei Deus”. A premissa é forçosamente falsa. O agnóstico, o que se senta a meio do caminho, mais honesto, mas não percebendo que o mistério não é apenas uma pergunta mas também a resposta.

Dito isto, facilmente verificamos que o cristão, sobretudo o europeu, quando manifesta a sua religião fá-lo por acto de coragem. Isto porque se encontra num meio que lhe é profundamente hostil.

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domingo, 9 de setembro de 2007

Travelling


Se não o tivessem inventado antes, esta seria a mais elegante, firme e rectilínea razão para que alguém imaginasse e criasse um travelling.

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sábado, 8 de setembro de 2007

Prémio Champalimaud 2007


Ontem, estive na cerimónia de atribuição do Prémio Champalimaud 2007. E achei notável. Trata-se de um prémio anual de € 1.000.000 a conferir, alternadamente, às organizações ou grupos que se distingam por contributos excepcionais na compreensão dos mecanismos da visão ou no combate à cegueira nos países em vias de desenvolvimento.
Nesta primeira edição, o prémio foi atribuído ao «Aravind Eye Care System». E assim se definiu o registo das coisas: o Prémio Champalimaud assumiu-se como uma iniciativa de prestígio internacional, fundada no critério dos mais conceituados especialistas mundiais, destinada a celebrar a excelência, a ambição, a vontade e a capacidade de fazer bem.
Impressionou-me a espantosa obra da instituição premiada. Mas impressionou-me mais ainda o rasgo desta Fundação Champalimaud. Rasgo traduzido na decisão individual e generosa do Fundador - António Champalimaud. E rasgo já visivelmente patente na atitude, no tom e nas metas estabelecidos pela direcção da FC. É, afinal, um projecto da maior relevância - felizmente, com a consistência própria das apostas assentes em trabalho sério.
Portugal deve orgulhar-se da FC. Por ela, deverá agradecer sempre a António Champalimaud. Mas, desde já, deve felicitar Leonor Beleza, cuja acção nestes curtos anos não deixa dúvidas sobre a marca que aqui quer deixar - ontem, aliás, as suas palavras foram eloquentes a tal respeito.




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quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Da Visão: Os bois pelos nomes

«O PSD não gosta de mim», diz José Miguel Júdice ao Diário Económico em notável entrevista publicada na passada semana. «Em compensação eu adoro-me», imagino-o eu a dizer aos seus botões. A auto-estima, qualquer especialista o demonstrará, é essencial para o equilíbrio emocional de qualquer ser humano. Mas a auto-estima em excesso é, também não sou eu que o afirmo, uma patologia séria. Que acarreta necessariamente os seus problemas. Inebria-nos, faz-nos perder a noção da realidade, turva-nos o raciocínio, e, como parece ser manifestamente o caso, leva um homem inteligente a dizer verdadeiras enormidades intelectuais.
Comecemos pela visão que tem do conceito de independência. Para o Dr. Júdice, independente não é quem opta por não se filiar num partido político por não se rever no seu projecto ou na sua praxis. Não é quem, de forma coerente com essa tomada de posição, aceita com naturalidade o facto de ficar alheado dos mecanismos tradicionais de acesso ao poder político e às suas benesses. Muito pelo contrário. Para o Dr. Júdice a independência confunde-se com despeito e é a mera consequência da ruptura com um projecto político que não sabe reconhecer o seu inestimável valor e tratá-lo com a deferência e o estatuto que sabe merecer. Imagine-se que «o último advogado de Sá Carneiro, o homem que mais teorizou o seu pensamento político» nem sequer é convidado para discursar nas homenagens ao líder histórico do PSD!
Passemos depois pela bizarra concepção que tem do tema das incompatibilidades. Ao Dr. Júdice parece-lhe absolutamente natural que alguém abandone um partido político a que se pertenceu nos últimos trinta anos para se lançar no apoio entusiástico de um projecto rival sem assegurar um período de nojo mínimo. Mais estranho, parece-lhe normal que se venha a saber que a «transição» foi precedida de um apetecível convite, endereçado precisamente pelo partido em que de repente encontrou tantas virtudes. E como se não bastasse, não vê qualquer problema em gerir, em nome do Estado, os destinos imobiliários da zona mais cobiçada do país enquanto continua a representar os mais diversos interesses privados com o seu chapéu de advogado de sucesso e a dirigir um interessantíssimo grupo hoteleiro. Se voltasse atrás «aceitava tudo com muito mais facilidade».
Finalmente observemos a defesa desse bizarro «fetiche» que é a fusão do PSD com o CDS. Não está em causa o diagnóstico certeiro que faz do desnorte ideológico do actual PSD. Não está sequer em causa a avaliação crítica que faz da orfandade de algum eleitorado de centro-direita. Mas sejamos sérios, estará o Dr. Júdice realmente convencido que a resposta a estes problemas passa pela fusão de um PSD que, concordo em absoluto, precisa de abraçar mais enfaticamente um ideário liberal para se demarcar do PS, com um CDS que faz do pior do populismo e do conservadorismo a sua imagem de marca? Será que acredita que essa proposta é no melhor interesse de um partido que sempre fez do «centro» político o seu território natural? Será que verdadeiramente crê que este tem alguma coisa a ganhar por deixar de existir uma referência política mais «radical» à sua direita? Ou será que está mais uma vez a confundir a análise política racional e fria (que tão bem é capaz de fazer) com os seus pessoalíssimos (e absolutamente respeitáveis) desejos? Pois para o Dr. Júdice haverá melhor líder para essa grande confederação das direitas que o próprio Dr. Júdice?

