As "lições" do futebol…
Posso falar de futebol? Para não correr o risco de ser acusado de "vulgarizar" o blog (mesmo se, para mim, o futebol não vulgariza nada) informo desde já que vou falar de futebol para falar do nosso sistema de justiça (ou vice-versa). A Comissão de Arbitragem acaba de divulgar um comunicado que é o exemplo perfeito do problema de fundo que domina a interpretação e aplicação do Direito em Portugal e sustenta muita da incompreensão pública para com o nosso sistema de justiça.
Confrontada com duas alegadas interpretações divergentes da mesma norma (neste caso, futebolístico, a proibição de um atraso ao guarda-redes) a Comissão de Arbitragem limita-se a dizer que ambas são válidas e que tudo deve ser deixado ao critério subjectivo de cada intérprete (neste caso, cada árbitro). Ora isto é a inversão total da função máxima dos órgãos de interpretação do Direito: garantir a consistência e coerência na interpretação das normas do seu ordenamento. Tal exige um esforço de objectivação (e não subjectivização) do espaço natural de indeterminação que existe na interpretação das normas jurídicas, de forma a garantir a certeza e segurança jurídicas e a igualdade de tratamento de todos os que a elas estão sujeitos. Praticamente todas as normas jurídicas são susceptíveis de mais do que uma interpretação. Neste aspecto, a função do sistema judicial é, fundamentalmente, a de garantir uma interpretação consistente e coerente da norma jurídica em causa. O que desacredita o Direito e um particular sistema jurídico não é facto de as normas jurídicas poderem ter diferentes interpretações mas sim o facto de elas serem interpretadas e aplicadas de forma diferente em iguais circunstâncias. A função de qualquer sistema de interpretação e aplicação do Direito é transformar o acto (parcialmente) subjectivo de interpretação de uma norma num processo objectivo, através de uma aplicação consistente de uma única interpretação dessa norma. Isto faz-se pela adesão de todos os actores desse sistema a uma mesma interpretação da norma. O valor da consistência e coerência (essencial para garantir a igualdade e a falta de arbitrariedade) na aplicação do Direito sobrepõe-se assim às diferentes interpretações subjectivas que cada intérprete pode, em abstracto, ter sobre a mesma. Sucede, que isto exige uma particular cultura judicial ou de aplicação do Direito. Um juiz (seja ele no ordenamento jurídico normal ou no desportivo) não pode ver-se como uma ilha, solitário (mas também soberano) na interpretação da norma. Ele tem de se entender como apenas um elo numa cadeia de interpretação dessa norma, sujeito à procura de uma interpretação e aplicação consistente dessa norma de forma solidária com os outros operadores do sistema. É que a necessidade de garantir a igualdade na interpretação das normas jurídicas exige que a lealdade dos intérpretes do Direito se manifeste não apenas em relação à norma mas, igualmente, para com o sistema. Só isto assegura que a aplicação das diferentes normas jurídicas corresponda a uma verdadeira aplicação do Direito (ou seja, a uma aplicação das normas jurídicas sujeita aos princípios da consistência e coerência). A legitimação de diferentes interpretações e aplicações da mesma norma, por apelo à subjectividade, no mesmo sistema contraria tudo isto. Conduz à arbitrariedade e é uma forma de desresponsabilização individual (é sempre fácil justificar uma interpretação diferente, o difícil é ser consistente na interpretação que propomos).
