sexta-feira, 21 de junho de 2024

Feitos à imagem de Deus

 

Assim é. Lá temos mais um que se acha inteligente por recusar imagens antropomórficas de Deus. A nossa época dá felicidade a muitos porque lhes dá muitas ocasiões de se sentirem inteligentes, sobretudo mais inteligentes que os outros. O que é um sinal de alarme, podendo indicar que a verdade é a inversa.

 

O tópico de Xenófanes aparece entre os que têm propensões mais intelectuais. Xenófanes dizia que os gregos deram forma humana aos deuses, mas não perceberam que se os animais tivessem deuses dariam forma animal aos deuses. Xenófanes teria as suas qualidades, mas era algo provinciano. Porque se esqueceu que os egípcios eram humanos e deram aos seus deuses formas... de animais.

 

Também os que brandem o argumento do antropomorfismo mostram assim o seu provincianismo. Nem sempre fazemos os deuses à nossa imagem. E por isso é preciso pensar duas vezes antes de acusar a teologia de antropomorfismo. Não é pelo facto de os polacos venerarem uma Virgem Negra que projectam na santidade o que são. Para quem nunca viu um polaco seria bom espreitar alguns para se perceber a ironia.

 

O problema é que o argumento de antropomorfismo deixa satisfeito quem sente ter capacidade de abstracção e não acredita por isso num Deus velho com barbas brancas. Capacidade de abstracção de jornalista, entenda-se, e desde a metade do século XIX a de alguns biólogos. Não são o pináculo na matéria, não aconselharia como modelo.

 

O homem não faz Deus automaticamente à sua imagem. Prova são os deuses teriomórficos, os deuses de formas difusas, híbridas, ou em forma de bétilo ou planta. Os gregos tinham deuses antropomórficos os árabes adoravam calhaus. Deuses mais abstractos? Seja. Não é por isso que os gregos eram incapazes de poesia ou criação racional. Alguém que me aponte um teorema beduíno ou uma epopeia sarracena... Tanto os gregos como os indianos, que têm ambos deuses antropomórficos, produziram arte, literatura e matemática como mais nenhum povo na Antiguidade. Talvez fosse altura de o rapaz com mentalidade de jornalista começar a pensar... Se lhe for possível.

 

O problema é exactamente o inverso. Quando o homem quer pensar num Deus mais complexo o risco é o de cair no antropomorfismo. O cidadão comum da nossa época, que se sente sofisticado por só admitir uma visão abstracta de Deus, o que vê ele? Uma coisa difusa, de fronteiras indefinidas, confusa. Porquê? Porque para ele são assim as abstracções. Uma antropóloga que conheci na adolescência disse-me um dia: para mim as ideias são coisas mortas. Ao que eu lhe respondi: sim, menina, na tua cabeça.

 

São os mesmos que dizem ter uma vivência carnal da vida que só admitem a hipótese de um Deus abstracto. Ou seja, morto, sem viço. Como as suas abstracções. A sua vida não é contraditória. É só tonta. Por isso, não percebem que são os povos mais sofisticados que procuram uma imagem viva e pessoal do Deus. Platão chamava-o de o Vivente e Pai. E quanto a ideias abstractas tenho mais confiança em Platão que num jornalista americano. 

 

Santo Irineu de Leão merecia que se falasse muito mais dele. Mas sendo telegráfico, diria que percebeu algo muito simples: que todas as heresias, e em boa todas as religiões falsas são projecções. O homem projecta-se na divindade, quere-a à sua imagem.

 

Não que faça deuses antropomórficos sempre. Mas quer deuses que aceitem a vingança, mesmo que com limites. Que odeiem os descrentes, condenem os que não nos agradam. Mais importante que a sua imagem aparente são as suas motivações.

 

Por isso, torna-se impossível ao ser humano conseguir a suprema conquista espiritual que é a de um Deus pessoal, apenas acessível aos povos mais sofisticados, sem cair ao mesmo tempo no antropomorfismo. Não tanto o do Deus velho de barbas, mas de um Deus que odeia e quer vingança.

 

Os sofisticados da nossa época têm dificuldades grandes e não percebem que z verdade cristã é exactamente a inversa. Não a de um Deus à imagem do homem, mas de um homem à imagem de Deus. O que isto implica? Que se esvazie de vez das suas projecções e seja ao mesmo tempo capaz de se confrontar com um Deus pessoal. Que tenha a suprema capacidade de abstracção de perceber a vida das suas ideias e que essa vida não vem de si. Mas essa capacidade de abstracção o transeunte jornalístico da nossa época não o tem. Cansa-se depressa. E depois de pensar a sua pequena abstracção senta-se. Não viu grande coisa. É evidente. É a si mesmo que se viu.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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