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Um homem honrado


Pierre Mendès France nasceu há cem anos. E a França celebra o facto. Também editorialmente.
Vale a pena lembrar e, para tanto, vale a pena ler. Pierre Mendès France foi uma grande personalidade da vida pública francesa, durante uma boa parte do século XX. Governou a França pouco mais de sete meses, mas a sua influência política foi imensa e perene. Em rigor, Mendès France foi um mito.
Mais do que tudo, constituiu uma extraordinária referência moral. Guiava-o a preocupação do bem comum, radicava a sua acção no respeito pelo adversário, assentava o seu discurso no escrúpulo de dizer sempre a verdade.
Foi um homem de carácter, incómodo como todos os que o são. Culto, competente, corajoso, capaz de autoridade. Nascido na esquerda, perseguido pelo regime de Vichy, desafiou todas as qualificações ideológicas para incarnar uma ideia de República que deixou lastro bem para lá da sua família política de origem.
Permaneceu toda a vida fiel às suas ideias, num registo inquebrantável da mais alta exigência democrática. Sem medo, foi ele que disse: “Gouverner, c’est choisir”.
Pierre Mendès France fica na história como um homem de bem, um homem maior e, incontestavelmente, um homem de honra…
Entre nós, quando falham exemplos e tudo parece degradar-se dia a dia, importa lembrar que a política permite gente assim. Ou melhor, que a exige!

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quarta-feira, 5 de setembro de 2007