Confrontada com duas alegadas interpretações divergentes da mesma norma (neste caso, futebolístico, a proibição de um atraso ao guarda-redes) a Comissão de Arbitragem limita-se a dizer que ambas são válidas e que tudo deve ser deixado ao critério subjectivo de cada intérprete (neste caso, cada árbitro). Ora isto é a inversão total da função máxima dos órgãos de interpretação do Direito: garantir a consistência e coerência na interpretação das normas do seu ordenamento. Tal exige um esforço de objectivação (e não subjectivização) do espaço natural de indeterminação que existe na interpretação das normas jurídicas, de forma a garantir a certeza e segurança jurídicas e a igualdade de tratamento de todos os que a elas estão sujeitos. Praticamente todas as normas jurídicas são susceptíveis de mais do que uma interpretação. Neste aspecto, a função do sistema judicial é, fundamentalmente, a de garantir uma interpretação consistente e coerente da norma jurídica em causa. O que desacredita o Direito e um particular sistema jurídico não é facto de as normas jurídicas poderem ter diferentes interpretações mas sim o facto de elas serem interpretadas e aplicadas de forma diferente em iguais circunstâncias. A função de qualquer sistema de interpretação e aplicação do Direito é transformar o acto (parcialmente) subjectivo de interpretação de uma norma num processo objectivo, através de uma aplicação consistente de uma única interpretação dessa norma. Isto faz-se pela adesão de todos os actores desse sistema a uma mesma interpretação da norma. O valor da consistência e coerência (essencial para garantir a igualdade e a falta de arbitrariedade) na aplicação do Direito sobrepõe-se assim às diferentes interpretações subjectivas que cada intérprete pode, em abstracto, ter sobre a mesma. Sucede, que isto exige uma particular cultura judicial ou de aplicação do Direito. Um juiz (seja ele no ordenamento jurídico normal ou no desportivo) não pode ver-se como uma ilha, solitário (mas também soberano) na interpretação da norma. Ele tem de se entender como apenas um elo numa cadeia de interpretação dessa norma, sujeito à procura de uma interpretação e aplicação consistente dessa norma de forma solidária com os outros operadores do sistema. É que a necessidade de garantir a igualdade na interpretação das normas jurídicas exige que a lealdade dos intérpretes do Direito se manifeste não apenas em relação à norma mas, igualmente, para com o sistema. Só isto assegura que a aplicação das diferentes normas jurídicas corresponda a uma verdadeira aplicação do Direito (ou seja, a uma aplicação das normas jurídicas sujeita aos princípios da consistência e coerência). A legitimação de diferentes interpretações e aplicações da mesma norma, por apelo à subjectividade, no mesmo sistema contraria tudo isto. Conduz à arbitrariedade e é uma forma de desresponsabilização individual (é sempre fácil justificar uma interpretação diferente, o difícil é ser consistente na interpretação que propomos).
4 comentários:
Não há lugar à subjectividade nas leis?
Sim senhor é por isso que se usam computadores para processar todos os casos que chegam aos tribunais e não juizes.
Penso que disse exactamente o contrário do que diz… É precisamente porque a interpretação jurídica tem sempre uma margem de subjectividade que é necessário garantir a igualdade na sua interpretação e aplicação, através de instrumentos que garantam a coerência e consistência nesse processo. Por outras palavras, as normas jurídicas são susceptíveis de várias interpretações mas o princípio da igualdade e a prevenção do arbítrio exigem que a mesma interpretação seja aplicada a situações idênticas.
Uma vez sem exemplo, e vulgarizando despudoradamente a rigorosa explanação do Miguel Poiares Maduro, aqui vai uma entrada à margem das leis. Sem prejuízo do necessário esforço de objectivação que é garantia da igualdade de interpretação e aplicação das normas jurídicas, teria alguma graça que neste caso (o do famoso passe para o guarda-redes) se desenhasse uma pequeníssima e brilhante margem de subjectivação suficiente para determinar a derrota simultânea das duas equipas (cujos nomes não é coisa que se diga, nem em vão) intervenientes no prélio em apreço. Arbitrariedade por arbitrariedade...
continuando no reino da subjectivação ... o que nós não sabemos é que tudo aquilo que foi feito até agora se trata, por exemplo, apenas de uma abordagem Wittgensteiniana do processo constitucional/de interpretação das normas. Na verdade este primeiro esforço da Comissão foi apenas o de procurar abrir um espaço maior para uma melhor deliberação. Pertendeu aferir melhor as diferentes susceptibilidades antes de tomar a decisão (que continuará em aberto apesar de provisoriamente objectiva). Estou mesmo a ouvir amanhã ou depois os responsáveis por esta decisão a dizerem-nos precisamente isso. Vão mesmo citar Wittgenstein e seus intérpretes.
Será de admirar esta fraca visão sobre o Direito depois de todos os domingos vermos um Professor de Direito tecer comentários políticos e fazer "análise" "política" na televisão fundando "cientificamente" e "teoricamente" essa sua abordagem na "escola" de pensamento em Direito Constitucional e Ciência Política fundada por Marcelo Caetano. Será que esses alunos que depois saem dessas universidades percebem alguma coisa de Direito (ou de ciência política)? Será que é de admirar que depois se cheguem a conclusões destas e a falhanços destes em Comissões e que o país funcione assim? Não, acho que não. Resta a crítia...
Mas ainda tenho fé que amanhã vou ouvir o gozo do membro da Comissão a chamar-nos burros. Gostava mesmo que o fizesse.
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