As "lições" do futebol…

Posso falar de futebol? Para não correr o risco de ser acusado de "vulgarizar" o blog (mesmo se, para mim, o futebol não vulgariza nada) informo desde já que vou falar de futebol para falar do nosso sistema de justiça (ou vice-versa). A Comissão de Arbitragem acaba de divulgar um comunicado que é o exemplo perfeito do problema de fundo que domina a interpretação e aplicação do Direito em Portugal e sustenta muita da incompreensão pública para com o nosso sistema de justiça.
Confrontada com duas alegadas interpretações divergentes da mesma norma (neste caso, futebolístico, a proibição de um atraso ao guarda-redes) a Comissão de Arbitragem limita-se a dizer que ambas são válidas e que tudo deve ser deixado ao critério subjectivo de cada intérprete (neste caso, cada árbitro). Ora isto é a inversão total da função máxima dos órgãos de interpretação do Direito: garantir a consistência e coerência na interpretação das normas do seu ordenamento. Tal exige um esforço de objectivação (e não subjectivização) do espaço natural de indeterminação que existe na interpretação das normas jurídicas, de forma a garantir a certeza e segurança jurídicas e a igualdade de tratamento de todos os que a elas estão sujeitos. Praticamente todas as normas jurídicas são susceptíveis de mais do que uma interpretação. Neste aspecto, a função do sistema judicial é, fundamentalmente, a de garantir uma interpretação consistente e coerente da norma jurídica em causa. O que desacredita o Direito e um particular sistema jurídico não é facto de as normas jurídicas poderem ter diferentes interpretações mas sim o facto de elas serem interpretadas e aplicadas de forma diferente em iguais circunstâncias. A função de qualquer sistema de interpretação e aplicação do Direito é transformar o acto (parcialmente) subjectivo de interpretação de uma norma num processo objectivo, através de uma aplicação consistente de uma única interpretação dessa norma. Isto faz-se pela adesão de todos os actores desse sistema a uma mesma interpretação da norma. O valor da consistência e coerência (essencial para garantir a igualdade e a falta de arbitrariedade) na aplicação do Direito sobrepõe-se assim às diferentes interpretações subjectivas que cada intérprete pode, em abstracto, ter sobre a mesma. Sucede, que isto exige uma particular cultura judicial ou de aplicação do Direito. Um juiz (seja ele no ordenamento jurídico normal ou no desportivo) não pode ver-se como uma ilha, solitário (mas também soberano) na interpretação da norma. Ele tem de se entender como apenas um elo numa cadeia de interpretação dessa norma, sujeito à procura de uma interpretação e aplicação consistente dessa norma de forma solidária com os outros operadores do sistema. É que a necessidade de garantir a igualdade na interpretação das normas jurídicas exige que a lealdade dos intérpretes do Direito se manifeste não apenas em relação à norma mas, igualmente, para com o sistema. Só isto assegura que a aplicação das diferentes normas jurídicas corresponda a uma verdadeira aplicação do Direito (ou seja, a uma aplicação das normas jurídicas sujeita aos princípios da consistência e coerência). A legitimação de diferentes interpretações e aplicações da mesma norma, por apelo à subjectividade, no mesmo sistema contraria tudo isto. Conduz à arbitrariedade e é uma forma de desresponsabilização individual (é sempre fácil justificar uma interpretação diferente, o difícil é ser consistente na interpretação que propomos).

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terça-feira, 4 de setembro de 2007

Desabafos de Verão (II)


Estive de férias uns dias e regressei bem disposta. Voltei pacificada, tolerante, sereníssima. Mas, diz o povo, que de boas intenções está o inferno cheio e logo eu me vi a arder às mãos de Belzebu…
Tudo isto a pretexto de uma noite televisiva – ontem, 3 de Setembro de 2007, na RTP1. Com o ar sério de quem discute coisas sérias, algumas personalidades da nossa praça (num ramalhete que incluía Medeiros Ferreira e Jorge Coelho!), moderadas pela tristemente irreconhecível Maria Elisa Domingues, aprofundaram o tema da vida e morte da princesa Diana de Gales. Foram quase duas horas de conversa. Lamentável e irrelevante conversa.
O que importa, aliás, não é recordar o momento. O bom senso antes manda esquecer. Mas é imperativo que me indigne e, diria, que nos indignemos. Não é possível tolerar como natural um debate de noite inteira, na televisão pública, sobre os amores e desamores de Lady Di, sobre as suas frustrações, fragilidades ou equívocos. O registo, note-se, era estritamente o de uma conversa de cabeleireiro, em torno de uma qualquer edição da Hola! – uma coisa deplorável. Sem pudor. Com aquele ar pretensioso de quem arrisca verdades teoréticas a propósito de detalhes que deleitariam criadas de servir… De chorar!
Será que alguém pode aceitar que falemos de serviço público? Será que podemos demitir-nos de questionar a televisão que temos? Ou de reivindicar a televisão que não temos?!

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Sobre o estado da arte

Arte e política nunca estiveram divorciadas. Há uma união de facto entre elas que, em função das épocas, se geriu de formas diferentes. Os artistas vivem, como sempre viveram, das encomendas. As encomendas foram feitas por Imperadores, Reis, Príncipes, Papas, Senhores, Altos Funcionários, Embaixadores, etc... E na encomenda eram definidos os objectivos e as interpretações.

A mentalidade da época compatibilizava-se com a interpretação e mensagem individual do autor. Sem abalar os cânones, os artistas sabiam introduzir leituras que escapavam aos seus poderosos clientes e não punham em causa a sua fidelidade e reconhecimento. A regra ou, se quisermos o cânone, serviram sempre, precisamente, para tornar simbólicos e perceptíveis diferentes graus de interpretação. A propósito da cúpula de São Pedro de Miguel Ângelo escreve Eugénio D’Ors: “Pêro, en lo que fué de Miguel Angel, dentro del drama de la cúpula de Miguel Angel, ¿qué había? Una vez admitido en ella el principio de la exaltación de la unidad. ¿no se encierra ahí una expressión monárquica? Sí; más, al mismo tiempo, esta unidad se expressa como un sufrimiento. No significa la unidad que se sostiene, sino la unidad que se soporta.”
Actualmente, a política é, como já observámos noutro post, movida pela economia e, dentro da economia movida pela indústria. Mesmo as causas, por apenas o chegarem a ser se tiverem visibilidade planetária, e para terem visibilidade planetária tem de ter financiadores, são inquinadas pelas guerras entre indústrias e reduzidas rapidamente a joguetes dos diferentes interesses. Naturalmente, as artes são também movidas pela indústria que lhes corresponde. A imagem do artista solitário a desencobrir a beleza do mundo, é parte do imaginário que a boa vontade e a ingenuidade concebe para atribuir à arte o valor que efectivamente ela deveria na ter sociedade mas não tem. Não tem no espaço público onde deveria ser legitimada e valorizada. Acontece que o espaço público só legitima o que convém como expressão do sistema que outorga os quadros mentais que interessam promover. Já não são reconhecidos os valores intrínsecos da arte como criação gratuita. Mesmo a arte que exprime uma sabedoria é totalmente despromovida e ignorada. Não digo que haja por aí vítimas cheias de talento a quem não lhes é reconhecido o valor. Digo, isso sim, que as condições para se chegar a ser artista são desmontadas pelo pensamento oficial (se quisermos o politicamente correcto é uma das suas expressões máximas) inviabilizando democraticamente qualquer despontar de originalidade mental.
O percurso dos artistas é feito junto do poder económico que controla, com os seus prémios, bolsas e subsídios, a arte que lhe importa promover, num mecenato perverso e instruído pelos players do sistema: governos, institutos, galeristas, críticos, curadores, museus, coleccionadores, etc... Quem conta é quem sabe gerir a sua carreira nestes meandros. Sem espanto se chega a Veneza ou Kassel e se depara com um espectáculo de unanimismo e de politicamente correcto. Produz-se ali pensamento artístico? Ou não estaremos suficientemente distantes das histórias que vamos ouvindo para podermos fazer um juízo desapaixonado e conhecedor?
Que as relações entre a política e arte sempre existiram não há dúvida. Que a arte perdeu com a submissão do político ao económico parece-me difícil de negar. Quem resistirá à pressão do tempo?

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segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Reminiscências

"O Angelus", Jean-François Millet

Não é assim tão importante querer mudar o mundo!

" Reminiscência arqueológica do Angelus de Millet", Salvador Dali

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domingo, 2 de setembro de 2007

Confidências

Suicídio, George Grosz

Ultimamente deixou de tomar partido. Resultado: tem quase sempre razão. Mesmo assim, confessou-me que esperava mais.

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